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Abaixo segue um exemplo da falácia do apostador.

O lance de moedas é um sistema de apostas justo.
A coroa saiu 10 vezes seguidas.
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Há maiores chances de sair cara no próximo lance.

Para entender o motivo que torna este argumento falacioso, precisamos de uma clareza maior sobre o que faz um sistema de apostas ser justo. Há basicamente duas exigências:

não-viciado: o dispositivo não pode ser viciado. A moeda, por exemplo, permite a geração de dois tipos de eventos, cara e coroa. Para não ser viciada, a moeda precisa gerar estes eventos na mesma freqüência ao longo do tempo. Em 200 lances, espera-se que aproximadamente metade deles resulte em coroa e a outra metade em cara.

independência: o dispositivo deve gerar eventos randômicos, ou seja, os eventos gerados anteriormente não podem influenciar ou determinar quais eventos serão gerados futuramente. Pode-se dizer também que o dispositivo não tem memória. O lançamento de moedas que sempre gerasse o evento coroa após ter gerado dois eventos cara não atenderia a esta exigência e, portanto, não seria um sistema de apostas justo.

Um dispositivo pode ser não-viciado e não-randômico. Tomemos 'O' por coroa e 'A' por cara. Imagine agora que o lançamento sucessivo de uma moeda nos dê a seguinte série:

AAOOOAAOAOAAOOAOAAOOAO

Esta moeda não está viciada, pois gerou os eventos cara e coroa com a mesma freqüência. No entanto, ela não é randômica. Após dois AA, ela sempre gera um O. Um sistema de aposta justo precisa ser randômico e não-viciado ao mesmo tempo.

Agora estamos em condições de entender porque o argumento inicial é falacioso. O problema está em que a conclusão, ao supor que haveria maiores chances de sair cara, em virtude da longa seqüência de coroas, nega a independência dos eventos, o que entra em contradição com a primeira premissa do argumento. Se realmente houvesse maiores chances de sair cara, então o lance de moedas não seria justo. A conclusão não se segue das premissas. Temos, portanto, uma falácia.

Interessante neste argumento é que o apostador, mesmo ciente do que seja um dispositivo de apostas justo, pode racionalmente assentir à sua conclusão, desde que reveja a sua primeira premissa e negue a justeza do lançamento de moedas. E a questão que nos fica é: dado um gerador X de eventos, quando uma seqüência gerada nos permite inferir racionalmente que este gerador ou está viciado ou não gera eventos independentes? A dificuldade toda é que não parece haver uma resposta satisfatória para esta questão se ficamos restritos às séries geradas. Suponha a série gerada inicialmente:

OOOOOOOOOO

O evento coroa ocorreu 10 vezes seguidas. Essa moeda é viciada? Os eventos anteriores determinam os eventos futuros? Inicialmente seríamos tentados a dizer que, no mínimo, ela é viciada. Mas a verdade é que não há como saber e a seqüência de lances poderia muito bem desmentir a conclusão em favor do vício da moeda. Vejamos:

OOOOOOOOOOAAAOAAOAAAOAAAAAOOAOAOAA

17 coroas e 17 caras. Uma moeda nem um pouco viciada. O mesmo se aplica à independência dos eventos. Disse anteriormente que a seguinte série não era randômica:

AAOOOAAOAOAAOOAOAAOOAO

Não será mesmo? E se a seqüência dessa série fosse a seguinte:

AAOOOAAOAOAAOOAOAAOOAOAAAOOAAAAOOOAOAOAAAOO

Agora temos a geração de dois eventos cara que não são seguidos por um evento coroa. Poderíamos dizer que, embora nem sempre um evento coroa seja gerado após dois eventos cara, isso ao menos acontece na maioria dos casos? Não, pois, estendendo-se indefinidamente a série, temos a mesma dificuldade para estabelecer a probabilidade da ocorrência de dois eventos cara seguidos de um coroa. Em 100 lances, essa seqüência poderia ocorrer 3 vezes, em 500, as mesmas 3. A probabilidade da ocorrência da seqüência, no entanto, seria diferente em cada caso. Haveria alguma razão específica para pensar que alguma série finita de lances seria mais correta do que qualquer outra para estimar a probabilidade da ocorrência da referida seqüência? Aparentemente, não.

O ponto é que, em se tratando de dispositivos que podem gerar eventos indefinidamente, dada uma série finita qualquer dos seus eventos gerados, não temos como saber se este dispositivo é viciado ou se gera eventos dependentes dos anteriores. Qualquer estimativa neste sentido pode ser negada posteriormente pela seqüência da série.

Isto não significa que não temos como saber se o lançamento de uma moeda é ou não justo (não-viciado e não-dependente). Não podemos saber pela série gerada. Mas nada impede que viéssemos a saber isto por outros meios, por exemplo, por uma explicação causal das propriedades da moeda. Talvez a sua base inferior, marcada pela coroa, seja mais pesada que a base superior. Uma explicação como esta justificaria a inferência de que a moeda iria cair mais vezes com a face cara voltada para cima do que o contrário.

Uma questão interessante: suponha o gerador XYX de eventos. Não conhecemos as suas propriedades materiais, não temos uma explicação para o seu funcionamento, mas precisamos, por motivos práticos, estimar quão viciado ele é e/ou o quanto a geração de eventos presentes é determinada pelas gerações passadas. Já disse que não podemos saber isso apenas por uma série finita. Mas, neste caso, não queremos conhecimento, certeza. Apenas uma crença racional basta. Portanto, a questão: que série finita seria razoável para fazermos estas estimativas? Por quais critério decidiríamos isso? Um palpite: o tamanho da série vai ser, em parte, determinado em função do risco. Risco da atividade prática que se baseará nas estimativas feitas do vício e do grau de dependência. Quanto mais arriscada a atividade, maior o tamanho da série finita usada. Um exemplo para esclarecer. S terá de lançar amanhã um dado e terá de dizer qual número vai sair. Ele pode escolher qualquer um dos 6. Se errar, será morto. S terá todo o dia para brincar com o dado, sem, no entanto, poder alterar as suas propriedades materiais. S não sabe se o dado é viciado. Talvez seja. S joga o dado 15 vezes e obtém a seguinte série:

121563426135411

Seria razoável ficar por ai e estimar que a ocorrência de 1 é mais provável que a ocorrência dos outros números? Em se tratando do risco que ele corre, certamente que não. O mais razoável para S é seguir adiante lançado o dado, quanto maior a série que ele puder obter até o momento do lançamento definitivo, melhor. Mesmo que ele não possa, desta maneira, descobrir se o dado é viciado ou se ele gera eventos dependentes, quanto maior for a série, mais acertada será a sua estimativa, na suposição de que o dado ou tem algum grau de vício ou gera eventos com algum grau de dependência. Isto é, se dada uma série finita de lançamentos, S estima que 6 aparece em 50% dos lançamentos, S não descobre/determina que o dado seja viciado, mas está razoavelmente justificado em supor que ele seja, pois esta seria a melhor explicação para a estimação obtida. Explicação esta que é razoável e estimulada pela suposição ulterior de que o funcionamento do universo esteja assentado em regularidades.

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