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[200] A distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação, segundo Reichenbach

A distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação é normalmente apresentada como marcando a diferença entre, por um lado, os processos de pensamento, teste e experimentação que de fato ocorreram em um laboratório ou em um ambiente de pesquisa e que levaram ou contribuíram para alguma descoberta científica e, de outro, os processos de justificação e validação dessa descoberta. Haveria, portanto, uma clara diferença entre descrever como cientistas chegaram a fazer certas alegações científicas, o que seria uma tarefa para as ciências empíricas, como a sociologia, a psicologia e a antropologia da ciência, e justificar essas alegações, o que seria uma tarefa para a epistemologia, uma disciplina normativa e não-empírica. Essa distinção é corriqueira em debates acerca do escopo da filosofia da ciência e teria sido explicitada inicialmente por Reichenbach. Contudo, quando examinamos a maneira como ele circunscreveu as tarefas da epistemologia, notamos que alguns elementos importantes não estão explicitados nessa apresentação da distinção.

Segundo Reichenbach, a epistemologia tem três tarefas: uma tarefa descritiva e duas tarefas críticas, a avaliativa e a consultiva. Aqui já notamos uma diferença importante em relação à distinção apresentada acima: a epistemologia não é uma disciplina puramente normativa, ela envolve descrição. Em que consiste essa tarefa? Para Reichenbach, de fato é fundamental distinguir a tarefa descritiva da epistemologia da tarefa descritiva da sociologia e da psicologia. A sociologia do conhecimento tem interesse em descrever a relação entre alegações de conhecimento e fatos que são externos ao conteúdo dessas alegações de conhecimento. Assim, pode ser do interesse da sociologia do conhecimento relacionar certas alegações de conhecimento com a classe social dos cientistas que fizeram essas alegações, com certas necessidades econômicas e sociais do período histórico em que tais alegações foram feitas etc. Por exemplo, a afirmação de Kuhn de que a aceitação da teoria copernicana foi favorecida pela necessidade de se fazer uma reforma no calendário (KUHN, 1998, p. 15) é tipicamente uma descrição sociológica, pois relaciona uma fato externo à teoria copernicana com a alegação dessa teoria. Tal descrição nos apresenta uma causa, mas não uma razão para essa alegação. A tarefa descritiva da epistemologia visa antes as relações internas entre os conteúdos das alegações de conhecimento, relações entre conteúdos que ocorrem aos cientistas de uma determinada disciplina. Contudo, a tarefa descritiva da epistemologia precisa ainda ser distinguida da tarefa descritiva da psicologia. A epistemologia não está interessada em descrever o processo real de pensamento de um cientista. O processo real de pensamento é frequentemente vago, confuso, realiza saltos e toma atalhos que, a primeira vista, são difíceis de justificar ou mesmo de compreender. A sequência de pensamentos que ocorre a um cientista no laboratório ou em um ambiente de pesquisa não é o que a epistemologia deve capturar na sua tarefa descritiva, essa é uma tarefa para a psicologia do conhecimento. Em linguagem mais corriqueira, a descrição da sequência de pensamentos que antecede uma alegação de conhecimento pode nos fornece os motivos do cientista para essa alegação, mas não necessariamente as razões que a sustentam. O que a epistemologia pretende, portanto, fazer, na sua tarefa descritiva, é apresentar um substituto para o processo real de pensamento que esclareça ou explicite as razões que o próprio cientista estaria em condições de fornecer para a sua alegação final de conhecimento. As relações internas entre conteúdos que o epistemólogo pretende descrever são de um tipo especial, tratam-se de relações de justificação ou de confirmação. Esse substituto foi chamado de reconstrução racional por Reichenbach:
A Epistemologia não considera os processos de pensamento na sua ocorrência real, essa tarefa é deixada inteiramente para a psicologia. O que a epistemologia pretende é construir processos de pensamento de uma maneira em que eles deveriam ocorrer se eles fossem ordenados em um sistema consistente, ou construir conjuntos justificáveis de operações que podem ser interpostas entre o ponto de partida e o resultado dos processos de pensamento, substituindo as ligações intermediárias reais. A epistemologia assim considera um substituto lógico ao invés de processos reais. Para esse substituto lógico o termo reconstrução racional foi introduzido (REICHENBACH, 1961, p. 5)

Alguns pontos precisam ser enfatizados para deixar claro por que essa tarefa é descritiva e não avaliativa. Em primeiro lugar, a reconstrução racional não é arbitrária, ela é guiada pelo princípio da correspondência, isto é, ela deve preservar tanto quanto possível o pensamento real, embora seja, do ponto de vista explicativo e da compreensão, uma versão melhorada do pensamento real. A reconstrução racional “expressa o que queremos dizer, propriamente falando” (1961, p. 6). Para Reichenbach, as exposições que os cientistas fazem de uma hipótese e das evidências que a sustentam em artigos e relatórios são bastante próximas do que ele pensa ser a reconstrução racional, e ilustram claramente a diferença entre ela e o processo real de pensamento. A reconstrução racional é, assim, uma versão melhorada, mais articulada e esclarecida, dessa exposição. Um segundo ponto relevante acerca da reconstrução racional é que essa tarefa não envolve ainda qualquer avaliação acerca da correção ou verdade do que o cientista toma como sendo casos claros ou indiscutíveis de evidência elementar. O mesmo pode ser dito acerca da validade das operações de justificação que são interpostas entre o ponto de partida e a hipótese ou alegação final de conhecimento. Há ganho de esclarecimento e articulação ao reconstruir esse processo com base nas operações de justificação menos disputáveis e suspeitas entre os cientistas, mas isso ainda não significa que tais operações foram ou estejam sendo submetidas à crítica epistemológica. A reconstrução racional não é crítica, é descritiva, o ganho cognitivo que ela nos fornece é de compreensão e esclarecimento. Por fim, a diferença entre a reconstrução racional de uma cognição ou de uma alegação de conhecimento e o processo de pensamento real que resultou nessa alegação é, para Reichenbach, o que constitui a distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação:

Por exemplo, a maneira pela qual um matemático publica uma nova demonstração, ou um físico, o seu raciocínio lógico para a fundamentação de uma nova teoria, quase corresponderia ao nosso conceito de reconstrução racional; e a bem conhecida diferença entre a maneira do pensador de descobrir o seu teoria e a sua maneira de apresentá-la diante do público pode ilustrar a diferença em questão. Eu irei introduzir os termos contexto de descoberta e contexto de justificação para marcar essa distinção (REICHENBACH, 1961, p. 6-7)
Trata-se, portanto, de uma distinção que opera no âmbito da tarefa descritiva. Ela distingue a tarefa descritiva da psicologia da tarefa descritiva da epistemologia. Essa tarefa é necessária para a próxima etapa crítica do empreendimento epistemológico, em que o item reconstruído racionalmente é “julgado em relação a sua validade e confiabilidade” (1961, p. 7). Assim, a distinção feita no início desta seção não corresponde à distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação feita por Reichebach, mas se aproxima da distinção que ele faz entre as tarefas descritiva e crítica da epistemologia.

Sobre as demais tarefas da epistemologia, falarei em outra oportunidade.

  • REICHENBACH, Hans. (1961). Experience and Prediction. Illinois: The University of Chicago Press. 
  • KUHN, Tomas. (1998). A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Editora Perspectiva. 

Comentários

Claudio Reis disse…
Bem esclarecedor!

Eu estava entre esses que pensava que a distinção entre contexto da descoberta e contexto da justificação era uma distinção entre os âmbitos descritivo e normativo. Como a epistemologia seria restrita ao contexto da justificação, isso a tornaria exclusivamente normativa. O âmbito descritivo seria exclusividade das ciências (e de outras áreas). Ainda assim, a epistemologia seria importante na medida em que as atividades descritivas também envolvem (mesmo que tacitamente) juízos de valor, e estes precisam ser explicitados, analisados, revisados e criticados, quando necessário.

No entanto, como apresentado no texto, a distinção de Reichenbach entre contexto da descoberta e contexto da justificação opera no âmbito da tarefa descritiva. Isso significa que a epistemologia possui um papel descritivo e que, além do mais, ele é distinto do papel descritivo da psicologia, porque se tratam de contextos distintos.

Porém, eu tenho certa dificuldade em distinguir os âmbitos descritivo e normativo da epistemologia. Pergunto: se sua tarefa em âmbito descritivo opera no contexto da justificação e por meio de reconstruções racionais, como ela não envolveria o âmbito normativo? Os termos “justificação” e reconstrução “racional” não são eminentemente normativos?

Minha outra pergunta seria a seguinte: entender a tarefa descritiva da epistemologia como uma tarefa de reconstrução racional, operando como “um substituto lógico ao invés de processos reais”, não restringe demasiadamente o papel da epistemologia? A distinção que Reichenbach traça entre as tarefas descritivas da psicologia e da epistemologia não é muito grosseira para os dias de hoje (como se, de um lado, houvesse a pesquisa empírica da psicologia e, de outro, uma epistemologia restrita a aspectos lógicos)?

Uma epistemologia mais pragmática, mas não cientificista, deveria romper com a distinção entre contexto da descoberta e contexto da justificação? Ou deveria apenas interpretar de modo mais maleável, não exclusivamente lógico, a ideia de reconstrução racional (isto é, apresentar uma teoria mais maleável da racionalidade)?

Como sempre, acabo colocando algumas questões que me instigam, mas sei que daria um bom trabalho responde-las todas. Não pretendo te dar esse trabalho!

Mas, sim, aguardo as postagens sobre as demais tarefas (normativas) da epistemologia. :)

Um abraço,
Claudio

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