tag:blogger.com,1999:blog-140660792024-03-06T19:59:16.266-08:00FilosofemasEroshttp://www.blogger.com/profile/15293995700737241819noreply@blogger.comBlogger199125tag:blogger.com,1999:blog-14066079.post-76525125033053389072023-03-02T04:48:00.006-08:002023-03-02T07:22:43.132-08:00[205] Desafios e limitações do ChatGPT<p><br /> </p>
<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhmV0u5wG37Z_eV2Q5gDS48Exgqf6XkK_UMMkIK_N3lrvV-OiEGSixUAA7ESG_ohSEm5fxKQjmgOHtTqSgeNQNg0p2MraIpfnEOjg1GHRgJFgZfC-Bjw6euou-nte0quCV0M7oaVnraSHsbvYNjvU85GJM4Y31DCFN9LSstSe4lnZt3QYgkVmM/s1080/WhatsApp%20Image%202023-02-14%20at%2009.58.19.jpeg" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="1080" data-original-width="1080" height="200" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhmV0u5wG37Z_eV2Q5gDS48Exgqf6XkK_UMMkIK_N3lrvV-OiEGSixUAA7ESG_ohSEm5fxKQjmgOHtTqSgeNQNg0p2MraIpfnEOjg1GHRgJFgZfC-Bjw6euou-nte0quCV0M7oaVnraSHsbvYNjvU85GJM4Y31DCFN9LSstSe4lnZt3QYgkVmM/w200-h200/WhatsApp%20Image%202023-02-14%20at%2009.58.19.jpeg" width="200" /></a></div>Ontem tive uma excelente discussão com o Everton Garcia da Costa (UFRGS) e André Dirceu Gerardi (FGV-SP), a convite do NUPERGS, sobre <a href="https://www.youtube.com/watch?v=9loJk3gLeEI">Desafios e Limitações do ChatGPT nas ciências humanas</a>. Agradeço a ambos pela aprendizagem propiciada. Gostaria de fazer duas considerações que não enfatizei o bastante ou esqueci mesmo de fazer.<p></p>
<ol type="1">
<li>Insisti várias vezes que o ChatGPT é um papagaio estocástico (a expressão não é minha, mas de <a href="https://faculty.washington.edu/ebender/">Emily Bender</a>, professora de linguística computacional) ou um gerador de bobagens. Como expliquei, isso se deve ao fato de que o ChatGPT opera com um modelo amplo de linguagem estatístico. Esse modelo é obtido pelo treinamento em um corpus amplo de textos em que a máquina procurará relações estatísticas entre palavras, expressões ou sentenças. Por exemplo, qual a chance de “inflação” vir acompanhada de “juros” numa mesma sentença? Esse é o tipo de relação que será “codificada” no modelo de linguagem. Quanto maior o corpus, maiores as chances de que esse modelo será capaz de produzir textos semelhantes aos que estão contidos no corpus. Esse é um ponto importante de se chamar a atenção. O ChatGPT não copia <i>ipsis litteris</i> um texto que esteja no corpus e o entrega ao usuário. Ele realmente gera um texto novo a cada iteração com o usuário a partir do modelo de linguagem obtido na fase de treinamento. Dado o contexto oferecido pela pergunta/comando/instrução do usuário, ele vai calculando, com base no modelo, as palavras, expressões ou sentenças mais prováveis e, assim, vai sucessivamente construindo um texto. Há, certamente, camadas independentes para controlar a gramática, o estilo e o tamanho do texto. Uma camada importante no ChatGPT, em especial, é a de controle sobre o uso de expressões ofensivas. Certamente há expressões ofensivas associadas a certos grupos e etnias nos textos do corpus de treinamento. Seria de se esperar, então, que o algoritmo eventualmente explorasse e replicasse essas expressões e associações em algum texto produzido. Mas essa camada de controle é projetada para rejeitar o uso de expressões ofensivas. Muitos devem se lembrar do <a href="https://www.cbsnews.com/news/microsoft-shuts-down-ai-chatbot-after-it-turned-into-racist-nazi/">incidente</a> da Microsoft com o chatboot Tay que teve de ser desligado em questão de horas porque começou a vomitar expressões preconceituosas e racistas. Esse chatboot também operava sobre um modelo amplo de linguagem estatístico. Outra camada é a de “checagem” de fatos para evitar a produção de sentenças com equívocos factuais grotescos. Se muitos textos conspiratórios ou negacionistas fazem parte do corpus, seria natural o ChatGPT produzir sentenças afirmando que o aquecimento global não existe ou não é produzido pela atividade humana, que o ataque às Torres Gêmeas foi uma operação do próprio FBI etc. A camada de checagem evita retornar para o usuário afirmações flagrantemente falsas como essas. A construção dessa camada de controle é muito dependente de humanos. O feedback de usuários é um recurso importante, mas um exército de pessoas contratadas pela OpenAI para classificar esses conteúdos e incorporá-los ao modelo é o principal motor da camada de checagem. Outra estratégia para minimizar, mas que não evita completamente, nem de longe, a produção de bobagens (como salientei na conversa, “<a href="https://www.amazon.com.br/Sobre-Falar-Merda-Harry-Frankfurt/dp/8598078050">bobagem</a>” no sentido de que a máquina geradora de texto não tem qualquer preocupação com a verdade das sentenças que produz) seria selecionar com cuidado as fontes que compõem o corpus de textos que alimenta o modelo. Contudo, mesmo que o corpus fosse composto apenas de fontes fidedignas, ainda assim, haveria a produção de sentenças trivialmente falsas. Isso ocorre devido ao modelo de linguagem subjacente que incorpora apenas relações estatísticas entre palavras e expressões. Boa parte das relações entre os conceitos subjacentes às palavras e expressões linguísticas da nossa linguagem não são estatísticas, mas causais, analógicas, metafóricas, lógico-dedutivas etc. Todas essas outras relações ficam de fora do modelo. “Ah, mas o chatGPT consegue escrever uma poesia usando metáforas e analogias”. Sim, mas ele o faz usando relações estatísticas entre palavras e expressões que ocorrem em textos poéticos carregados de metáforas e analogias. Devido a essa restrição, é de se esperar que em algum momento fará comparações estranhas ou ininteligíveis. A imitação fidedigna de um estilo poético ou mesmo a apresentação correta da definição de um termo técnico-científico depende também em grande medida da quantidade de textos no corpus que exemplificam esse estilo e ilustram essa definição. Erros e imprecisões serão mais salientes em assuntos sobre os quais há poucos textos no corpus. Enfatizo mais uma vez: não tome as respostas do ChatGPT de forma oracular, nem mesmo como uma cópia de textos de fontes confiáveis, pois não é isso o que ele faz (e nem sabemos também exatamente quais são as suas fontes).</li>
<li>Não podemos menosprezar o efeito dessas tecnologias para a empregabilidade. Qualquer atividade que puder ser facilmente mecanizada, será. Operadores de telemarketing têm chances grandes de serem substituídos por máquinas como o ChatGPT no curto prazo. Ontem mesmo havia lido a <a href="https://siliconangle.com/2023/01/27/report-openai-hired-1000-contractors-improve-ai-models-coding-capabilities/">notícia</a> de que a OpenAI está contratando 1000 pessoas, dentre os quais 40% são programadores e outros 60% são classificadores de conteúdo, para a automatização de geração de códigos em python. Muito embora programas de alta complexidade ainda não poderão ser gerados confiavelmente por essa máquina, programas simples serão. O problema é que a maioria dos empregos na área são para a produção de códigos simples de rotina. Não há como negligenciar esse efeito. Também não há como fazer vista grossa à legião de <a href="https://nabil-alouani.medium.com/openai-paid-african-workers-2-hour-to-make-chatgpt-safer-d44f1463addf">empregos precários</a> sobretudo nos países periféricos para satisfazer a necessidade das grandes corporações de IA na classificação de dados (as “modernas” e “bem-sucedidas” IA são fortemente dependentes de dados classificados por humanos). A ameaça de tirar empregos e criar outros ainda mais precários, com salários menores e provavelmente em número insuficiente para compensar a perda dos primeiros não é uma que possamos negligenciar. Não sejamos ingênuos em relação aos interessas das companhias do vale do silício que estão por trás dessas tecnologias. Outro receio, tão grave quanto, é que, por pressão do mercado, acabemos “aceitando” a mecanização não muito confiável de atividades humanas. Como dito acima, é da natureza das IAs da moda produzir alguns resultados errôneos. Em algumas áreas, esses erros podem ser inofensivos. Em outras, nem tanto. Imagine uma IA dessas decidindo se você pode ou não receber um auxílio social. Mas a redução de custo pode acabar impondo mesmo assim o uso dessas soluções. Ecoando a cientista da computação <a href="https://melaniemitchell.me/">Melanie Mitchell</a>, um dos maiores perigos colocados pela IA atual é que transfiramos para máquinas decisões que elas ainda não estão, e talvez jamais poderão estar, em condições de fazer com transparência e confiabilidade.</li>
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Eroshttp://www.blogger.com/profile/15293995700737241819noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-14066079.post-57123402179134184732023-02-14T10:51:00.004-08:002023-02-16T02:00:17.185-08:00[204] Ninguém conquista nada absolutamente sozinho <p>A excelência exige dedicação e esforço. Ninguém se torna perito em algo sem prática contínua e preferencialmente assistida por anos a fio. Certamente merece mérito quem adquire uma habilidade louvável. Sim, o tipo de habilidade importa. Não sei se estaria disposto a conferir mérito a alguém que se tornou um hábil torturador depois de anos praticando a tortura e aperfeiçoando as suas técnicas. Certamente merece mérito quem supera uma condição desabilitadora, como o recém cego que se dedica a refinar a sua audição e passa a se locomover com base nela. O mesmo claro se aplica à pessoa que supera a sua condição de pobreza ao "vencer na vida". </p><p>Ao mesmo tempo, o discurso sobre mérito tem uma coloração muito individualista, embora não precise e não deva ser lido assim. Normalmente vemos o mérito como uma conquista completamente pessoal. Contudo, isso é um grande equívoco. Todo o entorno colabora e é fundamental para qualquer aprendizagem e conquista. Que diferença faz para uma criança a presença de pais que a apoiam, encorajam e reforçam os seus primeiros passos! Compare esta criança com outra cujos pais não apoiam, não encorajam e até punem, seja fisicamente, seja pelo desdém ou reprovações verbais, os seus primeiros passos. Qual delas desenvolverá em maior grau a autoconfiança e a autoestima que são absolutamente cruciais e fundamentais para o desenvolvimento de qualquer outra habilidade e capacidade? Quão injusto é querer comparar a leitura e a escrita de uma criança de nove anos que desde pequena esteve cercada de livros, ouviu os pais ler histórias para ela, teve as suas próprias leituras acompanhadas afetivamente por eles, era cercada de colegas com as mesmas condições e interesses de leitura com uma outra que não teve nada disso e mal tinha acesso a livros na suas escola periférica. Alguém em sã consciência negaria a diferença abismal de um entorno e outro para a formação das habilidades e, portanto, para as conquistas dessas crianças? Isso não significa que a primeira criança não terá nenhum mérito pelas capacidades de escrita e leitura que ela vier a desenvolver, mas que esse mérito, como qualquer outro, é compartilhado com o entorno sem o qual seria impossível ou muito improvável ela chegar onde chegou. </p><p>Note que o entorno não é apenas material, mas também e sobretudo afetivo. Esses dias circulou bastante a história do Guilherme, o rapaz que passou no vestibular de Medicina da USP e pagou parte do seu cursinho com o trabalho de faxineiro. Ninguém vai negar, obviamente, o louvável feito e mérito desse rapaz, que sim, precisa ser lembrado e cultivado. Mas não esqueçamos da história toda. A outra parte do cursinho foi paga por uma professora do Guilherme. Não há como negar o impacto monumental para a autoestima e a autoconfiança de Guilherme, bem como para a sua motivação, a sua professora estar ali sempre presente e <b>acreditando</b> nele. O próprio Guilherme, não tenho dúvida, será eternamente grato a essa professora e compartilha com ela a felicidade da sua conquista. Na verdade, conquistaram juntos, o que torna a alegria ainda maior. Compare Guilherme com outro rapaz pobre que não encontrou um(a) professor(a) que o apoie e ajude, a mãe faleceu quando nasceu, o pai, sempre impaciente, batia nele quando pequeno e agora ainda mais quando os primeiros sintomas da esquizofrenia, que nenhum dos dois compreende, começaram a aparecer. Se achamos que mérito é só uma questão pessoal, devemos pensar que esse outro rapaz só não alcança o que Guilherme alcançou porque não quer ou não tem força de vontade suficiente? Não seria absurdamente injusto fazer essa projeção e comparação? E o que é a "força de vontade" senão mais uma capacidade que adquirimos e aprimoramos e cuja magnitude alcançada depende também de todo o entorno favorável e desfavorável ao seu desenvolvimento? Já pensaram nisso? </p><p>O modelo do mérito que foca apenas no indivíduo nos leva a ignorar as diferenças do entorno que são tão relevantes quanto o empenho e a dedicação do indivíduo. Pior, leva o próprio indivíduo a ver-se como o único responsável pelo seu fracasso. Também dificulta o indivíduo a focar a sua atenção no que pode ser mais efetivo para superar os obstáculos que impedem ou atrapalham o seu florescimento. Às vezes, o que ele precisa fazer é sair do ambiente familiar tóxico, mas ele também não poderá fazê-lo sem antes construir uma rede mínima de apoio, ou acabará trocando a toxicidade pela solidão, que também é debilitante. O modelo do mérito focado apenas no indivíduo é <b>tóxico</b> para o próprio indivíduo e não fomenta sentimentos sociais, como o de empatia, gratidão e solidariedade, que não só são mais efetivos para o florescimento das habilidades dos próprios indivíduos mas também potencializadores da felicidade. A alegria conjunta é muito maior que a alegria solitária. O modelo do mérito focado apenas no indivíduo também tira da sociedade a responsabilidade de tornar o meio mais favorável ao desenvolvimento das potencialidades de todos. </p><p>Um último comentário sobre o mérito de quem "venceu na vida". Vencer na vida normalmente significa sair da condição de pobreza, o que só é possível em sociedades desiguais (ao menos se temos uma compreensão relativa da pobreza, que é a que prevalece quando o indivíduo se compara com os outros membros da sua comunidade). Claro que é bom para o indivíduo sair da pobreza e merece mérito, bem como todo o seu entorno, por fazê-lo. Mas sair da pobreza não é intrinsecamente valioso como talvez seja a produção de arte ou ciência. Se sair da pobreza fosse intrinsecamente valioso, então teríamos uma forte motivação para manter a desigualdade que torna possível o indivíduo conquistar essa façanha. Não preciso dizer que isso é absurdo e que um mundo menos desigual em que ninguém precisa "vencer na vida" nesse sentido é muito melhor do que um em que a maioria precisa fazê-lo. Mas um mundo sem arte e ciência não seria certamente um mundo melhor, muito pelo contrário. E mais uma vez, o modelo do mérito focado apenas no indivíduo enviesa a nossa atenção e não nos deixa ver com clareza que somos todos responsáveis, cada um conforme a sua capacidade, por essa situação funesta em que a maioria precisa "vencer na vida". Quão cruel é jogar para o indivíduo algo que só pode ser resolvido coletivamente. <br /></p>Eroshttp://www.blogger.com/profile/15293995700737241819noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-14066079.post-47106691745336868242022-11-25T06:14:00.002-08:002022-11-25T06:14:54.081-08:00[203] Filósofas e Filosófos, incomodem! <p>Abaixo, o discurso de formatura como paraninfo da turma de 2022. Mais uma vez, agradeço aos formando(a)s pelo convite. <br /></p><p> </p><p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjxFvBbjObwRVPw5T1B6YyD6sVP8N4ESU7PUDqCSqRFyzeiddb_Ucb-J9rHe2Ia9AKHMCC2lnBPyfKwiLC66x3WS5SW3cKZjjcPPYodl0yvlBgPf5hg6IWRHSd54x6Mb42pKUra8RmrkqV0QcBUHafYvRSu75m18OSYhUXBOnHasNSIFNThcn4/s828/eros-formatura.jpeg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="828" data-original-width="754" height="308" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjxFvBbjObwRVPw5T1B6YyD6sVP8N4ESU7PUDqCSqRFyzeiddb_Ucb-J9rHe2Ia9AKHMCC2lnBPyfKwiLC66x3WS5SW3cKZjjcPPYodl0yvlBgPf5hg6IWRHSd54x6Mb42pKUra8RmrkqV0QcBUHafYvRSu75m18OSYhUXBOnHasNSIFNThcn4/w290-h308/eros-formatura.jpeg" width="290" /></a></div>Em primeiro lugar, gostaria de registrar que fiquei muito feliz e me senti muito honrado por ter sido escolhido paraninfo desta turma. Também gostaria de saudar as suas famílias, amigas e amigos, companheiros e companheiras, sem os quais esta jornada, que exige tanto tempo e dedicação, seria inviável. O afeto dos mais próximos é o que fundamentalmente nos move adiante. Não somos quase nada sozinhos. Diria que o entorno afetivo de cada um de vocês participa também da conquista intelectual e social que a formação de vocês representa e merece, portanto, o nosso reconhecimento e aplausos. <br /><br />A educação transforma e eu não tenho dúvida de que hoje vocês, formandas e formandos da turma de filosofia de 2022, são pessoas bem diferentes daquelas que ingressaram no curso de filosofia alguns anos atrás. A educação filosófica transforma de um modo bem peculiar. Ao buscar, como disse Sellars, "entender como as coisas, no mais amplo sentido possível do termo, estão conectadas no sentido mais amplo possível do termo", a filosofia educa a nossa atenção para notar suposições, conexões e complexidades onde achávamos que havia apenas simples obviedades. Descobrirmos e desbravamos mundos inteiros que passavam despercebidos nas familiaridades que nos cercam. Aprendemos a desenterrar pressupostos e preconceitos que se escondem nos nossos hábitos herdados de pensar. E é por meio dessas descobertas, das possibilidades que elas encerram, que a filosofia nos ajuda também a ampliar o nosso escopo de ação, a intensificar a nossa liberdade. "Toda a aquisição de conhecimento é um alargamento do Eu", disse Russell. Transformados em outras pessoas, agora com atenção filosófica aguçada e afiada, vocês naturalmente transformarão também a sociedade. "O espírito característico da filosofia, se muitos o cultivarem cuidadosamente," disse Hume, "não poderá deixar de se difundir gradualmente por toda a sociedade e conferir uma similar exatidão a todo ofício e vocação". <br /><br />Não há dúvida de que o nosso país, a nossa sociedade, precisa mais do que nunca da filosofia. Sócrates exortava os seus concidadãos a conhecerem a si mesmos, ele dizia que uma vida não-examinada não é digna de ser vivida. O momento que vivemos demanda uma radicalização do ensinamento socrático. Não é apenas o indivíduo, mas sobretudo a sociedade que precisa se examinar. Uma sociedade que tem dificuldade de enxergar o valor do conhecimento é uma sociedade que não cuida de si mesma e, no limite, deixa de amar a si mesma. A filósofa bell hooks me ensinou que não há amor onde há abuso e desrespeito. Ora, quer desrespeito maior que o cultivo da ignorância que inviabiliza o cuidado adequado de si? Precisamos exemplificar e emanar a cada respiração o amor pelo conhecimento. A reflexão que amplia a consciência que a sociedade tem de si mesma precisa ser levada a todos os cantos. Não podemos deixar a sociedade acostumada demais ao hábito de não se questionar. Assim, eu convido vocês, agora filósofas e filósofos, a continuar fazendo aquilo que sempre fizemos muito bem: incomodar. Incomodemos com as nossas críticas e pedidos de explicação e justificação. Incomodemos com as nossas distinções intermináveis para por ordem na casa. Incomodemos com os nossos argumentos para melhor fundamentar as nossas posições. Mas não incomodemos por incomodar, incomodemos para nos alargar e ter mais possibilidades de ação ao nosso dispor. Quando Clifford nos chateia dizendo que se não temos tempo para investigar, então não deveríamos ter tempo para acreditar, ele o faz por amor ao próximo, por enxergar quão perigosas e maléficas para a sociedade podem ser as crenças cegas e infundadas. Incomodem porque se importam. <br /><br />Certa vez, ao se despedir da disciplina, uma aluna me disse: "espero que sigas transformando mundos (universos pessoais), assim como me transformei com a sua disciplina". Pois é o que desejo a vocês, continuem se transformando e transformem o mundo e mundos (universos pessoais) com a filosofia. <br /><br /><p></p>Eroshttp://www.blogger.com/profile/15293995700737241819noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-14066079.post-76790914470870327282022-01-17T13:00:00.000-08:002022-01-20T12:23:29.433-08:00[202] Filosofia Jabuticaba: algumas reflexões<p><br />O professor João de Fernandes Teixeira publicou recentemente o livro <b>Filosofia Jabuticaba</b> (2021), onde ele apresenta o seu diagnóstico para a ausência de pensamento filosófico genuíno no Brasil e propõe algumas saídas para essa situação aparentemente paradoxal, haja vista que a comunidade brasileira de filosofia é, em número, uma das maiores do mundo. Esse trabalho é a sua resposta ao convite para participar do <i>Dossiê Filosofia Autoral</i>, que será publicado na revista <i>Trans/Form/Ação</i> em 2022.<br /><br />Eu recomendo o livro vivamente, trata-se de uma contribuição bem informada e genuína para a compreensão de nós mesmos enquanto uma comunidade filosófica, como chegamos até aqui e quais possibilidades temos presentemente no nosso horizonte. Eu espero que este livro seja lido sobretudo pelas filósofas e filósofos em formação e que ele tenha o devido impacto nas novas gerações que darão continuidade e poderão dar um novo curso a nossa comunidade, preservando o que de melhor fizemos de nós mesmos até agora.<br /><br />Há várias discussões muito interessantes e ricas no <b>Filosofia Jabuticaba</b>, mas eu vou destacar três afirmações ou posições (elaborações a partir do texto do Teixeira, não são citações) que eu gostaria de comentar. São elas:</p><p><br />1. Não há mais espaço para grandes sistemas filosóficos. Logo, a esperança de que o Brasil venha a produzir um grande gênio filosófico como Hegel ou Aristóteles não tem lugar;<br />2. A nossa melhor oportunidade para produzir pensamento filosófico novo e genuíno é engajar-se em algumas das discussões contemporâneas e de natureza cosmopolita ou universal;<br />3. Precisamos superar urgentemente a falta de autoestima e confiança, o desprezo que temos por nós mesmos e pelo que produzimos.<br /> </p><p><b>1</b><br /><br />Não tenho muito a acrescentar em relação à primeira afirmação. Estou de pleno acordo com Teixeira quanto a este ponto. A filosofia acadêmica, como as demais disciplinas, se especializaram agudamente nos dois últimos séculos e as discussões estão tão ramificadas e técnicas que é praticamente impossível para alguém com as limitações cognitivas humanas, por maior que seja o seu gênio, sistematizar em uma teoria filosófica todo o pensamento filosófico acumulado neste período. Dito isso, é preciso, no entanto, ter uma certa cautela em relação à especiação disciplinar na própria filosofia. Ecoando o filósofo John Cottingham (2009), a filosofia não deveria abdicar da função de sistematizar, ainda que com pretensões comedidas e falíveis, o nosso conhecimento e de sintetizar em um todo mais abrangente as nossas diversas atividades práticas e intelectuais. Não vamos entender a nós mesmos, uma preocupação que está conosco desde os primórdios da filosofia, se não nos engajarmos neste tipo de projeto. Ademais, a filosofia não é ciência normal e não deveria buscar mimetizar todos os passos dados pela ciência. A ciência tem progredido e fornecido conhecimento cada vez mais preciso e acurado do mundo, como explica Thomas Kuhn (1997), pela especiação. Mas isso não significa que tenhamos de segui-la completamente nesta direção. Como disse, a filosofia tem outros objetivos além da obtenção de verdades cada vez mais acuradas e precisas. </p><p>Por fim, a filosofia nasce de e procura dar vazão a inquietações que são compartilhadas por leigos e especialistas. Questões sobre o sentido da vida, a natureza da justiça, a relação entre mente e corpo, e os limites do conhecimento são indagações que levantamos no dia a dia, ainda que mediadas e atravessadas por particularidades do contexto de cada um. Se a filosofia se fecha ao leigo e o afasta por meio de um jargão muito especializado e discussões técnicas, ela deixa de cumprir uma função existencial e social que é uma das suas principais razões de ser. Neste aspecto, a situação da ciência é um pouco diferente. A ciência não precisa, embora ela possa, saciar qualquer curiosidade ou inquietação existencial do leigo desde que propicie intervenções e tecnologias que sirvam ao bem-estar da população. As entranhas da ciência podem permanecer herméticas ao leigo desde que a sua superfície e o seu exterior lhe sejam úteis. Não me interessa aqui a discussão de se a filosofia pode ou não ser útil no mesmo sentido em que as ciências são. Meu ponto é que as entranhas da filosofia, o próprio filosofar, precisa estar acessível também ao leigo para que as suas inquietações sejam contempladas. A filosofia não vai responder às inquietações filosóficas do leigo com crenças ou conhecimentos filosóficos que resultam de discussões altamente técnicas que ele não consegue acompanhar e que ele teria de assimilar cegamente. O leigo precisa participar desta discussão de alguma maneira, ele precisa vivenciar e experienciar a própria filosofia. Obviamente, não estou sugerindo que a especiação disciplinar e a discussão técnica devam ser evitadas ou combatidas na filosofia. Estou afirmando que a filosofia acadêmica, feita nas universidades, precisa abrigar <i>também</i> discussões menos abstrusas. Aliás, é para isso que a extensão existe.<br /> </p><p><b>2</b><br /><br />Em relação à segunda afirmação, é importante dar o contexto em que ela é feita. Teixeira toma como contraste uma outra opção para enfrentar o problema da ausência de filosofia genuína no Brasil que é a proposta de uma filosofia voltada para os temas brasileiros, a qual ele batiza de “filosofia jabuticaba”. Por trás desta proposta, há uma certa expectativa monumental pelo aparecimento de um grande gênio filosófico brasileiro que extrairia a sua inspiração dos nossos problemas nacionais e, por conseguinte, geraria “o pensamento grandioso legitimamente nacional”. Há dois problemas com essa expectativa. O primeiro, como já mencionei, é que a era dos grandes sistemas e, por conseguinte, dos grandes gênios já passou. Isso vale para a ciência também. Estamos na era da big science, da ciência dos grandes grupos de pesquisa. A filosofia ainda é muito individualista, mas paulatinamente vai se abrindo para formas mais colaborativas da produção do conhecimento. Em algumas áreas, como na filosofia experimental, isso é mais saliente. Minha aposta é que veremos cada vez mais pesquisa filosófica envolvendo outras disciplinas, isto é, interdisciplinar e realizada por grupos médios ou grandes de pesquisa. O segundo problema com a expectativa monumental de um gênio nacional não tem a ver com a monumentalidade, mas com a ideia de uma filosofia nacional. Em grande medida, concordo com o Teixeira que</p><p></p><blockquote><br /><br />A filosofia não tem objetos específicos e aborda todos os tipos de questões, desde a existência de Deus até as implicações éticas das mudanças climáticas. Por isso, defender a abordagem de temas especificamente brasileiros para constituir uma “filosofia brasileira” é um contrassenso. Nunca haverá filosofia brasileira. Haverá filósofos brasileiros, independentemente dos temas que eles abordem.</blockquote><br /><br />Apesar disso e o próprio Teixeira reconhece, os problemas filosóficos têm um lugar e uma história. Quer problema mais local e historicamente situado que o da legitimidade do Estado? Esse foi um problema concreto e vivido pelos europeus que participaram e presenciaram a formação dos estados nacionais na modernidade. Mas não deixa de ser um problema cujo interesse atinge qualquer povo que contemple essa forma de organização social ou outras similares, ou mesmo que venha a refletir sobre o poder político em geral. Neste sentido, a reflexão filosófica tem essa peculiaridade de tornar um problema concreto em um problema de interesse cosmopolita. Mas se é assim, não vejo nenhum problema em darmos atenção também e não exclusivamente a problemas concretos que nos afligem de modo mais incisivo e direto, como é o caso da desigualdade social. Não seria desejável ter mais filósofas e filósofos morais e políticos pensando sobre o assunto? Não sobre as suas causas ou efeitos, pois isto é assunto para a economia e as ciências sociais, mas sobre como podemos melhor articulá-la e pensá-la e sobre como podemos e devemos reagir a ela. Justamente por seremos uma nação marcada por desigualdades extremas, pode ser que estejamos em uma situação epistemicamente privilegiada para notar certas relações estruturantes da desigualdade social que são menos visíveis àqueles que se socializaram e vivem em sociedades menos desiguais. Assim, o caráter situado dos problemas filosóficos não precisa ser visto como um limitador, ao contrário, é um potencializador. Diferentes comunidades podem estar melhor posicionadas para explorar certos problemas justamente pela situação em que se encontram. Por que não iríamos tirar proveito disso?<br /><br />Suponhamos que problemas concretos e que nos afligem agudamente despertassem o interesse de vários de nós, ensejando a formação de comunidades de filósofos e filósofas que se leem, se discutem e se citam e que oferecem reflexões que engajam a nossa população a pensar sobre esses problemas. Se assim fosse, então me parece que teríamos um ótimo caminho para a promoção de filosofia genuína, embora não o único. De modo algum estou sugerindo que temas sociais constranjam centralmente a nossa atividade. Assim como a ciência reduzida à tecnologia perde em potência e fenece em algumas poucas décadas, como já foi historicamente testemunhado, a filosofia reduzida às questões sociais e morais perderia em fecundidade e provavelmente também sucumbiria. Em todo caso, parece que é desejável que desenvolvamos a capacidade de pensar as questões do nosso tempo e lugar e que estejamos em condições de engajar a nossa população nestas reflexões. Se dermos o devido tom filosófico a elas, é de se esperar que essas reflexões despertarão o interesse de outros povos também.<br /><br />Sobre a participação em discussões que já estão em curso no cenário filosófico internacional, não há dúvida de que elas são fundamentais para a nossa inserção e melhoria, e de que não há qualquer boa razão, seja na filosofia, seja na ciência, para nos isolarmos. Contudo, como exploro no próximo comentário, precisamos antes ou ao mesmo tempo superar a nossa falta de confiança filosófica. E por razões que são trazidas pelo próprio Teixeira em seu livro, não vamos adquirir essa confiança através do olhar dos estrangeiros. Temos de cultivá-la sobretudo entre nós, conversando entre nós. Se nós mesmos não nos acharmos interessantes, por que os outros iriam?<br /> <p></p><p><b>3</b><br /><br />Uma vez enunciada, não creio que alguém discordaria da terceira afirmação e da prescrição que ela encerra. Contudo, Teixeira faz muito bem em chamar a atenção para como o desprezo por nós mesmos está enraizado em nossa cultura e em nada foi atenuado nas nossas comunidades científicas e menos ainda na comunidade filosófica brasileira. Prova disso é que não nos estudamos, discutimos e citamos. É praticamente um tabu citar outros brasileiro(a)s em nossos trabalhos. Mesmo na área em que supostamente damos o nosso melhor, a história filosofante da filosofia, e em relação à qual já deveríamos reconhecer a nossa inegável perícia, nos engajamos majoritariamente com intérpretes estrangeiros e negligenciamos os brasileiros. É como se cada novo estudioso de Descartes, Hegel ou Platão no Brasil tivesse que começar o seu trabalho interpretativo sozinho, contando apenas com a ajuda dos distantes estrangeiros europeus e americanos. Por que não confiamos em nós mesmos como hábeis em fazer X (história da filosofia, ciência etc.) mesmo depois de nos termos submetido a um árduo treinamento para nos tornarmos hábeis fazedores de X?<br /><br />O hábito de desprezar a nós mesmos está arraigado, é fruto dos processos colonialistas que formaram a nossa sociedade e cultura. Assim o colonizador nos manteve e nos mantém cativos, intelectuais subalternos. O colonizador manterá o controle sobre o nosso intelecto enquanto procurarmos apenas ou sobretudo no olhar dele o reconhecimento do que e quem somos. O que encontramos no seu olhar, majoritariamente, é o desprezo por nós, a indisposição de aprender o que quer que seja conosco. Com raras e inexpressivas exceções, não nos convidam como <i>keynote speakers </i>de seus eventos, como editores das suas revistas alegadamente internacionais, tampouco nos leem ou citam, mesmo os nossos textos escritos em inglês ou em alguma outra língua europeia e publicados nas revistas que eles mesmos consideram de alto nível. Dessa maneira, sob o olhar deles, aprendemos a nos desprezar desde o ato inaugural da formação da nossa sociedade. Como hábito, esse auto-desprezo é tão transparente que temos dificuldade de percebê-lo, é uma presença invisível que, no entanto, marca e modula cada um de nossos passos e pensamentos. Se não nos desvencilharmos desse mau hábito, especialmente por meio de novas atitudes e práticas pedagógicas, pensando sobretudo nas novas gerações de filósofas e filósofos brasileiros, não vamos, de fato, produzir sistematicamente filosofia, qualquer que seja ela, tampouco uma tradição filosófica viva e rica de discussão que nos sirva e que possa despertar também o interesse da nossa própria população e de outros povos.<br /><br />Um relato pessoal que vai ao encontro da reflexão acima. Um dos primeiros textos que eu publiquei em periódicos nacionais tinha originalmente como centro do debate um artigo de um filósofo brasileiro. A questão tratada era uma tradicional da epistemologia, e eu estava interessado no diálogo com a abordagem à questão proposta por este colega brasileiro. Contudo, um dos pareceristas, embora reconhecendo a qualidade da discussão, condicionou a aprovação do meu texto a uma reformulação do debate, de modo que eu desse menos destaque ao texto do brasileiro e mais aos autores americanos e europeus que mantinham posições similares a do brasileiro. Hoje, não é sem alguma vergonha que confesso ter atendido essa demanda, embora, na época, sem uma posição segura no mercado de trabalho, me vi impelido a fazer essas alterações. Não acho que o parecerista fez essa demanda por má-fé, ele ou ela provavelmente estava mirando a qualidade do texto. Mas isso significa que o desprezo por nós mesmos não está apenas arraigado em hábitos individuais, ele está aparentemente institucionalizado também. Temos de ficar muito alertas ao desestímulo que implicitamente damos à discussão entre nós.<br /> </p><p><b>Uma sugestão de leitura<br /></b><br />Aproveitando a oportunidade, gostaria de sugerir um outro livro nesta temática, que talvez já não esteja tão presente na memória da nossa comunidade, mas que me marcou muito quando o li, mais de 20 anos atrás, ainda aluno de graduação: falo do livro de Gonçalo Palácios, <b>De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio</b> (1998).<br /> </p><p><b>Referências</b><br /><br />COTTINGHAM, J. What is Humane Philosophy and Why is it At Risk? <b>Royal Institute of Philosophy Supplement</b>, v. 65, p. 233–255, out. 2009.<br /><br />KUHN, T. A <b>Estrutura Das Revoluções Científicas</b>. São Paulo: Editora Perspectiva, 1997.<br /><br />PALÁCIOS, G. A. <b>De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio</b>. Goiânia: Editora da UFG, 1998.<br /><br />TEIXEIRA, J. DE F. <b>Filosofia Jabuticaba</b>. São Paulo: Editora FiloCzar, 2021.</p>Eroshttp://www.blogger.com/profile/15293995700737241819noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-14066079.post-62891346338625323632020-02-21T06:24:00.000-08:002020-02-21T06:24:34.019-08:00[201] A ética da crença<br /><br />Voltei ao assunto da ética da crença (veja aqui a minha contribuição anterior <a href="http://filosofemas.blogspot.com/2016/12/194-notas-sobre-etica-da-crenca.html">194</a>) para escrever um texto que possivelmente será publicado como um verbete em um compêndio de epistemologia. Nesta entrada, decidi enfatizar três maneiras pelas quais a discussão sobre normas para crer se relaciona com a ética, algo que nem sempre fica claro neste debate: (1) normas morais servem de analogia para pensar normas para a crença, ainda que os domínios normativos, o epistêmico e o moral, sejam distintos; (2) razões morais são os fundamentos últimos para adotar uma norma para crer e (3) razões morais podem incidir diretamente sobre a legitimidade de uma crença, a crença (o ato de crer) não seria assim um fenômeno puramente epistêmico. O item (3) representa sem dúvida a maneira mais forte pela qual, neste debate, epistemologia e ética se entrelaçam. Sobre ele, abordei sobretudo o trabalho da <a href="https://philpeople.org/profiles/rima-basu">Rima Basu</a> que, a meu ver, é uma das contribuições recentes mais interessantes e inovadoras ao debate da ética da crença.<br /><br />Um rascunho do verbete encontra-se disponível <a href="https://philpapers.org/rec/CARATD-9">aqui</a> e <a href="https://www.academia.edu/41753611/A_%C3%89tica_da_Cren%C3%A7a_verbete_">aqui</a>.Eroshttp://www.blogger.com/profile/15293995700737241819noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-14066079.post-43734323887243323982017-08-15T09:57:00.000-07:002017-08-22T09:27:54.669-07:00[200] A distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação, segundo Reichenbach<div class="tr_bq">
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</div>
A distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação é normalmente apresentada como marcando a diferença entre, por um lado, os processos de pensamento, teste e experimentação que de fato ocorreram em um laboratório ou em um ambiente de pesquisa e que levaram ou contribuíram para alguma descoberta científica e, de outro, os processos de justificação e validação dessa descoberta. Haveria, portanto, uma clara diferença entre descrever como cientistas chegaram a fazer certas alegações científicas, o que seria uma tarefa para as ciências empíricas, como a sociologia, a psicologia e a antropologia da ciência, e justificar essas alegações, o que seria uma tarefa para a epistemologia, uma disciplina normativa e não-empírica. Essa distinção é corriqueira em debates acerca do escopo da filosofia da ciência e teria sido explicitada inicialmente por Reichenbach. Contudo, quando examinamos a maneira como ele circunscreveu as tarefas da epistemologia, notamos que alguns elementos importantes não estão explicitados nessa apresentação da distinção. <br />
<br />
Segundo Reichenbach, a epistemologia tem três tarefas: uma tarefa descritiva e duas tarefas críticas, a avaliativa e a consultiva. Aqui já notamos uma diferença importante em relação à distinção apresentada acima: a epistemologia não é uma disciplina puramente normativa, ela envolve descrição. Em que consiste essa tarefa? Para Reichenbach, de fato é fundamental distinguir a tarefa descritiva da epistemologia da tarefa descritiva da sociologia e da psicologia. A sociologia do conhecimento tem interesse em descrever a relação entre alegações de conhecimento e fatos que são externos ao conteúdo dessas alegações de conhecimento. Assim, pode ser do interesse da sociologia do conhecimento relacionar certas alegações de conhecimento com a classe social dos cientistas que fizeram essas alegações, com certas necessidades econômicas e sociais do período histórico em que tais alegações foram feitas etc. Por exemplo, a afirmação de Kuhn de que a aceitação da teoria copernicana foi favorecida pela necessidade de se fazer uma reforma no calendário (KUHN, 1998, p. 15) é tipicamente uma descrição sociológica, pois relaciona uma fato externo à teoria copernicana com a alegação dessa teoria. Tal descrição nos apresenta uma causa, mas não uma razão para essa alegação. A tarefa descritiva da epistemologia visa antes as relações internas entre os conteúdos das alegações de conhecimento, relações entre conteúdos que ocorrem aos cientistas de uma determinada disciplina. Contudo, a tarefa descritiva da epistemologia precisa ainda ser distinguida da tarefa descritiva da psicologia. A epistemologia não está interessada em descrever o processo real de pensamento de um cientista. O processo real de pensamento é frequentemente vago, confuso, realiza saltos e toma atalhos que, a primeira vista, são difíceis de justificar ou mesmo de compreender. A sequência de pensamentos que ocorre a um cientista no laboratório ou em um ambiente de pesquisa não é o que a epistemologia deve capturar na sua tarefa descritiva, essa é uma tarefa para a psicologia do conhecimento. Em linguagem mais corriqueira, a descrição da sequência de pensamentos que antecede uma alegação de conhecimento pode nos fornece os motivos do cientista para essa alegação, mas não necessariamente as razões que a sustentam. O que a epistemologia pretende, portanto, fazer, na sua tarefa descritiva, é apresentar um substituto para o processo real de pensamento que esclareça ou explicite as razões que o próprio cientista estaria em condições de fornecer para a sua alegação final de conhecimento. As relações internas entre conteúdos que o epistemólogo pretende descrever são de um tipo especial, tratam-se de relações de justificação ou de confirmação. Esse substituto foi chamado de <i>reconstrução racional</i> por Reichenbach:<br />
<blockquote>
A Epistemologia não considera os processos de pensamento na sua ocorrência real, essa tarefa é deixada inteiramente para a psicologia. O que a epistemologia pretende é construir processos de pensamento de uma maneira em que eles deveriam ocorrer se eles fossem ordenados em um sistema consistente, ou construir conjuntos justificáveis de operações que podem ser interpostas entre o ponto de partida e o resultado dos processos de pensamento, substituindo as ligações intermediárias reais. A epistemologia assim considera um substituto lógico ao invés de processos reais. Para esse substituto lógico o termo <b><i>reconstrução racional</i></b> foi introduzido (REICHENBACH, 1961, p. 5) </blockquote>
<br />
Alguns pontos precisam ser enfatizados para deixar claro por que essa tarefa é descritiva e não avaliativa. Em primeiro lugar, a reconstrução racional não é arbitrária, ela é guiada pelo princípio da correspondência, isto é, ela deve preservar tanto quanto possível o pensamento real, embora seja, do ponto de vista explicativo e da compreensão, uma versão melhorada do pensamento real. A reconstrução racional “expressa o que queremos dizer, propriamente falando” (1961, p. 6). Para Reichenbach, as exposições que os cientistas fazem de uma hipótese e das evidências que a sustentam em artigos e relatórios são bastante próximas do que ele pensa ser a reconstrução racional, e ilustram claramente a diferença entre ela e o processo real de pensamento. A reconstrução racional é, assim, uma versão melhorada, mais articulada e esclarecida, dessa exposição. Um segundo ponto relevante acerca da reconstrução racional é que essa tarefa não envolve ainda qualquer avaliação acerca da correção ou verdade do que o cientista toma como sendo casos claros ou indiscutíveis de evidência elementar. O mesmo pode ser dito acerca da validade das operações de justificação que são interpostas entre o ponto de partida e a hipótese ou alegação final de conhecimento. Há ganho de esclarecimento e articulação ao reconstruir esse processo com base nas operações de justificação menos disputáveis e suspeitas entre os cientistas, mas isso ainda não significa que tais operações foram ou estejam sendo submetidas à crítica epistemológica. A reconstrução racional não é crítica, é descritiva, o ganho cognitivo que ela nos fornece é de compreensão e esclarecimento. Por fim, a diferença entre a reconstrução racional de uma cognição ou de uma alegação de conhecimento e o processo de pensamento real que resultou nessa alegação é, para Reichenbach, o que constitui a distinção entre <i>contexto de descoberta</i> e <i>contexto de justificação</i>:<br />
<br />
<blockquote class="tr_bq">
Por exemplo, a maneira pela qual um matemático publica uma nova demonstração, ou um físico, o seu raciocínio lógico para a fundamentação de uma nova teoria, quase corresponderia ao nosso conceito de reconstrução racional; e a bem conhecida diferença entre a maneira do pensador de descobrir o seu teoria e a sua maneira de apresentá-la diante do público pode ilustrar a diferença em questão. Eu irei introduzir os termos <b><i>contexto de descoberta</i></b> e <b><i>contexto de justificação</i></b> para marcar essa distinção (REICHENBACH, 1961, p. 6-7)</blockquote>
Trata-se, portanto, de uma distinção que opera no âmbito da tarefa descritiva. Ela distingue a tarefa descritiva da psicologia da tarefa descritiva da epistemologia. Essa tarefa é necessária para a próxima etapa crítica do empreendimento epistemológico, em que o item reconstruído racionalmente é “julgado em relação a sua validade e confiabilidade” (1961, p. 7). Assim, a distinção feita no início desta seção não corresponde à distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação feita por Reichebach, mas se aproxima da distinção que ele faz entre as tarefas descritiva e crítica da epistemologia.
<br />
<br />
Sobre as demais tarefas da epistemologia, falarei em outra oportunidade. <br />
<br />
<ul>
<li>REICHENBACH, Hans. (1961). <i>Experience and Prediction</i>. Illinois: The University of Chicago Press. </li>
<li>KUHN, Tomas. (1998). <i>A Estrutura das Revoluções Científicas. </i>São Paulo: Editora Perspectiva. </li>
</ul>
Eroshttp://www.blogger.com/profile/15293995700737241819noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-14066079.post-10613181971688062432017-06-25T00:50:00.001-07:002017-06-25T00:50:50.663-07:00[199] Uma implicação metodológica da tese da mente estendida<style type="text/css">p { margin-bottom: 0.21cm; }a:link { }</style>
<br />
<br />
A tese da mente estendida[1] tem implicações metodológicas[2]. Uma bastante óbvia é que a cognição de um organismo deve ser investigada pela observação do organismo no seu ambiente habitual ou pelo menos em uma emulação do mesmo. Se os processos cognitivos de um organismo se estendem ao seu ambiente, se a cognição é um processo que se estende no tempo e resulta da interação recorrente do organismo com o seu ambiente, formando com ele um sistema dinâmico acoplado, então a investigação adequada da cognição desse organismo não pode ser realizada isolando o organismo do seu ambiente habitual. Se, ao contrário, pensamos que os processos cognitivos de um organismo estão completamente encerrados no cérebro desse organismo, então ele pode ser estudado em situações que eliminam o seu ambiente habitual. Na verdade, nessa perspectiva tradicional, tanto melhor eliminar o ambiente habitual do organismo para se ter um controle maior sobre as variáveis que podem ter alguma influência sobre o comportamento do organismo e, portanto, afetar os resultados do estudo. Quanto mais isolado do seu ambiente habitual, melhor seria a nossa posição para desvendar os princípios internos que são responsáveis pelas cognições e comportamentos desse organismo. Para o defensor da mente estendida, esse procedimento é inadequado. Isolado do seu ambiente, o organismo não estaria em condições de exibir apropriadamente as habilidades adquiridas por um processo de interação com o seu ambiente, isto é, o organismo não estaria em condições de manter a dinâmica interativa estabelecida com o seu ambiente e que constitui em parte os seus processos cognitivos. Além disso, os efeitos colaterais sobre o próprio organismo por ele ter sido retirado do seu ambiente habitual podem ser tantos que em muitos casos o forçamos a um estado de anomia comportamental. O investigador pode ser levado então a tomar como normal o que é absolutamente anômalo. <br />
<br />
Por exemplo, pode-se pensar que a percepção de um organismo é regida por um conjunto de leis ou regularidades fixas internas, resultantes do processo de seleção natural. Tais leis produziriam as mesmas percepções diante das mesmas estimulações sensoriais. Esperaríamos então que essas regularidades se manifestassem em quaisquer circunstâncias em que o organismo se encontre. Retirar o organismo do seu ambiente não teria qualquer efeito sobre a sua percepção, e ajudaria o investigador no controle das variáveis. Assim, imobilizar um indivíduo numa cadeira de forma a impedi-lo de realizar movimentos com o corpo, a cabeça ou até mesmo com os olhos ajudaria a eliminar as variáveis ambientais que poderiam interferir numa pesquisa sobre a visão. Nesse caso, poderíamos identificar precisamente a informação que chega na retina num certo instante e investigar como ela é transformada na experiência visual que temos. Muita pesquisa sobre a visão foi e é feita assim. O mesmo não se aplica a concepções da percepção filiadas à tese da mente estendida. Segundo a teoria sensoriomotora da percepção, a percepção é antes pensada como um sistema flexível apto a rastrear e a detectar contingências sensoriomotoras ao longo do tempo. Ao interagir e explorar o ambiente, adquirimos e assimilamos habilidades que vinculam e associam certos tipos de ações e operações direcionadas a um objeto ambiental com um certo fluxo sensorial. A percepção é um processo que se estende ao longo do tempo e envolve ações constitutivamente, pois sem movimento não produzimos as contingências sensoriomotoras que a percepção rastreia. Se queremos compreender a capacidade perceptiva de um organismo, temos de considerá-lo no ambiente em que ele se tornou hábil a lidar com certas contingências sensoriomotoras. Olhar ao redor e se mover são fundamentais para o próprio processo de perceber. Isso não significa que não possa haver estudos controlados em laboratórios. Nada nesse sentido está sendo afirmado. Esses estudos precisam, no entanto, emular parte relevante do ambiente do organismo e possibilitar que o organismo tenha nesse novo cenário as interações exploratórias que ele normalmente teria no seu ambiente habitual. Do contrário, não estaríamos estudando a cognição do organismo, estaríamos antes impossibilitando o organismo de manifestar a sua cognição, forçando-o a um estado de anomia. <br />
<br />
A título de ilustração da importância do ambiente para o estudo da cognição, é interessante notar como parte da literatura sobre a cognição animal, mesmo não estando necessariamente apoiada na tese da mente estendida, vem, segundo o relato de Marc Bekoff e Jessica Pierce, paulatinamente reconhecendo a importância de estudar os animais não-humanos no seu ambiente e não em situações de confinamento nada semelhantes ao seu habitat natural, situações essas que conduzem o organismo a desenvolver patologias comportamentais: <br />
<blockquote class="tr_bq">
Scientists ignore behavioral pathologies such as stereotypies at their peril. Some researches seem to think that utterly barren environments are best, because they are all the same and you don’t introduce any variability into your study. <b>All the animals will be doing the exact same thing: nothing</b>. Barren cages are also cheap and easy, which is an added bonus for the harried researcher. Yet Garner argues that the opposite is true: enrichments may improve the validity, reliability, and replicability of results by reducing the number of abnormal animals introduced into a given study (The Animals’ Agenda, p. 87, ênfase minha). </blockquote>
Assim, se a concepção da mente estendida estiver correta, devemos arranjar a investigação das ciências da cognição de maneira similar à luminosa proposta de Hume para como proceder a investigação da natureza humana (não pretendo fazer nenhuma sugestão anacrônica com essa observação):<br />
<blockquote style="margin-bottom: 0.5cm;">
We must therefore glean up
our experiments in this science from a cautious observation of human
life, and take them as they appear in the common course of the world,
by men’s behaviour in company, in affairs, and in their pleasures
(Treatise of Human Nature, “Introduction”). </blockquote>
---<br />
[1] Na postagem <a href="http://filosofemas.blogspot.co.uk/2017/03/197-breve-introducao-tese-da-mente.html">[197]</a>, faço uma breve apresentação da tese da mente estendida. <br />
[2] Esta recente <a href="https://www.youtube.com/watch?v=rG3daqNH700&feature=share">conferência (2017)</a> do Evan Thomson é bastante informativa e esclarecedora das implicações metodológicas do <i>enactivism</i>, um parente muito próximo da tese da mente estendida e que normalmente a envolve. Eroshttp://www.blogger.com/profile/15293995700737241819noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-14066079.post-10339063365780069362017-06-10T03:19:00.000-07:002017-06-10T05:51:34.380-07:00[198] Cegueira indutiva e arbítrioPerdemos muito se desaprendemos a raciocinar acerca da incerteza. Observando os eventos mais recentes da política nacional, parece que estamos perdendo essa habilidade e colocando em seu lugar o arbítrio. Como popperianos, ficamos cegos para as induções, mas, diferente deles, não mergulhamos no ceticismo diante de induções, passamos antes a avançar ou a recuar conclusões conforme nos convém. Um mesmo conjunto de evidências que, em uma situação, é tomada como suficiente para uma certa conclusão é dito insuficiente em outra situação completamente análoga. Entre uma situação e outra, apenas a ‘convicção’ individual variou. É verdade que o problema não é só epistêmico. Absolutamente desconfiados uns dos outros, nos escondemos atrás de um dedutivismo bocó, e arbitramos em nosso favor tudo que não for absolutamente certo ou provado dedutivamente a partir daí. O que se vê é uma certa perversão da manobra metodológica de Descartes: supomos, se nos apetece, aquilo de que podemos duvidar. Bolhas e guetos em franca tensão são assim formados e erguidos. O frenesi delirante e fanático toma conta de alguns e os leva a arbitrar até o que é absolutamente certo, cortando então os últimos laços que nos mantinham atados. Fora do tecido social comum arranjado pela prática longa e duramente conquistada de oferecer e receber razões, o indivíduo isolado e desconfiado manifesta algo muito aquém da racionalidade. O desfecho é imprevisível a partir da posição intencional. Eroshttp://www.blogger.com/profile/15293995700737241819noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-14066079.post-12040771552238971012017-03-19T12:43:00.000-07:002020-03-17T04:23:40.389-07:00[197] Breve introdução à tese da mente estendida<style type="text/css">p { margin-bottom: 0.21cm; }a:link { }</style>
<br />
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
A tese da mente
estendida é distinta e não se confunde com o externismo acerca dos conteúdos
mentais. Nesta breve introdução, apresento em linhas gerais o externismo acerca dos conteúdos mentais para, em seguida, contrastá-lo com a tese da mente estendida. Identifico e apresento, então, os principais comprometimentos da tese da mente estendida. <br />
<br />
A tese do externismo acerca dos conteúdos mentais afirma que as relações causais que temos com
o ambiente determinam, de alguma forma, o <i>conteúdo</i> dos nossos
estados mentais, ou seja, aquilo que percebemos, ou aquilo acerca do
qual pensamos algo, ou aquilo que desejamos etc. depende dos objetos
com os quais interagimos causalmente. Um argumento comum em favor dessa tese é inspirado no argumento clássico de Putnam para o externismo semântico[1]. Imaginemos um planeta muito semelhante ao nosso, praticamente gêmeo nas
aparências. Ele é abundante em um líquido muito semelhante à água,
povoado com seres inteligentes como nós e que usam esse líquido
para a sobrevivência tanto quanto nós. Esse planeta é tão
semelhante ao nosso que lá você encontra um "gêmeo" (doppelgänger) seu, alguém com a sua aparência, com praticamente a
mesma história que a sua, as mesmas relações com outras pessoas etc. Na Terra Gêmea, o líquido que os seus
habitantes bebem para matar a sede também é chamado de “água”.
Contudo, na Terra Gêmea, o líquido que os habitantes de lá chamam
de “água” não é água, isto é, não é H2O, mas uma
substância com uma composição química diversa, digamos, XYZ. Apesar de um falante da Terra e o seu gêmeo da Terra
Gêmea terem as mesmas experiências internas (do ponto de vista fenomenológico) quando estão diante do
líquido que chamam de “água”, eles têm crenças e pensamentos distintos quando, por exemplo, afirmam que "a água mata a sede". O habitante da
Terra pensa em água ao expressar sinceramente a sua crença por meio desse enunciado, enquanto o seu gêmeo da Terra gêmea pensa em XYZ quando expressa sinceramente a sua crença por meio do mesmo enunciado. A
diferença entre os pensamentos expressos pelo enunciado "a água mata a sede" quando dito
pelo habitante da Terra e quando dito pelo habitante da Terra Gêmea
se deve ao diferente histórico de relações causais que esses
habitantes têm com os objetos e substâncias dos seus respectivos
ambientes. Assim, muito embora o habitante da Terra e o habitante da
Terra Gêmea tenham estados cerebrais semelhantes ou
idênticos, o conteúdo dos seus estados mentais difere. A aparência
da água para o habitante da Terra não é diferente da aparência da
substância XYZ para o habitante da Terra Gêmea, mas eles têm pensamentos diferentes quando usam o termo “água” para se referir à
substância que encontram em seus respectivos planetas[2].
</div>
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<br /></div>
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A tese da mente
estendida faz uma alegação diferente. Ela sustenta que pelo menos
<i>alguns </i>dos <i>estados</i> ou <i>processos</i> mentais do
indivíduo são constituídos pelas interações <i>ativas </i>que este indivíduo
tem com o ambiente. É uma tese sobre estados ou processos mentais,
não sobre o conteúdo de estados mentais. Essa tese pode significar,
por exemplo, que algumas crenças do indivíduo se estendem para fora
do seu cérebro, ou que o processo cognitivo que resulta na <i>percepção</i>
de um tomate se estende para fora do cérebro.
</div>
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<br /></div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
A tese da mente
estendida foi explicitamente introduzida por Clark e Chalmers no
artigo “The Extended Mind”[3], embora versões dela possam ser
encontradas na obra de Merleau-Ponty, Michael Polanyi, William James,
James Jerome Gibson e outros. No artigo de Clark e Chalmers, a tese foi articulada a partir de um experimento mental. Somos
convidados a imaginar um sujeito, Otto, cujos mecanismos cerebrais
responsáveis pela memória de longo prazo foram severamente
danificadas. Otto começa a usar um caderno de notas para registrar
as informações que são relevantes para as suas tarefas cotidianas.
Com o tempo, Otto se torna fluente, habilidoso e confiável na
recuperação de informações registradas no caderno. Se o
comparamos com Inga, uma pessoa com memória normal, parece que o
caderno cumpre na cognição de Otto o mesmo papel que as partes
cerebrais responsáveis pela memória de longo prazo cumprem para
Inga. Imagine agora que Inga deseja ir à Casa de Cultura Mario
Quintana. Ela consulta a sua memória e lembra que ela fica na Rua
dos Andradas, no Centro Histórico. Se ela é confiável em recuperar
essa informação, então diríamos que, antes de uma consulta, ela
tem a crença não-ocorrente de que a Casa de Cultura Mario Quintana
está localizada na Rua dos Andradas. Agora imagine que meses atrás Otto
registrou essa informação no seu caderno depois de visitar a Casa
de Cultura. Otto agora quer ir na Casa de Cultura. Ele manipula o seu
caderno e em segundos recupera a informação da sua localização.
Vamos supor que ele seja tão confiável quanto Inga na recuperação
dessa informação. Assim, o caderno de notas parece desempenhar no ato de lembrar de Otto a mesma <i>função</i>[4] que as partes responsáveis pela memória de longo prazo desempenham no ato de lembrar de Inga. Não seria razoável, então, nessas condições,
dizer que, antes da consulta, Otto tinha a crença não-corrente de que a Casa de
Cultura Mario Quintana está localizada na Rua dos Andradas? Se sim,
então parece que essa crença se estende para fora do cérebro de
Otto, ela envolve o caderno que ele usa para registrar e recuperar
informações relevantes. Segundo essa leitura do experimento mental
de Clark e Chalmers, a crença de Otto, que é um <i>estado mental</i>,
se estende ao seu caderno de notas[5].<br />
<br /></div>
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</div>
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Um caso mais mundano.
Um sujeito está jogando Tetris e precisa decidir se a peça que
aparece na parte superior da tela pode ser encaixada nas peças na
parte inferior da tela. O sujeito pode imaginar essa peça
rotacionada e comparar essa representação gerada com as peças na
parte inferior da tela. Por meio desse processo, ele resolve a tarefa
cognitiva de decidir se a peça nova pode ser encaixada ou não.
Alternativamente, ele poderia, usando um controle, rotacionar a peça
na parte superior da tela e comparar diretamente a peça em sua nova
orientação com as peças na parte inferior da tela. Nesse caso, o
indivíduo teria descarregado nas suas interações com o ambiente
parte do processo cognitivo que de outro modo ele teria de levar
adiante pela imaginação. Por meio de ações e intervenções no
ambiente, ele realiza parte do processo que cumpre a tarefa cognitiva
de decidir se a peça nova pode ou não ser encaixada nas peças na
parte inferior da tela. Nesse caso, o <i>processo cognitivo</i> se
estende para fora do cérebro, ele envolve as operações de
rotacionar a figura na tela do computador.<br />
<br />
Em ambas as situações, as interações do indivíduo com o ambiente são ativas, isto é, elas envolvem comportamentos dirigidos por intenções, por exemplo, a manipulação do caderno de notas ou a movimentação de um controle para rotacionar peças na tela. Assim, essas interações envolvem ações do indivíduo. Para Clark e Chalmers, esse é um ponto importante para distinguir o <i>externismo ativo</i> que eles defendem do externismo do conteúdo dos estados mentais, que eles qualificam como passivo (1998, p. 8-9). Essas considerações são importantes para distinguir e explicitar como o ambiente importa para a tese da mente estendida e para a tese do externismo de conteúdo. No caso desse último, (1) as interações do indivíduo com o ambiente não precisam ser ativas e (2) importa muito mais o histórico de interações causais do que as interações mais recentes. Por isso mesmo, se o indivíduo da Terra for transportado para a Terra Gêmea, ele continua a pensar em água quando usa referencialmente o termo "água", ainda que esteja agora interagindo com a susbstância XYZ - consequentemente, tendo crenças falsas. Em contraste, para o externismo ativo, as interações têm de ser ativas e importa mais o ambiente aqui e agora, isto é, o ambiente contemporâneo às interações ativas. O jogador de Tétris realiza agora a sua tarefa cognitiva rotacionando a peça que se encontra na parte superior da tela. Importa apenas o ambiente envolvido nas suas interações ativas e correntes. </div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
A principal dificuldade
para a tese da mente estendida, seja aplicada a estados mentais, seja
aplicada a processos cognitivos, é apresentar razões para preferir
a hipótese de que as interações com o ambiente <i>constituem
</i>estados mentais e processos cognitivos ao invés da hipótese de
que elas são <i>condições causais habilitadoras</i>, ainda que
necessárias, para o vir a ser desses estados mentais e processos
cognitivos[6]. No caso de Otto, poderíamos dizer que as manipulações
do caderno o habilitam a perceber a informação de que a Casa de
Cultura Mário Quintana se localiza na Rua dos Andradas. Essas
manipulações habilitam a sua percepção, que é onde começa a
cognição que o levará à crença, baseada então na percepção e não na memória, sobre a localização da Casa de
Cultura. Os estados mentais de Otto não se estenderiam, então, para
fora do cérebro, embora dependam casualmente do ambiente para
existirem. O caso
do jogador de Tetris poderia ser reinterpretado de modo semelhante.<br />
<br />
A hipótese constitutiva é defendida pela alegação de que, ao menos em alguns casos e situações, o organismo e o ambiente estão tão fortemente acoplados um ao outro que a melhor explicação para o comportamento do organismo exige a consideração de variáveis ambientais e a melhor explicação para a alteração dessas variáveis ambientais exige a consideração de variáveis do organismo. Assim, o organismo e o ambiente estão relacionados em um sistema acoplado (<i>coupled system</i>). Sistemas dessa natureza, em que as relações causais entre organismo e ambiente são simétricas, isto é, características do organismo e do ambiente constrangem causalmente umas as outras ao longo do tempo, são sistemas que sustentam a leitura constitutiva da interação entre organismo e ambiente e, portanto, ao menos nesses casos, apoia a tese da mente estendida. Nesses casos, a retirada de parte do ambiente ou de parte do organismo teria um efeito desregulador no comportamento de ambos. O papel do ambiente não seria, portanto, apenas o de habilitar causalmente processos e estados cognitivos no organismo[7].<br />
<br />
Pode-se ainda discutir por quais critérios determinamos se um sistema é acoplado ou não. Clark sugeriu critérios como o de fluidez, transparência e disponibilidade. No caso de Otto, por exemplo, a recuperação de uma crença precisa ser fluida, o que só ocorrere depois que Otto se torna experiente no uso do caderno de notas, transparente, isto é, ele não infere a partir do que vê escrito no caderno de notas que memória ele tem, mas, pela manipulação fluente do caderno, recupera diretamente certa memória, e, por fim, a recuperação precisa estar disponível, isto é, ela é confiável, na maioria das vezes em que Otto tenta recuperar uma certa memória, ele é bem sucedido. <br />
<br />
Vemos, assim, que a tese da mente estendida[8][9] envolve pelo menos três ideias: o externismo ativo, que enfatiza a relevância do ambiente corrente para os estados e processos cognitivos, o acoplamento entre ambiente e organismo, que assinala a indispensabilidade de qualquer um dos termos para explicar o desdobramento de ambos, favorecendo a leitura constitutiva da interação, então causal e simétrica, entre organismo e ambiente, e o funcionalismo, que rejeita a relevância da distinção entre interno e externo para a compreensão da mentalidade e da cognição. <br />
<br /></div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
</div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
[1] O externismo semântico é uma tese sobre o significado de palavras ou termos, enquanto o externismo do conteúdo de estados mentais é uma tese mais geral sobre o conteúdo de estados mentais, isto é, estados mentais que exibem intencionalidade. Essas teses só são substancialmente distintas se <i>não</i> for o caso que a linguagem seja superveniente a fatos mentais, pois então seria possível que dois indivíduos com exatamente os mesmos estados mentais (o mesmo tipo de veículo e<i> conteúdo</i>), inclusive os mesmos pensamentos, se referissem (mas não pensassem) a coisas distintas ao usar o mesmo termo nas mesmas circunstâncias em virtude de seus diferentes históricos de interação causal com o ambiente, os quais, então, não afetariam os pensamentos e conceitos desses indivíduos. Porém, se a linguagem for superveniente a fatos mentais, então argumentos para o externismo semântico podem ser facilmente refraseados para sustentar o externismo acerca do conteúdo de estados mentais (sobre esse ponto, veja McGinn, "<a href="https://www.jstor.org/stable/2025795?seq=1#page_scan_tab_contents">Charity, Interpretation, and Belief</a>", 1977, p. 532-33). O argumento clássico para o externismo semântico encontra-se em Putnam, por exemplo, em "<a href="http://mcps.umn.edu/assets/pdf/7.3_Putnam.pdf">The meaning of ‘meaning’</a>". In: <i>Mind, Language and Reality: philosophical papers</i>. Cambridge: Cambridge University Press, 1975, p. 215-271. Em obras posteriores, Putnam apresentou também argumentos para o externismo do conteúdo de estados mentais, veja, por exemplo, a discussão sobre cérebros em uma cuba em <i>Razão, Verdade e História</i>, onde o alvo de Putnam é a representação em geral e não apenas expressões linguísticas. Agradeço ao Vinicius Rodrigues pela sugestão de deixar mais clara a diferença entre esses dois tipos de externismos. </div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
[2] Para uma apresentação e discussão detalhada dos argumentos de Putnam tanto para o externismo semântico quanto para o externismo mais geral do conteúdo do estados mentais, veja Schirmer dos Santos, César. "<a href="https://www.google.co.uk/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=2&ved=0ahUKEwijxOiztOPSAhXJJsAKHaIyBysQFggkMAE&url=http%3A%2F%2Frevistas.pucsp.br%2Findex.php%2Fcognitio%2Farticle%2Fdownload%2F16285%2F14887&usg=AFQjCNFsNi2qVhcna83brW97-Jwwa4edmg&sig2=gr9ZaGiEko7vKtTvud-jng">Os significados não estão na cabeça: Putnam sobre o significado e a intencionalidade</a>". <i>Cognitio-Estudos</i>, V. 11, N. 1, 2014, p. 86-97.</div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
[3] Clark, Andy & Chalmers, David. "<a href="http://consc.net/papers/extended.html">The Extended Mind</a>". <span class="a" style="left: 2748px; top: 2893px;"><i>Analysis</i>, V. 58, N.1, 1998, p. 7-19. Um volume crítico em torno desse artigo foi organizado por Richard Menary. <i>The Extended Mind</i>. Cambridge, MA: The MIT Press, 2010. </span>
</div>
<div class="ff3" style="font-size: 84px;">
</div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br />
[4] É comum tomar a tese da mente estendida como comprometida com o <i>funcionalismo</i>, que identifica fenômenos mentais de acordo com os seus papeis funcionais e causais. Justamente por que o caderno de notas cumpre, na cognição de Otto, a mesma função que as partes do cérebro responsáveis pela memória de longo prazo cumprem na cognição de Inga, a mente pode se estender para fora do cérebro na medida em que partes do ambiente venham a cumprir as mesmas funções que eram antes cumpridas por partes do cérebro. Para uma discussão mais detalhada do papel do funcionalismo na tese da mente estendida, veja Rowlands, Mark. <i>The New Science of the Mind: From Extended Mind to Embodied Phenomenology</i>. Massachusetts: The MIT Press, 2010. p. 98-104. <br />
<br /></div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
[5] Para uma discussão mais detalhada sobre as interpretações desse experimento de pensamento, veja Rowlands, Mark. <i>The New Science of the Mind: From Extended Mind to Embodied Phenomenology</i>. Massachusetts: The MIT Press, 2010. p. 64-67.<br />
<br />
[6] Veja Ned Block elaborando essa objeção nesta conferência: https://www.youtube.com/watch?v=1fG8eIJp5AY<br />
<br />
[7] Um exemplo muito interessante de sistema acoplado envolvendo dois agentes pode ser visualizado <a href="http://www.emadynamics.org/bi-agent-%20sheep-herding-game/">aqui</a>. Basicamente, dois agentes têm a tarefa de manter um certo número de ovelhas virtuais em uma determinada região da tela. Por meio de controles, eles podem repelir ovelhas que tentam sair dessa região. Inicialmente, eles tentam estratégias individuais, perseguindo ovelhas fugitivas. No entanto, elas não se mostram efetivas. Após uma sequência de interações, seus comportamentos começam a se coordenar uns com os outros estabilizando em uma estratégia de movimento oscilante em torno das ovelhas que se mostra efetiva. Para uma explicação mais detalhada desse sistema, veja Richardson, Michael J. et al. “Modeling Embedded Interpersonal and Multiagent Coordination.” <i>Proceedings of the 1st International Conference on Complex Information Systems</i> (January), 2016, p. 155–64.<br />
<br />
[8] Para uma lista da bibliografia relevante sobre esse assunto, veja <a href="http://www.oxfordbibliographies.com/view/document/obo-9780195396577/obo-9780195396577-0099.xml">The Extended Mind Thesis - Oxford Bibliographies</a>.<br />
<br />
[9] Para a discussão de uma implicação metodológica dessa tese, veja a postagem <a href="http://filosofemas.blogspot.co.uk/2017/06/199-uma-implicacao-metodologica-da-tese.html">[199]</a>. Para a discussão da extensão dessa tese para o que pode ser chamado de <i>tese da mente socialmente estendida</i>, veja o artigo "<a href="https://www.academia.edu/31676099/Socially_extending_the_mind_through_social_affordances">Socially Extending the Mind through Social Affordances</a>". Por fim, para uma abordagem mais detalhada do tema, veja o artigo "<a href="https://philpapers.org/rec/CARATD-10">A tese da mente estendida à luz do externismo ativo</a>". </div>
Eroshttp://www.blogger.com/profile/15293995700737241819noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-14066079.post-51415205059454858912017-03-12T01:33:00.001-08:002021-12-26T03:32:41.381-08:00[196] Especialização, (ir)relevância, e progresso do conhecimento<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<blockquote class="tr_bq">
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
"I want to explain
why I think that much of the specialisation of contemporary
philosophy is not a bad thing after all. In large part my argument
depends on the engagement of philosophy with rest of knowledge. I
want to defend the specialisation in philosophy that is a consequence
of the overlap between a subfield of philosophy and another
specialised subject matter, where that may be the history of
philosophy itself [...] Our knowledge of the world has grown immeasurably
since ancient times, and philosophers would be failing in their role
if they did not specialise sufficiently to know enough to be able to
point out exactly where lie the limits of our understanding"[1].</div>
</blockquote>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
Não
é incomum a
ciência como um todo ser acusada de realizar muitas pesquisas
irrelevantes[2]. Serviria de indício para essa acusação o fato de que
artigos científicos são muito pouco lidos pelo público em geral.
Nessa linha, alguém poderia alegar que a pesquisa acadêmica não
atende as demandas sociais e existenciais que nos afligem
diariamente e, por isso, não
desperta o interesse. Contudo, é verdade que a ciência produz muitas
pesquisas
irrelevantes? Nas áreas mais tocadas pelo produtivismo, há
certamente incentivo para a indiferença quanto à relevância e para
o relaxamento do padrão de qualidade. Esse é um problema com o qual
a comunidade científica tem de lidar mais seria e urgentemente[3]. O que
dizer da ciência funcionando em condições mais benignas? Há uma
característica fundamental da ciência contemporânea que
poderia explicar em boa medida esse amplo desinteresse pelos artigos
acadêmicos, mas não a sua suposta irrelevância: a especialização. Sem
ela, não teríamos o
conhecimento acurado e refinado que possuímos hoje nas mais
diferentes áreas do saber. Ao mesmo tempo, o preço que pagamos por
esse conhecimento profundo é justamente a sua opacidade para a
maioria dos indivíduos.
</div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
Mas
não seria
importante que os resultados avançados fossem explicados em uma
linguagem não-técnica para não-especialistas? Sem dúvida, esse
não é um trabalho de importância menor, meramente informativo, de
divulgação e, na melhor das hipóteses, necessário para justificar
ao contribuinte por que ele financia a pesquisa. Esse é um trabalho
que envolve criar pontes entre diferentes linguagens e entre
diferentes disciplinas, é um trabalho que tem também como
resultado, quando bem feito, maior integração entre as partes que
compõem a rede complexa que é o conhecimento humano, é um trabalho
que nos faz avançar na compreensão do próprio conhecimento humano.
Uma razão ainda mais fundamental para que haja esse tipo de trabalho é
que não podemos esperar que as pessoas aceitem, e por conseguinte, se
beneficiem da verdade daquilo que elas não têm a menor ideia de como
pode vir a ser conhecido. A autoridade do especialista não implica
autoritarismo intelectual. Para que o cidadão defira aos especialistas,
ele precisa reconhecê-los como tais e confiar neles. É fundamental,
portanto, que ele entenda minimamente o que se passa na Ciência. Para
que esse tipo de trabalho de tradução e conversação com o público leigo
seja bem feito, exige-se tempo, dedicação e um certo tipo de
especialização[4]. Não é um tipo de trabalho que devamos exigir de
todo especialista. Também aqui nos beneficiamos da divisão social
do trabalho cognitivo[5].
</div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
Por fim, é preciso
tomar algum cuidado também com a alegação de que um resultado de
pesquisa é irrelevante. Irrelevante para quem ou em relação ao
que? Um resultado de pesquisa ser diretamente irrelevante para
aplicações ou para a solução de problemas sociais ou mesmo
existenciais não implica que ele seja irrelevante para a dinâmica
da disciplina a que pertence e para o progresso do conhecimento
científico como um todo. De acordo com Thomas Kuhn[6], sem puzzles,
a maioria deles diretamente insignificantes para as nossas demandas
mais urgentes e práticas, não há ciência normal. Muitas das
grandes questões que, do ponto de vista social ou existencial,
gostaríamos que fossem respondidas - por exemplo, o que veio, se
algo, antes do big bang? - não contam ainda com um paradigma ou
programa de pesquisa que nos dê alguma orientação mais detalhada
acerca de como respondê-las. Ciências maduras lidam com questões
que podem ser abordadas e respondidas pelas ferramentas conceituais e
instrumentais fornecidas pelos paradigmas que as governam. No caso
dessas ciências, o critério de relevância para pesquisas é muito
mais interno à disciplina que externo. Foi só assim que obtivemos o progresso
notável em termos de acurácia e precisão nos últimos séculos em
disciplinas como a física, a química e a biologia. Abrir mão da
especialização significaria abrir mão do controle e da compreensão
aprofundadas que obtivemos da natureza.<br />
<br />
A filosofia não
é ciência, muito menos ciência normal. Todavia, na medida em que ela se
dedica a refletir acerca de alguma área do saber, ela terá que se
especializar para fazer justiça à especialização que esse saber encerra.
Nem toda investigação filosófica será tão hermética, mas é difícil
conceber e conceder que alguma séria não atinja uma profundidade e
complexidade que é igualmente difícil de acompanhar e assimilar. <br />
</div>
<div style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div style="margin-bottom: 0cm;">
[1] Ladymen, James. “In Praise of
Specialisation”.
<a href="http://www.philosophersmag.com/index.php/tpm-mag-articles/11-essays/69-in-praise-of-specialisation">http://www.philosophersmag.com/index.php/tpm-mag-articles/11-essays/69-in-praise-of-specialisation</a></div>
<div style="margin-bottom: 0cm;">
<br />
[2] Why Academics are losing relevance in Society". <a href="https://theconversation.com/why-academics-are-losing-relevance-in-society-and-how-to-stop-it-64579?">https://theconversation.com/why-academics-are-losing-relevance-in-society-and-how-to-stop-it-64579?</a><br />
<br /></div>
<div style="margin-bottom: 0cm;">
[3] "Fewer numbers, better sicence" <a href="http://www.nature.com/news/fewer-numbers-better-science-1.20858?WT.mc_id=TWT_NatureNews"> http://www.nature.com/news/fewer-numbers-better-science-1.20858?WT.mc_id=TWT_NatureNews</a><br />
<br />
[4] Nessa excelente <a href="http://www.slate.com/articles/health_and_science/science/2017/04/explaining_science_won_t_fix_information_illiteracy.html?wpsrc=sh_all_tab_tw_bot">matéria</a>, o autor fornece várias razões para pensar que a comunicação de resultados científicos para leigos demanda especialização. E o que é alarmante, cientistas normalmente falham em comunicar apropriadamente.<br />
<br />
[5] Kitcher, Philip. "The Division of Cognitive Labor". <i>The Journal of Philosophy</i>, V. 87, N. 1, 1990, p. 5-22. </div>
<div style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
[6] Kuhn, Thomas. “A
ciência normal como a resolução de quebra-cabeças”. In: <i>A
Estrutura das Revoluções Científicas</i>. Editora Perspectiva,
1997, p. 43-56.
</div>
Eroshttp://www.blogger.com/profile/15293995700737241819noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-14066079.post-46103607401664872512017-02-11T03:23:00.001-08:002022-12-18T02:42:04.810-08:00[195] Popper e o Princípio da Racionalidade<style type="text/css">p { margin-bottom: 0.21cm; }a:link { }</style>
<br />
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
Popper é conhecido por
ter proposto a falsificabilidade como critério de demarcação entre
ciência e não-ciência. Assim, uma teoria com pretensão de
cientificidade deve em princípio ser falseável ou testável. Uma
teoria é falseável se ela faz proibições, isto é, se ela afirma
que determinados eventos não vão ocorrer. Caso ocorram, a teoria é
falseada. Na verdade, a falsificação sozinha não é suficiente
para separar ciência de não-ciência, como reconhece o próprio Popper. Ela é apenas um critério de
demarcação entre sistemas empíricos e não-empíricos. Nada
impede que um grupo de cientistas mantenha na prática uma
sistema empírico imune ao falseamento, muito embora ele seja, em
princípio, falseável. Por exemplo, se esse grupo de cientistas
rejeita sistematicamente os relatos da ocorrência de eventos que são
proibidos pela teoria, ele age de modo não-crítico e não-científico. Assim, para caracterizar a demarcação
adequadamente, Popper se vale também de regras metodológicas,
regras que prescrevem como o cientista deve se comportar em relação
a um sistema empírico. Entre as regras metodológicas mais gerais
está a de que o cientista deve evitar estratégias que acabem por
imunizar um sistema teórico da refutação. Por exemplo, o cientista
deve evitar a estratégia de rejeitar sistematicamente relatos da
ocorrência de eventos que são proibidos pela teoria. A
falsificabilidade e as regras metodológicas, em conjunto, demarcaram
ciência de não-ciência.
</div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
Embora a maior parte da
filosofia da ciência de Popper tome como alvo de suas análises a
ciência natural, Popper pretende que elas se apliquem igualmente às
ciências humanas. O falsificacionismo não seria menos necessário
nas ciências humanas para demarcar sistemas empíricos de sistemas
não empíricos e as regras metodológicas igualmente não seriam menos necessárias para prescrever a conduta adequada dos cientistas
sociais. Neste breve comentário, quero apenas chamar a atenção
para a discussão na qual Popper se envolveu em torno do Princípio
da Racionalidade. Na <i>L</i><i>o</i><i>gica das Ciências Sociais</i>,
Popper propõe, a partir da análise da lógica da Economia, que o
método de investigação que ele identifica nessa ciência, e que
ele chama de “lógica situacional”, poder ser aplicado a todas as
ciências humanas para a explicação da ação humana.
Grosseiramente, esse método envolve a modelagem da situação em que
o agente se encontra, identificando o objetivo do agente e os
conhecimentos que ele tem a sua disposição. Essa modelagem, quando
é, nos termos de Popper, “animada” pelo Princípio da
Racionalidade, formando assim um sistema empírico, nos permite
prever a ação apropriada para o agente na situação em que ele se
encontra. Se o agente falha em agir conforme o previsto, o sistema
empírico que serviu de base para a previsão é falseado.
</div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
Chamou muita atenção
nessa discussão de Popper acerca das ciências sociais a sua
alegação de que, na revisão de sistemas empíricos que seguem o
método da lógica situacional, o Princípio da Racionalidade é
aproximadamente verdadeiro e que ele deve ser preservado. Essa
alegação, em princípio, parece ir de encontro ao falsificacionismo
e à atitude crítica que Popper defende, e ele foi muito criticado
por isso. Tentarei esboçar uma resposta a essa crítica.
</div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
Antes de mais nada,
parece-me que precisamos ter um pouco mais claro o Princípio da
Racionalidade. Em um primeira formulação, Popper diz:
</div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<blockquote class="tr_bq">
<div align="justify" style="break-before: auto; margin-bottom: 0cm; margin-left: 4cm; page-break-before: auto;">
os agentes sempre agem de maneira apropriada à situação em que
se encontram” (“O Princípio da Racionalidade [PR], 352).</div>
</blockquote>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
Em seguida, ele
caracteriza alguns elementos da situação:
</div>
<blockquote class="tr_bq">
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="justify" style="break-before: auto; margin-bottom: 0cm; margin-left: 4cm; page-break-before: auto;">
Neste ponto, devemos lembrar que a situação, tal como eu uso
esse termo, já contém as metas pertinentes e os conhecimentos
disponíveis pertinentes, especialmente sobre os meios possíveis
para alcançar essas metas (PR, 351).</div>
</blockquote>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<style type="text/css">p { margin-bottom: 0.21cm; }a:link { }</style>
</div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
Se uma ação
apropriada a uma situação toma como padrão o conhecimento
científico disponível para atingir a meta que caracteriza essa
situação, então qualquer indivíduo que, por falta de
conhecimento, age diferentemente do que se esperaria se tivesse se
pautado no conhecimento científico disponível realiza uma ação
inapropriada. Nesse caso, teríamos muitas violações do princípio da
racionalidade e seria mesmo difícil sustentar que ele é mesmo
aproximadamente verdadeiro.
</div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
Mais adiante, Popper
reformula o princípio:
</div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<blockquote class="tr_bq">
<div align="justify" style="break-before: auto; margin-bottom: 0cm; margin-left: 4cm; page-break-before: auto;">
compreender seus atos significa ver a adequação deles segundo
sua visão – loucamente equivocada - da situação problemática
(PR, 355), </div>
</blockquote>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
o que poderíamos reformular afirmando: “os agentes
sempre agem de maneira apropriada à situação em que se encontram
<i>tal como eles a veem</i>”. A ação apropriada
toma como padrão o conhecimento que o indivíduo tem ou supõe ter para atingir a
meta que caracteriza a situação em que ele se encontra. Assim,
ainda que o sujeito tenha crenças bastante equivocadas acerca de
como atingir essa meta, suas ações, na medida em que se pautam
nessas crenças, serão apropriadas. Essa leitura do princípio da
racionalidade miniminiza as violações. Torna o principio trivial?
Aparentemente, não, Popper dá um exemplo de violação:
</div>
<blockquote class="tr_bq">
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="justify" style="break-before: auto; margin-bottom: 0cm; margin-left: 4cm; page-break-before: auto;">
Basta observarmos um motorista agitado, que tenta desesperadamente
estacionar o carro quando não há vagas disponíveis, para ver que
nem sempre agimos de acordo com o princípio da racionalidade (PR,
352).
</div>
</blockquote>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
A situação envolve a
meta de estacionar o carro e o conhecimento do indivíduo de que não
há vagas disponíveis. Ainda assim, o sujeito tenta desesperadamente
estacionar o carro. Sua ação não é apropriada à situação em
que ele se encontra tal como ele a vê.
</div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
Pode-se dizer que o
princípio da racionalidade foi contundentemente violado e, portanto,
conclusivamente falseado? Antes de responder à questão, devemos
lembrar que, para Popper, enunciados sintéticos não têm conteúdo
empírico isoladamente. Em sentido estrito, é o sistema teórico que
tem conteúdo empírico e, portanto, apenas ele, e não suas partes,
é falseável (LPC, 42, 88-91). Por exemplo, um enunciado universal
isoladamente não tem conteúdo empírico, nem é, em sentido
estrito, falseável, pois ele sozinho não implica enunciados
singulares. A este respeito, Popper se distancia tanto de empiristas
lógicos quanto de convencionalistas. Os primeiros alegam que
enunciados sintéticos universais são verificáveis e, portanto,
possuem um cabedal próprio de experiências que constituem o seu
conteúdo. Os segundos sustentam que enunciados universais são
verdadeiros a priori e que, qualquer que seja a explicação para a
seu caráter a priori, tais enunciados não são revisáveis diante
de experiências recalcitrantes.
</div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
Voltando à questão, o
que foi refutado no exemplo do sujeito que tenta agitadamente
estacionar o carro não foi o princípio da racionalidade
isoladamente, mas o sistema teórico que envolve esse princípio e o
modelo da situação em que o agente se encontra. O sistema teórico
previa que o agente, vendo que não há vagas e querendo estacionar o
carro, não tentaria agitadamente estacionar o carro. Diante da falha
preditiva, devemos decidir qual parcela do sistema teórico deve ser
responsabilizada pela falha preditiva e, portanto, revisada. Sobre
esse ponto, Popper não deixa dúvidas:
</div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<blockquote class="tr_bq">
<div align="justify" style="break-before: auto; margin-bottom: 0cm; margin-left: 4cm; page-break-before: auto;">
Defendo que uma política metodológica sensata é a que decide
não responsabilizar o princípio da racionalidade e sim o resto da
teoria, ou seja, o modelo (PR, 353).
</div>
</blockquote>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
Críticos de Popper
acusaram que essa política metodológica esconde o comprometimento
com o princípio da racionalidade como a priori. O que <i>justificaria
</i>essa política de sempre preferir revisar o modelo a não ser o
fato de que o princípio da racionalidade é tomado como verdadeiro a
priori? Popper está ciente da acusação. Ele reconhece que
</div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<blockquote class="tr_bq">
<div align="justify" style="break-before: auto; margin-bottom: 0cm; margin-left: 4cm; page-break-before: auto;">
parece que tratamos o princípio da racionalidade como se ele
fosse um princípio lógico ou metafísico isento de refutação:
como não refutável ou como válido a priori. Mas essa aparência é
enganosa (PR, 353).
</div>
</blockquote>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
A questão é delicada
para Popper. Dissemos acima que o princípio de falsificação
sozinho não é suficiente para demarcar ciência de não-ciência. O problema da demarcação só é resolvido pela adoção de regras
metodológicas, regras que regulam a atitude do cientista em relação
a um sistema teórico. Popper poderia ser acusado de estar adotando uma postura
em relação ao princípio de racionalidade que é contrária as suas
regras metodológicas mais gerais e que são essenciais para a
demarcação da ciência. Como ele não titubeia em alegar que quem
fere essas regras deixa de jogar o jogo da ciência, ele poderia ser
acusado de ter deixado de jogar o jogo da ciência ao defender a
política metodológica de preservar o princípio de racionalidade.
</div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
Essa crítica, no
entanto, não é justa. Em primeiro lugar, Popper não está
protegendo os sistemas teóricos das ciências humanas de refutação.
A previsão frustrada de uma ação demanda a revisão do sistema
teórico que a implica. A regra metodológica que sugere preservar o
princípio de racionalidade não é uma regra que imuniza o sistema
teórico, mas uma regra que sugere onde devemos olhar para procurar
falhas responsáveis pela previsão falsa. Assim, Popper não está
infringindo as regras metodológicas mais gerais que governam a
atitude crítica do cientista em relação ao sistema teórico. O
problema da ambiguidade da falsificação, isto é, o problema de
saber o que revisar quando um sistema teórico faz predições
falsas, foi claramente identificado por Duhem (TF, p. 225-6), e
Popper está dando uma resposta para ele ao menos no campo das
ciências humanas que empregam o método da lógica situacional
através da regra metodologia que recomenda preservar o Princípio da
Racionalidade. Em segundo lugar, a justificativa para essa regra não
reside no comprometimento com o princípio da racionalidade como
válido a priori, como se Popper estivesse adotando uma estratégia
convencionalista, mas no fato de que não temos, até o momento, (i)
nenhuma outra maneira de testar o princípio da racionalidade a não
ser associando-o aos modelos situacionais, (ii) nem qualquer outro
princípio que pudesse compor um sistema teórico alternativo que
fornecesse um poder explicativo igual ou superior ao da lógica
situacional. Enquanto (i) e (ii) prevalecerem, a regra metodológica
que recomenda preservar o princípio da racionalidade é de fato
sensata.
</div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
[1] Popper, K. “O
Princípio da Racionalidade”. In: Miller, David (org.). <i>Popper:
Textos Escolhidos</i>. Contraponto, 2010, p. 349-358.</div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
[2] Popper, K. <i>A
Lógica da Pesquisa Científica</i>. Editora Cultrix, 1993.
</div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
[3] Popper, K. <i>Lógica
das Ciências Sociais</i>. Editora Universidade de Brasília, 1978.
</div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
[4] Duhem, Pierre. <i>A
Teoria Física: seu objeto e sua estrutura</i>. Editora Uerj, 2014.
</div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
Eroshttp://www.blogger.com/profile/15293995700737241819noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-14066079.post-26874991229916463132016-12-17T05:54:00.000-08:002017-01-11T03:30:20.200-08:00[194] Notas sobre a ética da crença<style type="text/css">p { margin-bottom: 0.21cm; }a:link { }</style>
<br />
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
Resolvi organizar um
pouco as minhas notas sobre um tema do
qual a esfera pública, especialmente em tempos de <a href="https://www.theguardian.com/books/2016/nov/15/post-truth-named-word-of-the-year-by-oxford-dictionaries">pós-verdade</a>, parece cada vez mais carente, a saber, a ética
da crença. </div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br />
Resumo:<br />
<br /></div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
Neste artigo, discuto a norma defendida por Clifford de que somente a crença baseada em indícios suficientes é legítima. Articulo os dois principais argumentos apresentados por Clifford em favor dessa norma, um que apela para o valor instrumental da crença baseada em indícios, e um segundo que apela para a credulidade acarretada e a corrupção da capacidade de evitar o erro se negligenciamos a referida norma. Sustento que o primeiro argumento é insuficiente para estabelecer a norma em geral. Crenças que não são meios para ações ficam de fora do escopo do primeiro argumento. O segundo argumento tem um alcance mais abrangente. Contudo, ele pode ser bloqueado se o agente segue uma norma intelectualista que visa insular as crenças injustificadas do restante da sua vida cognitiva e ativa. É uma questão empírica se agentes humanos são capazes de seguir essa norma intelectualista. Defendo uma reformulação da norma de Clifford, incluindo alguns parâmetros que influenciam a suficiência dos indícios. Por fim, fatores morais ou prudencias podem afetar a legitimidade da crença. É legítimo crer sem indícios suficientes apenas em casos especiais, quando o agente insula a crença injustificada, ou quando o bem que advém da crença sobrepuja os malefícios da credulidade. <br /><br />
<br />
A normal geral da crença que defendo recebe a seguinte formulação:<br />
<br />
<blockquote class="tr_bq">
É ilegítimo para o agente S acreditar em p com base em indı́cios insuficientes; os indı́cios reunidos pelo agente S são insuficientes para crer em p em t (i) se S não emprega adequadamente as capacidades, os recursos e os métodos para investigar p que seriam razoáveis que S<br />
tivesse ao seu dispor em t e (ii) se, tendo em t um curso de ação em vista que se apoia em p, os indı́cios não fazem justiça ao que está em jogo.</blockquote>
</div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
A justificativa para essa norma encontra-se no referido texto, que está
disponível aqui: <a href="https://www.academia.edu/30487948/Notas_sobre_a_%C3%A9tica_da_cren%C3%A7a">https://www.academia.edu/30487948/Notas_sobre_a_%C3%A9tica_da_cren%C3%A7a</a> </div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
[1] Uma crença é gratuita se ela não é baseada em indícios e não contradiz nenhuma outra crença do agente para a qual ele tem indícios favoráveis. Veja o preciso e
instigante texto de Alexandre Machado sobre esse tema. “Toda crença
injustificada é irracional?”. Disponível em:
<a href="https://www.academia.edu/29398157/Toda_cren%C3%A7a_injustificada_%C3%A9_irracional">https://www.academia.edu/29398157/Toda_cren%C3%A7a_injustificada_%C3%A9_irracional</a></div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br />
[2] Recomendo fortemente a coletânea organizada pelo Desidério Murcho, <i>A
Ética da Crença</i>, Editora Bizâncio, 2010. Além de uma longa e
cuidadosa introdução escrita pelo Desidério, o leitor encontra
ótimas traduções de seminais artigos de Clifford, James e
Plantinga acerca do tema.<br />
<br />
Mais sobre o tema em <a href="http://filosofemas.blogspot.com.br/2016/11/193-ter-evidencia-e-crer-com-base-na.html">[193]</a>, <a href="http://filosofemas.blogspot.com.br/2016/07/191-crenca-um-bem-comum.html">[191]</a> e <a href="http://filosofemas.blogspot.com.br/2014/03/189-etica-da-crenca.html">[189].</a> </div>
Eroshttp://www.blogger.com/profile/15293995700737241819noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-14066079.post-18258384049461216982016-11-19T04:23:00.001-08:002016-11-27T01:58:37.163-08:00[193] Ter evidência e crer com base na evidência<style type="text/css">p { margin-bottom: 0.21cm; }a:link { }</style>
<br />
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
Pedro tem evidência de
que Marcos é culpado de um crime, pois uma testemunha ocular narrou
para Pedro como Marcos cometeu um crime. No entanto, Pedro veio a crer
que Marcos é culpado de um crime porque tem um ódio irracional e muito intenso de
Marcos. Por causa desse ódio, Pedro acaba buscando se convencer, por algum processo de racionalização, de
que Marcos é uma pessoa má e criminosa. Bastou ver Marcos apressado, com cara de
culpado, para que Pedro se convencesse de que Marcos é culpado de
algum crime. Pedro tem evidência de que Marcos é culpado de um
crime, mas Pedro não crê que Marcos é culpado de um crime com base
nessa evidência. Ele desconfia tanto das pessoas que negligencia o
relato da testemunha ocular. Ele crê que Marcos é culpado de um
crime com base em motivos que nada têm a ver com a verdade da sua
crença e, por isso, não a justificam. Na linguagem dos
epistemólogos, Pedro tem justificação proposicional para a crença
de que Marcos é culpado de um crime, pois ouviu o relato da
testemunha ocular, mas não tem justificação doxástica, pois sua
crença não foi baseada na evidência que ele tem para essa crença[1].
Pode parecer que não há nada de ruim em crer sem se basear na
evidência que se possui, já que a evidência que torna verdadeira
ou provável a crença está disponível de qualquer modo. Contudo,
de um ponto de vista cognitivo, é ruim que um sujeito acredite em
uma proposição para a qual ele tem evidência sem se basear nessa
evidência, pois esse sujeito acreditaria nessa proposição mesmo
que ele não tivesse essa evidência. Pedro acreditaria que Marcos é
culpado de algum crime ainda que não tivesse ouvido o relato da
testemunha ocular, pois o processo de racionalização a partir do
seu ódio ocorreria igualmente. Contudo, se Pedro acreditasse que
Marcos é culpado de cometer um crime apenas com base na evidência disponível relevante e adequada, então na
ausência dessa evidência, Pedro não
acreditaria que Marcos é culpado de cometer um crime. Assim, como
Pedro não acredita que Marcos é culpado de cometer um crime com
base na evidência disponível, ele assume o risco de crer sem ter a
evidência adequada. A evidência que ele possui é frágil, muito
facilmente ele poderia não tê-la, por exemplo, se não encontra a
testemunha ocular, ou se ela não conta o episódio que testemunhou
etc. Ao correr esse risco, por não crer com base na evidência
disponível, Pedro afasta-se da possibilidade de obter conhecimento,
ele não realiza nenhuma conquista cognitiva que possa ser um caso de
conhecimento. Essa diferença fundamenta por que não basta ter
evidência para acreditar em algo, é essencial também que se creia
nesse algo com base na evidência disponível.
</div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
Essa distinção pode iluminar situações da vida cotidiana. Suponha que um um juiz não
tenha clareza acerca do que é boa razão para o que e introduza em
um processo, como evidência probatória, trechos bíblicos que nada
têm a ver com a sentença que ele pretende sustentar. O risco que
ele assume de formar a sua convicção sem ter a evidência adequada
é incompatível com a função que exerce, ainda que, no processo em
questão, houvesse evidência adequada citada. Espera-se de um juiz
(e não só dele, claro) que ele tenha justificação doxástica para
as suas convicções, e não apenas justificação proposicional,
isto é, que ele não apenas tenha evidência para a sua convicção,
mas que tenha se baseado exclusivamente nessa evidência ao formar a sua convicção.
</div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
[1] Veja Bondy, Patrick, e Pritchard, Duncan, “<a href="https://www.academia.edu/29813339/Propositional_epistemic_luck_epistemic_risk_and_epistemic_justification">Propositional
epistemic luck, epistemic risk, and epistemic justification</a>”,
para uma discussão mais detalhada e técnica da distinção entre
ter evidência e crer com base na evidência e da importância
epistêmica de se crer com base na evidência.
</div>
Eroshttp://www.blogger.com/profile/15293995700737241819noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-14066079.post-27348177853750594552016-11-10T02:53:00.003-08:002016-11-10T07:38:56.708-08:00[192] Democracia, voto e falibilismo<div data-contents="true">
<div class="" data-block="true" data-editor="4acmk" data-offset-key="5g527-0-0">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="5g527-0-0">
<span data-offset-key="5g527-0-0"><span data-text="true">É verdade que o indivíduo pode se enganar quanto a quais são os seus reais interesses. E se ele pode se enganar a esse respeito, ele pode tomar decisões que não sejam as melhores para ele. Mas também é preciso tomar muito cuidado quando se pretende dizer que uma pessoa ou toda uma classe de pessoas está enganada quanto aos seus reais interesses. Derrotados em eleições às vezes assumem essa posição quando criticam o voto de alguém ou de toda uma classe de pessoas. Se o crítico não tem uma concepção forte de natureza humana que já envolva o comprometimento com uma série de valores fundamentais, então ele terá de enfrentar uma dificuldade interpretativa que nem sempre é fácil de vencer: para saber se um indivíduo se engana em relação aos seus reais interesses é preciso saber quais valores esse indivíduo tem e que hierarquia esse indivíduo sustenta entre esses valores. Como muitos desses valores e mesmo as relações entre eles são latentes e se apresentam mais em atitudes do que em verbalizações e declarações do indivíduo, a tarefa de trazê-los para a superfície é complexa e exige um conhecimento não-estereotipado e não-superficial do indivíduo. Qualquer resultado na conclusão dessa tarefa, como em qualquer interpretação, deve ser tomado com muita cautela e prudência. Mas suponha que o crítico tenha uma concepção forte da natureza humana, a qual envolve um conjunto preciso de interesses que todo humano deve ter. Nesse caso, para criticar uma escolha do indivíduo, ele não precisa interpretar esse indivíduo e conhecer os valores com os quais esses indivíduo está efetivamente comprometido. Basta que ele mostre que essa escolha vai de encontro aos valores que estão embutidos na sua concepção de natureza humana. A crítica aqui consiste em dizer que o indivíduo, no final das contas, falha em perseguir a sua humanidade. Agora, se entre os valores embutidos na concepção de natureza humana defendida pelo crítico estão valores democráticos, como o da autonomia -e parece que o crítico precisa assumir esse valor se ele está criticando o voto de alguém, de outro modo ele deveria criticar não o voto, mas a instituição do voto-, então novamente o crítico precisa cuidar para apresentar a sua crítica com cautela e prudência, pois ele não pode esperar que os criticados tenham de acatar a sua concepção de natureza humana e todos os valores que ela eventualmente envolva. Cabe a ele, o crítico, se respeita a autonomia dos criticados, convencê-los da sua concepção da natureza humana. Numa democracia, a atitude falibilista parece ser um imperativo. </span></span><br />
<br />
<span data-offset-key="5g527-0-0"><span data-text="true">
<style type="text/css">p { margin-bottom: 0.21cm; }a:link { }</style>
</span></span><br />
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
<span data-offset-key="5g527-0-0"><span data-text="true">Há um outro tipo de
crítica que diz respeito não aos reais interesses do indivíduo,
mas quanto aos meios para a satisfação desses interesses. Também é
verdade que o indivíduo pode ter crenças bastante equivocadas sobre
quais meios satisfazem melhor os seus interesses, e o seu voto pode
falhar em atender os seus interesses. Essa é uma discussão menos
inflamada, valores não estão em discussão, mas sim a eficácia dos
meios. Ainda assim é necessária uma atenção muito aguda para a
experimentação e a observação, e para a ciência em geral.
Prudência e cautela, mais uma vez, são necessárias e imperativas.</span></span></div>
<span data-offset-key="5g527-0-0"><span data-text="true">
</span></span></div>
</div>
<div class="" data-block="true" data-editor="4acmk" data-offset-key="2k7ac-0-0">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="2k7ac-0-0">
<span data-offset-key="2k7ac-0-0"></span></div>
</div>
<div class="" data-block="true" data-editor="4acmk" data-offset-key="ehedk-0-0">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="ehedk-0-0">
<style type="text/css">p { margin-bottom: 0.21cm; }a:link { }</style>
<br />
<div align="justify" style="margin-bottom: 0cm;">
É muito ruim para a
democracia que tenhamos nos tornados anti-intelectualistas tenazes,
que tenhamos resolvido rejeitar a ciência, o conhecimento, a filosofia etc. Mas o
remédio para isso não passa for “forçar” conhecimento, o que,
de qualquer modo, não se pode mesmo fazer.
</div>
</div>
</div>
</div>
Eroshttp://www.blogger.com/profile/15293995700737241819noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-14066079.post-66376580704495921632016-07-23T17:41:00.002-07:002016-07-23T17:41:37.910-07:00[191] Crença, um bem comum
<style type="text/css">p { margin-bottom: 0.21cm; }a:link { }</style>
<br />
<div align="justify" style="font-style: normal; font-weight: normal; margin-bottom: 0cm;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: Times New Roman, serif;"><span style="font-size: small;"><span style="background: transparent;">Quando
respeitamos o intelecto dos outros e o nosso próprio, discutimos as
crenças dos outros e colocamos as nossas em discussão, é simples.
Pensar que respeitar a crença do outro (ou a sua própria) implica
em jamais discuti-la parece presumir que o "intelecto" não
tem qualquer interesse pela verdade ou talvez que a verdade seja
completamente uma função das suas crenças. Ambas as alternativas
não são muito plausíveis. Evidente que não somos apenas
intelecto, nem que a verdade seja o nosso único interesse. Não
temos de ser chatos conosco ou com os outros na discussão das
crenças. A discussão cabe em alguns lugares e em alguns momentos.
Nem tem de ser gratuita; acerca de alguns tópicos, pode ser que ela
demande motivação. As crenças apenas não estão absolutamente
imunes à discussão, como se tivéssemos com elas uma mera relação
de propriedade, “são minhas e ninguém tem nada a ver com isso”.
Não é bem assim se você tem alguma vida em comum e não é bem
assim se você tem algum interesse pela verdade objetiva. Por fim, o
que talvez alguém queira razoavelmente dizer ao afirmar: “respeite
a minha opinião” é: “respeite a finitude do meu intelecto,
dê-me tempo para pensar etc”. Por várias razões, a justa
resposta à discussão não tem de ser pronta e imediata. Não tem
mesmo. </span></span></span></span>
</div>
Eroshttp://www.blogger.com/profile/15293995700737241819noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-14066079.post-63204761904337167382015-04-28T13:07:00.000-07:002016-11-19T04:39:08.714-08:00[190] Boas notícias contra o relativismo<!--?xml version="1.0" encoding="UTF-8" ?-->
<br />
O relativismo já conta com raízes longas e profundas em nossa cultura. Há aqueles que o acalentam como uma boa razão para o respeito à diversidade cultural e religiosa. Outros o arrolam como uma razão para que o seu intelecto seja respeitado qualquer que seja a opinião acalentada por ele. Em ambos os casos, a mesma confusão: o relativismo não pode sustentar esses respeitos sem minar o seu próprio chão. Mas a situação pode piorar e ela normalmente se agrava quando “respeito” quer dizer, na mente dessas pessoas, “absoluta imunidade à crítica”. Nesse caso, o problema já não é apenas se valer do relativismo para defender uma ideia que ele é incapaz de defender, mas defender o implausível. Por que deveríamos aceitar práticas abomináveis de uma cultural qualquer? Por que deveríamos nos calar diante de crenças absurdas acalentadas por um sujeito qualquer? Pode o respeito a uma cultura estar acima do respeito às pessoas que compõem essa cultura? Faria mesmo sentido insinuar tal separação? Se há opressão em uma cultura de um grupo contra outro, como poderíamos aceitá-la e ficar calados diante dela? O respeito pela justiça não demandaria antes que tomássemos alguma posição? Pode o respeito pelo intelecto de alguém estar acima do provável interesse que esse alguém nutre pela verdade? Faria mesmo sentido insinuar tal separação? Podemos ver um intelecto em um sujeito que não tem qualquer interesse pela verdade? Se ele acalenta uma crença que nos parece trivialmente falsa, como poderíamos aceitá-la e ficar calados diante de um erro tão flagrante? Não respeitaríamos antes o seu intelecto apresentando as razões que julgamos depor contra a sua crença? <br />
<br />
<div>
Desde Platão temos muito boas notícias contra o relativismo. Elas certamente precisam circular mais. Essa semana elas circulam na lúcida <a href="http://philosophybites.com/2015/04/tim-williamson-on-the-appeal-of-relativism.html">entrevista</a> com Timothy Williamson sobre o tema. Elas circulam no excelente livro do Paul Boghossian, Fear of Knowledge, cuja <a href="http://criticanarede.com/medo.html">tradução</a> acaba de ser lançada pela Gradiva. Elas já circulavam no Brasil na <a href="http://www.editorasenacsp.com.br/portal/produto.do?appAction=vwProdutoDetalhe&idProduto=21414">tradução</a> do mesmo livro publicada pela Editora do Senac-SP.</div>
Eroshttp://www.blogger.com/profile/15293995700737241819noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-14066079.post-7376901080966229962014-03-05T05:42:00.000-08:002014-03-05T16:44:24.475-08:00[189] A ética da crença "Debunking is fine, but it needs to be accompanied with a cultural sensitivity (as Kahan puts it) for the doubting parents, treating them not as idiots but as people whose concerns and fears are taken seriously" (Helen de Cruz, "<a href="http://www.newappsblog.com/2014/03/vaccine_effectiveness.html">How to promote the safety and effectiveness of vaccines</a>")<br />
<br />
A Helen está coberta de razão. Pensando na eficácia, confrontar o negacionista com a acusação de que ele é idiota ou irresponsável na busca por evidência, na prática, só fará com que ele se apegue ainda mais a sua posição. Especulo que por trás disso haja algum daqueles mecanismos sutis da vaidade. Eu confesso que frequentemente fraquejo e não consigo ter a paciência recomendada pela Helen, talvez por ser vítima também de algum outro desses mecanismos da vaidade. Mas não só, há indignação também na minha intolerância. De qualquer modo, lendo as ponderações da Helen, fiquei com a pergunta: qual a melhor estratégia não para superar essa ou aquela negação absurda (vacinas em geral não são seguras, HIV não tem nada a ver com AIDS, aquecimento global não tem causa antropogênica etc.), mas para, em um âmbito mais geral, vencer a cultura que nos faz sentir pouco ou quase nada responsáveis pela qualidade de nossas crenças? As vitórias pontuais não serão genuínas se não forem acompanhadas dessa mudança mais geral. Sobre este ponto, Helen nos dá uma pista no final do seu texto:<br />
<div>
<br /></div>
"From a consequentialist perspective, our primary focus should not be to prove the anti-vaccine promoters wrong but to make sure to create a climate where parents again accept vaccination as the obvious, safe choice for their children. As Lady Montagu wrote " 'Tis no way my interest (according to the common acceptation of that word) to convince the world of their errors; that is, I shall get nothing by it".<br />
<div>
<br />
<div>
Com efeito, a minha pergunta pressupôs vitórias pontuais apartadas do fomento à cultura que valoriza o zelo pela qualidade de nossas crenças. Como já disse, essas vitórias não seriam genuínas, se é que seriam viáveis. Não queremos causar no negacionista as crenças para as quais há excelente evidência, queremos antes que ele adquira esta evidência e veja que ela suporta e serve de razão para essas crenças. Não podemos alcançar este objetivo sem, ao mesmo tempo, exercer o zelo pela qualidade de nossas crenças. Chamar a atenção do outro para o fato de que ele está em falta com uma virtude pouco contribuirá para dispô-lo a adquiri-la. Exercê-la humildemente diante dele talvez seja o melhor que possamos fazer a este respeito. </div>
</div>
Eroshttp://www.blogger.com/profile/15293995700737241819noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-14066079.post-44415362895995625562014-02-13T03:29:00.000-08:002014-03-05T06:07:37.902-08:00[188] Valores e o ideal de ciência"<i>I first met questions of philosophy when I came up against the Soviet ideology under Stalin which denied justification to the pursuit of science...under socialism the conception of science pursued for its own sake would disappear, for the interests of scientists would spontaneously turn to problems of the current Five-Year Plan</i>" (Michael Polanyi, <i>The Tacit Dimension</i>, p. 3).<br />
<br />
É bem conhecido<a href="http://www.skepdic.com/lysenko.html"> o caso</a> de banimento de toda uma disciplina, a genética mendeliana, na ex-União Soviética durante o governo de Stalin. A disciplina foi acusada de ser "reacionária" e os seus pesquisadores foram convidados a proclamar publicamente seus erros por desenvolvê-la. Contudo, a interferência indesejada na ciência não parte apenas do governo, ela pode partir também de empresas que financiam pesquisas, manipulando direta ou indiretamente os seus resultados para que fiquem mais alinhados com os seus interesses de mercado. É igualmente bem conhecido <a href="http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1497700/pdf/15842123.pdf">o caso</a> de manipulação de pesquisa científica pela indústria de tabaco nos EUA nas décadas de 50 e 60.<br />
<br />
Mas o problema não é tanto que haja pressões externas sobre a ciência, mas ao que elas estão servindo e como e sobre quais etapas da atividade científica essas pressões incidem. Que elas sejam o reflexo <i>apenas</i> de interesses do Partido Único ou de um punhado de empresas privadas deixa a ciência à mercê do enviesamento e da sua completa instrumentalização para fins outros que a busca da verdade e o bem comum. A resposta adequada para nos prevenir destes riscos não é a busca do ideal de ciência livre de valores, protegida de qualquer pressão externa. Em virtude da imersão da ciência na sociedade e da autoridade epistêmica que ela usufrui em decisões políticas e na elaboração de políticas públicas, é razoável que a ciência seja <i>sensível</i> ao interesse social. Alguns sustentam que é mesmo inevitável e desejável [1], [2]. Mas se aceitamos este ponto, que a ciência não deve ser pensada <i>apenas</i> como um fim em si mesmo, mas <i>também</i> como um meio suficientemente seguro para a realização do nosso projeto ético e social, então a reflexão sobre como a ciência deve ser sensível ao interesse social é urgente. E ainda muito mais urgente é a reflexão sobre o ideal de sociedade na qual a ciência deverá estar imersa. Na verdade, está em aberto tanto a questão sobre (i) qual deve ser o(s) objetivo(s) da ciência quanto (ii) quem e como deve decidi-lo(s).<br />
<br />
Felizmente, a reflexão sobre o papel de valores não-epistêmicos na ciência, depois de muito negligenciada pela filosofia da ciência anglófona, voltou à agenda da disciplina. Abaixo, cito algumas das obras responsáveis por isso. Também é notável o espaço que o tema recebe na nova introdução à filosofia da ciência de Barker e Kitcher [3].<br />
<br />
[1] Douglas, Heather. <i>Science, Policy, and the Value-Free Ideal</i>. University of Pittsburgh Press, 2009. <br />
[2] Kitcher, Philip.<i> Science in a Democratic Society</i>. Prometheus Books, 2011.<br />
[3] Barker, Gillian & Kitcher, Philip. <i>Philosophy of Science: a new introduction</i>. Oxford University Press, 2014.Eroshttp://www.blogger.com/profile/15293995700737241819noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-14066079.post-87586578878890983232014-01-27T04:11:00.004-08:002021-12-26T03:38:46.452-08:00[187] Aquela opinião que não quer se calar é uma que provavelmente deve se calarAquela opinião para a qual você não tem qualquer evidência e que também não é tão óbvia a ponto de ser ininteligível manifestá-la é uma que você também não deve normalmente* manifestar, embora por uma razão distinta. Ou você acha que o seu ouvinte tem alguma razão para aceitá-la, ou acha que não tem. Se acha que tem e como você mesmo não tem nenhuma evidência ou razão para esta opinião, então a única razão para que o seu ouvinte a aceite é que você a aceita. Ou seja, você se representa como alguém muito especial, cujas opiniões devem ser aceitas apenas porque você, você em especial, as aceita. Se você acha que o seu ouvinte não tem alguma razão para aceitar a sua opinião, então por que a manifesta? Por que não a guarda para si? A não ser que seja uma matéria de gosto ou não estejamos em absoluto interessados no que é o caso, o que normalmente* não é ou não deveria ser o caso, não é apropriado manifestar como sendo o caso o que não podemos minimamente garantir como sendo o caso. O outro normalmente* espera a verdade e a sua opinião infundada, sem calço na evidência, afronta e desrespeita essa expectativa. Nesta circunstância, se não é irracional, então é no mínimo imoral manifestar a sua opinião. Em resumo, ou você se acha cognitivamente superior, ou você se acha moralmente superior quando manifesta a sua opinião infundada entre pessoas interessadas em saber o que é o caso. Em qualquer caso, você não deveria nos expor a sua opinião infundada.Eroshttp://www.blogger.com/profile/15293995700737241819noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-14066079.post-35526756769145355572014-01-24T03:52:00.001-08:002022-11-25T08:13:02.598-08:00[186] A tese da simetria<div align="JUSTIFY" class="western">
A tese da simetria, defendida pelo
Programa Forte na Sociologia do Conhecimento, é geralmente vista com
maus olhos pela filosofia da ciência. Não sem razão. Conforme ela
é lida, considerações normativas sobre o conhecimento parecem ser
completamente dispensáveis e despropositadas. Lida assim, a
sociologia do conhecimento seria um substituto para a filosofia da
ciência. Porém, como irei sugerir, a tese da simetria não precisa
ser lida como tendo essa consequência.
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<br />
<br /></div>
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O que é a tese da simetria?
Grosseiramente, a tese afirma que explicações causais para crenças
verdadeiras não evocam tipos de causas distintas daquelas que
geralmente são evocadas para explicar crenças falsas. Mais
fundamentalmente ainda, a tese sustenta que as explicações causais
para as crenças que tomamos como sendo conhecimento não devem fazer
referência à verdade ou à falsidade (ainda que suposta) da crença,
a razões a favor ou contra essas crenças, nem mesmo à evidência
potencialmente disponível a favor ou contra essas crenças. Em suma,
explicações causais para as crenças que tomamos como sendo
conhecimento não devem conter elementos epistêmicos. Fatores
sociais, políticos, ideológicos ou mesmo psicológicos são
arrolados em explicações causais para o fato de um sujeito ou um
grupo de pessoas tomar uma certa crença como sendo conhecimento. A
simetria consiste em que tais explicações farão referência a
fatores do mesmo tipo seja a crença em questão verdadeira ou falsa,
racional ou irracional, justificada ou injustificada. Estas
distinções que importam para a filosofia da ciência são
desconsideradas pela tese da simetria.
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<br />
<br /></div>
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Vejamos um exemplo. Suponhamos que
S1 acredite que sabe que o cigarro não fomenta câncer do pulmão.<span style="font-weight: normal;">
</span><span style="color: black;"><span style="font-family: Times New Roman, serif;"><span style="font-size: small;"><span style="font-weight: normal;">S1
é fumante e negligencia toda a evidência</span></span></span></span><span style="color: black;"><span style="font-family: Times New Roman, serif;"><span style="font-size: small;"><b>
</b></span></span></span>contrária que aparece nos jornais, na
televisão ou mesmo nas conversas com amigos. Normalmente, diríamos
que a crença de S1, além de provavelmente falsa diante da evidência
acumulada nas últimas décadas, é irracional justamente por ignorar
esta evidência tão facilmente acessível. Mas por que S1
negligencia esta evidência? Várias explicações podem ser dadas.
Talvez S1 goste tanto de fumar que não quer reconhecer o prejuízo
que esta prática impinge a sua saúde. Ou talvez S1 seja acionista
de uma empresa de tabaco e também não quer reconhecer o prejuízo
que o fumo causa a outras pessoas. S1, diríamos, é irracional por
ignorar a norma da racionalidade epistêmica que demanda do sujeito
dosar a sua crença em proporção à evidência disponível. Quando
o sujeito se afasta da racionalidade, queremos ainda assim uma
explicação para a sua crença. Nestes casos, como exemplificado,
apelamos para fatores psicológicos ou sociais. Porém, se S1
acreditasse saber que fumar causa câncer do pulmão em virtude de
ter ficado ciente dos estudos que mostram a elevada correlação
entre fumar por um longo período e desenvolver câncer do pulmão, o
sujeito teria atendido a demanda da racionalidade epistêmica e
normalmente não pediríamos uma explicação causal para a sua
crença.
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<br />
<br /></div>
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<span style="font-family: Times, serif;">No parágrafo acima,
apresentamos a perspectiva da filosofia da ciência, que
trabalha com explicações assimétricas para crenças racionais e
irracionais.</span> Quando o sujeito atende as demandas da
racionalidade, não precisamos fornecer causas não-epistêmicas
(causas sociais, políticas, ideológicas ou psicológicas) para a
crença do sujeito de que ele detém conhecimento. As razões apresentadas ou disponíveis são suficientes para compreendermos a crença do sujeito. Apresentamos explicações causais apenas quando o sujeito se afasta da racionalidade, pois, nesta situação, queremos entender o que fez com que o sujeito se desviasse do que era razoavelmente esperado que ele acreditasse. O defensor do
Programa Forte, ao contrário, diria que tanto no primeiro quanto no segundo caso deveríamos fornecer causas não-epistêmicas para as crenças de S1. No segundo caso, mesmo a crença de S1 de que fumar causa câncer do pulmão, em última instância, repousa sobre fatores sociais, políticos etc.
Assim, ambos os casos devem ser explicados por meio de causas
não-epistêmicas. Isso é o que preconiza a tese da simetria.
</div>
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<br /></div>
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Agora
precisamos perguntar: a filosofia da ciência e o programa forte
estão em conflito? Minha resposta é que não precisam estar. Essas
perspectivas apenas enfocam explicações de tipos distintos para as
nossas crenças. A filosofia da ciência enfoca particularmente os
casos de crenças obtidas racionalmente. Entre os seus objetivos está
justamente o de explicitar a natureza da racionalidade epistêmica,
isto é, os métodos e procedimentos adequados para a aquisição de
crenças verdadeiras. Essa é uma questão normativa e não interessa
ao Programa Forte. Um dos principais alvos da filosofia da ciência é o agente epistêmico e a caracterização do tipo de razão que ele pode e deve apropriadamente fornecer em favor das crenças que possui e das alegações de conhecimento que faz. O foco do Programa Forte é outro, ele recai sobre questões
descritivas. Seu objetivo principal é descrever os fatores e as
regularidades sociais, políticas, ideológicas ou psicológicas que
determinam causalmente as nossas crenças, sejam elas verdadeiras ou
falsas, racionais ou irracionais, justificadas ou injustificadas.
Embora essas perspectivas pareçam conflitantes, não precisam ser. O
filósofo da ciência não precisa sustentar que uma crença
racional, obtida com boas razões, não tenha também causas
não-epistêmicas. Na verdade, o filósofo da ciência pode até
mesmo defender o<b> determinismo social</b>, isto é, a tese de que
sempre que houver uma boa razão para a crença p de um sujeito, será
o caso também que há causas não-epistêmicas para esta crença. A
única restrição, para manter a compatibilidade com a posição do
filósofo da ciência, é que tais causas não sejam indícios da
falsidade da crença em questão, em especial, se ela é uma crença para a qual há boas razões.
</div>
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<br /></div>
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O que o
filósofo da ciência não pode aceitar é a <b>tese reducionista</b>,
isto é, a tese de que razões boas ou ruins para uma crença, ou
quaisquer outros fatores epistêmicos são constituídos apenas por
fatores sociais, políticos, ideológicos ou psicológicos. Se fosse
assim, então, em virtude da tese da simetria, não haveria de fato
qualquer diferença substancial entre uma boa razão e uma razão
ruim, entre uma crença justificada e uma injustificada, pois ambas
teriam a mesma natureza e os mesmos constituintes. Por conseguinte,
colapsaria a diferença entre racional e irracional, justificado e
injustificado. Neste caso, a filosofia da ciência seria não só
desnecessária, mas indesejável, pois trabalharia com base em uma
distinção que não tem razão de ser, confundindo a nossa
compreensão do fenômeno da aceitação de crenças.</div>
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<br /></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="margin-bottom: 0cm;">
O
Programa Forte foi acusado de sustentar uma tese auto-refutante. Se
toda crença tida como conhecimento tem causas não-epistêmicas que
a determinam, então a crença dos sociólogos de que as teses do
Programa Forte são conhecimento são elas mesmas determinadas também
por causas não-epistêmicas. Esse ponto não é negado pelos
defensores do Programa Forte. Na verdade, eles mesmo sustentam a
reflexividade da sociologia do conhecimento, isto é, ela deve ser
capaz de fornecer explicações causais para as suas teses e
afirmações. Ora, então “não estariam os sociólogos obrigados a
admitir que seus próprios pensamentos sejam determinados
(causalmente) e até mesmo, em parte, socialmente determinados? Eles
não teriam que admitir, portanto, na mesma proporção da força
dessa determinação que suas próprias alegações são falsas?”
<a class="sdfootnoteanc" href="https://www.blogger.com/blogger.g?blogID=14066079#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc"><sup>1</sup></a>(2008,
p. 34). Mas como acabamos de ver, o fato de uma crença ser
determinada causalmente por fatores não-epistêmicos não implica
que ela seja falsa, irracional ou injustificada. E crenças
verdadeiras, racionais e justificadas não têm de ser refratárias à
determinação causal não-epistêmica.
</div>
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<br /></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="margin-bottom: 0cm;">
Porém,
se o defensor do Programa Forte pretende defender que a sociologia do
conhecimento <b>é conhecimento</b>, então a reflexividade não é
suficiente. Ele precisa mostrar (i) que há boas razões para as
teses da sociologia do conhecimento e (ii) que as causas
não-epistêmicas que explicam por que os sociólogos do conhecimento
tomam as teses do Programa forte como conhecimento não são elas
mesmas indícios da falsidade destas teses. Sem mostrar (i) e (ii),
embora possamos ser causados a aceitar as teses do Programa Forte, não temos
ainda qualquer razão para fazê-lo.
</div>
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<br /></div>
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</div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: Times, serif;">Por fim, o defensor do
Programa Forte poderia defender a tese reducionista. Neste caso, as
demandas (i) e (ii) não fariam sentido, pois razões para ou contra
p não se distinguiriam e não seriam nada mais além de causas ou fatores
não-epistêmicos. Mas então defender uma posição ou ter a
pretensão de dizer algo correto ou verdadeiro ao sustentar uma tese
seria algo muito diferente do que normalmente entendemos ou supomos
entender por essas coisas. Caso contrário, a acusação de
auto-refutação é legítima.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<br />
<div id="sdfootnote1">
<div class="sdfootnote-western">
<a class="sdfootnotesym" href="https://www.blogger.com/blogger.g?blogID=14066079#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">1</a> BLOOR,
David. <i>Conhecimento e imaginário social</i>. São Paulo: Editora
Unesp, 2008. </div>
</div>
Eroshttp://www.blogger.com/profile/15293995700737241819noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-14066079.post-66496150715769763952014-01-22T08:14:00.000-08:002014-01-22T08:14:32.552-08:00[185] Do peso de ser livre“Queria liberdade, mais liberdade que tinha. Mas logo pensei que se me visse absolutamente livre dos meus compromissos, livre do meu viver, livre disso tudo que me adere forçosamente à vida, eu teria de defrontar a cada instante com a pergunta: ‘por que viver?’. Então aquiesci, mas não sem revolta e desprezo por isso que somos”.Eroshttp://www.blogger.com/profile/15293995700737241819noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-14066079.post-54647946049720706182014-01-08T01:40:00.000-08:002014-01-08T01:40:00.946-08:00[184] Ética na discussãoHá uma razão muito simples para não podermos, em uma discussão entre pares, introduzir como premissa uma afirmação que o nosso interlocutor não aceita, a não ser, obviamente, que a fundamentemos em outras afirmações que ele aceita. Mas neste caso, ele aceitará a afirmação ou, pelo menos, se comunga as mesmas regras de inferência, deveria aceitá-la. Se ele não aceita, não podemos de qualquer modo prosseguir a discussão como se ele a aceitasse. A razão para isso é moral. Ao fazê-lo, deixamos de tratar o interlocutor como um par; passamos a representá-lo como alguém cognitivamente inferior ou como tendo menos autoridade epistêmica do que nós e rompemos, assim, com uma assunção mútua, aceita (geralmente implicitamente) no início da discussão, de que éramos e, portanto, nos trataríamos como pares intelectuais. Somente alguém cognitivamente inferior ou de menor autoridade epistêmica se encontra na situação de ter a obrigação epistêmica de aceitar de alguém cognitivamente superior e de maior autoridade epistêmica uma afirmação que, até então, ele não enxergava como verdadeira e que não é fundamentada em outras que ele aceita. Se continuamos a discussão a partir de uma afirmação que o interlocutor não aceita, geramos a presunção de que ele tem esta obrigação epistêmica e, portanto, o tratamos como cognitivamente inferior ou de menor autoridade epistêmica. Ofendemos, assim, a dignidade epistêmica que lhe fora concedida no início da discussão.<br />
<br />
Claro que, mantendo uma discussão entre pares, não ficamos sem recursos para articular a nossa posição a partir de afirmações que o interlocutor não aceita. Porém, para não cometer a falta moral acima, as afirmações que o interlocutor não aceita e que não são fundamentadas em outras que ele aceita devem ser explicitamente introduzidas na discussão como assunções. O interlocutor poderá, então, engajar na discussão da cogência de nossa posição, muito embora a sua solidez estará, a partir de então, fora da discussão.<br />
<br />
Uma autêntica discussão entre pares jamais deveria ser vista como uma batalha, mas como uma atividade cooperativa em que os envolvidos se engajam respeitosamente na busca conjunta da verdade. Eroshttp://www.blogger.com/profile/15293995700737241819noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-14066079.post-90386860313327821112013-11-10T05:27:00.000-08:002013-11-10T05:27:00.225-08:00[183] Uma utilidade filosóficaColocar os pingos nos "is" da utilidade e discriminar as utilidades é um serviço prestado pela filosofia. Eu realmente não entendo o que alguém quer dizer quando afirma que a filosofia é inútil. A afirmação, se verdadeira, é completamente desinteressante e óbvia. Se informativa e substancial, é falsa. Na arena pública e mais superficial, assim solta, chega a ser uma alegação prejudicial. Eroshttp://www.blogger.com/profile/15293995700737241819noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-14066079.post-21230513007007368742012-05-03T18:58:00.000-07:002012-05-03T18:58:44.872-07:00[182] Do desapegoUm louvável tributo que podemos prestar à humanidade é pelo desapego à espécie humana.Eroshttp://www.blogger.com/profile/15293995700737241819noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-14066079.post-78635059137589585212010-11-25T13:27:00.000-08:002010-11-25T13:30:34.647-08:00[181] Da onipresença do RegressoEu não preciso saber que sei para saber; se precisasse, teria de enfrentar um regresso. Pois para saber que sei, teria também de saber que sei que sei e assim por diante. Porém, se eu posso saber sem saber que sei, eu não posso igualmente enfrentar o regresso que questiona que sei. A única saída parece ser: se eu sei, então eu sei que sei. Objetivamente, isto parece ser verdadeiro, mas aonde nos leva? A lugar algum, pois se eu não sei que sei, então não sei. E o regresso outra vez aparece espreitando na pergunta: o que é o caso? Que você sabe ou que você não sabe? Se você sabe, então você sabe que sabe que sabe...Mas se não sabe, então você não sabe que sabe...Em todo caso, se te serve de consolo, uma coisa é certa: ou você sabe, ou você não sabe. E se você sabe, então você sabe, ainda que não saiba disto.Eroshttp://www.blogger.com/profile/15293995700737241819noreply@blogger.com2