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Mostrando postagens de 2008

[104] Da Onisciência

Se Ele sabe tudo o que há para ser sabido, então obviamente Ele pode fazer tudo o que é necessário para o que quer que possa ser sabido, o que, no entanto, não implica que ele tudo possa fazer, caso haja coisas que se possa fazer que não sejam necessitadas por algum saber. Não é evidente, assim, que onisciência implique onipotência. Porém, se saber for um tipo de fazer, então fica claro que a onipotência implica a onisciência. Humanamente falando, a perspectiva de imaginar alguém onisciente é desalentador. Se, por um lado, todo o desejo particular de saber é automaticamente satisfeito, por outro, o desejo de desejar saber será eternamente frustrado. Não é por outro motivo que, sob este aspecto, estamos bem longe de termos sido feitos a sua imagem e semelhança. Ele não deseja, ou, se deseja, o faz de uma maneira bem diversa da nossa, pulsiva. Digamos que ele não deseja senão motivado por razões. Como Ele tudo sabe, não há qualquer razão para ter o desejo de desejar saber. Assim, Ele não

[103] Liberdade e Indeterminismo

Em [93] discuti algumas intuições em torno da liberdade e da responsabilidade moral. Arrolei algumas razões tanto para a liberdade da espontaneidade quanto para a liberdade da indiferença. É difícil preferir uma em detrimento da outra, racionalmente. Vejamos, no entanto, o que é necessário mudar em nossa visão de mundo para sustentar a liberdade da indiferença. Em visões não-transcendentais e não-dualistas da liberdade da indiferença, o indeterminismo parece ser necessário. O indeterminismo é a tese de que alguns eventos físicos não são causados, mas inauguram no mundo uma nova série causal. Sendo o ato de volição ou ato de escolher, decidir, deliberar um evento físico, caso este evento seja não causado, isto é, indeterminado, segue-se que ele é livre segundo a liberdade da indiferença. E a ação resultante deste ato é também livre e sobre a qual o indivíduo é responsável. O indeterminismo gera, no entanto, um problema epistêmico. Dada uma ação qualquer, que também é um evento físico,

[102] Relativismo e Irracionalismo

Irracionalismo é a tese de que os nossos julgamentos são arbitrários. O irracionalismo pode aplicar-se apenas a um setor do conhecimento humano. Por exemplo, podemos ser irracionalistas morais. Assim, julgamentos morais sobre como agir, o que fazer, o que é certo e errado são arbitrários, não temos uma razão para eles, eles não se fundam em nada que possa legitimá-los diante dos outros. Podem ser fomentados por nossas emoções ou desejos, mas nada disso tira a sua arbitrariedade diante da razão. Chegaríamos ao irracionalismo moral se tivéssemos razões para pensar que não há nada na razão que pudesse amparar julgamentos morais. Isto é, dado um dilema moral do tipo "devo fazer X ou ~X", não há ao que apelar racionalmente para decidir a questão. Donde se seque que, qualquer decisão que você tomar, seja a favor de X, seja de ~X, será arbitrária. Como poderia a razão ser tão indiferente à moralidade? Primeiro vejamos o que conferiria autoridade racional a um julgamento moral, pois

[101] Quão liberal devemos ser?

Se você não sabe se é melhor ou mais correto fazer X que ~X, então por uma regra de justiça deve ser liberal quanto a quem faz X ou ~X, ainda que você tenha mais inclinação para X. Você deve ser tão mais liberal quanto menos certo estiver a respeito de fazer X ou ~X. Pode-se questionar a visão cognitiva aqui das regras morais. Talvez não haja algo para saber de acordo com o qual possamos determinar se uma regra é correta ou errada. Ainda assim, mesmo numa visão emotivista das regras, podemos dizer que você é tão mais liberal quanto menos reativo você for diante X ou ~X. A maioria das pessoas é muito reativa diante do assassínio e, por isso, são pouco liberais quanto ao assassinato. Quando o assunto é comer com mãos ou sem elas, a reatividade é baixa e, por isso, devemos ser mais liberais. Em se tratando de como se deve fazer filosofia, os filósofos, numa perspectiva cognitiva, devem ser liberais quanto ao filosofar, já que poucos sabem qual é a maneira correta de se filosofar. Na prá

[100] Vaidade e Verdade

Caminhamos ou desejamos caminhar para a verdade, seja a de si, ou a de outrém, ou de alguma coisa. O caminho já é turvo pelas nossas finitudes, pelos preconceitos que não saem à primeira análise. Adicione a isso tudo o maior dos obstáculos: a vaidade. Nas discussões lá está ela acentuando a discordia e impedindo a convergência pelos métodos mais infames: mentira, descrença e aparência. A vaidade faz com que o homem se despreenda da sua evidência interna. Sua mente corre livre e solta para fabular e confabular, respeitando apenas a evidência externa, a voz alheia que se deseja solapar. As próprias chagas já não são sentidas, mas somente aquelas que os outros apontam e cutucam. Para vencer, para saciar a sua sede de poder, o homem se liberta do seu sentido de correção em nome do seu sentido de aparição. Ele se descrê para que o outro lhe creia. Com duras marteladas esse homem desvia a sua rota da verdade para a mentira. Pouco importa desde que seu nome belo e sublime continue intocável.

[99] Corpo e Filosofia

A vida sempre derrota a filosofia, por mais inventiva e contundente que esta última seja. O filósofo gera razões para dúvidas (Hume), cria gênios malignos (Descartes), mas o corpo crédulo do filósofo resiste crendo. O filósofo cria éticas negativas (Cabrera), desnuda o desvalor da vida, pinta em tons cinzas a nossa miséria (Schopenhauer), o absurdo de existir (Camus), mas o corpo deste mesmo filósofo apossa-se dele e reluta em viver. Na verdade, é o corpo que sempre derrota a filosofia, que invade truculento e irracional a arena da argumentação. Ainda mais fatal é o fato de ser sempre dele a palavra final. O que nos levanta a dúvida quanto à eficácia da filosofia. Pontualmente, ela pode ter alguma, tornando uns e outros vegetarianos, etílicos moderados etc. No entanto, somente o faz porque o corpo da à razão/filosofia uma pequena liberdade de manobra em alguns de seus meandros. Em outras regiões, a balbúrdia filosófica é simplesmente inaudita ao corpo. Algumas coisas a gente, o eu raci

[98] Definição matemática

Uma definição matemática de uma entidade é impredicativa (impredicative) se ela faz referência a um conjunto que contém a entidade definida. Isso não é problemático quando lidamos com conjuntos finitos. A definição do sujeito mais alto de uma sala é impredicativa, pois ela faz referência ao conjunto das pessoas na sala, o qual contém como elemento o sujeito mais alto da sala. Há uma certa circularidade na definição, pois a entidade definida é pressuposta ou referenciada por meio do conjunto que a contém. A situação não é tão pacífica quando a definição impredicativa faz referência a conjuntos infinitos. É o caso da definição de supremum . Seja X um conjunto, supX é o menor elemento maior que todos os elementos de X. Para definir supX , primeiro identificamos o conjunto de todos os elementos que servem de limite superior a X, isto é, qualquer elemento deste conjunto é maior ou igual que todos os elementos de X. Então, se s= supX , então s deve satisfazer: para todo x E X, x<=s. Ess

[97] 5 Questions

5 Questions é uma série de livros separados por áreas chaves da filosofia, como Epistemologia, Filosofia da Matemática, Filosofia das Ciências Socais etc, cujo propósito é entrevistar os represantes mais proeminentes da área com 5 questões, interrogando a sua formação, seu trabalho de maior impacto na área, os cursos de investigação frutíferos e aqueles que julgam como uma boa aposta para o futuro ou os rumos que acreditam que a disciplina irá tomar. O volume Mind and Consciousness ainda não saiu, mas é possível encontrar o esboço das respostas de alguns filósofos: David Chalmers , David Rosenthal , Michael Tye e Stephen Stich . Saliento a resposta do Stich sobre o seu trabalho de maior impacto. Para ele não foi nenhum artigo ou idéia em especial, mas sim o seu trabalho árduo junto aos seus orientandos para posicioná-los bem no mercado de trabalho, em especial, preparando-os para enfrentar a resistência que encontram por adotar uma abordagem ligeiramente heterodoxa em filosofia, cham

[96] Fenomenologia

Apesar da resenha não ser completamente positiva e apontar para algumas faltas e falhas consideráveis, eu gostaria de ter a grana para comprar o livro (The Phenomenological Mind, Gallagher) resenhado por Beaver . A fenomenologia está novamente em alta, como já havia salientado em [91] ; não, obviamente, como um projeto de descobertas aprioristicas como fora no passado. Agora é preciso acomodá-la ao paradigma naturalista dominante. Neste quadro, a fenomenologia tem uma função bem específica a cumprir: descrever bem a nossa experiência. Muitos estudos cognitivos e neurológicos pecam em seus resultados por partirem de descrições ruins ou equivocadas da experiência, em especial, quando a temporalidade está envolvida. A fenomenologia, assim, reaparece como um método descritivo cujo objetivo é capturar, na perspectiva da primeira pessoa, o que se passa na sua experiência e, ao mesmo tempo, fazê-lo de uma forma "rigorosa", apropriada para fins científicos. É possível? Não sei. Antes

[95] Eu

Mesmo conceitos vazios ou quase-vazios servem para alguma coisa. Não falo obviamente do vazio da matemática que tem uma função muito bem definida na teoria dos conjuntos. Falo do 'Eu', conceito tão vazio quanto o zero à esquerda. Digo 'vazio' pela pouca ou mesmo nada de informação que ele carrega. Quando escutamos alguém dizer 'Eu fui ontem na praça do Expedicionário', ainda que o falante nos seja um completo desconhecido, identificamos a referência do 'Eu' como sendo a pessoa que profere a frase. Nada mais sabemos, nenhuma outra informação é obtida, podemos desconhecer o caráter desse sujeito por completo, ele pode ser para mim um completo desconhecido. O 'Eu', assim, me dá apenas a informação categorial de que a sua referência, identificada apenas no ato de proferimento, é um agente ou uma pessoa. Mesmo quando o 'Eu' é avaliado na perspectiva da primeira pessoa, mesmo quando eu uso o 'Eu' para falar algo de mim mesmo, ainda aqui

[94] Internalismo e Externalismo

Há uma grande diversidade de modos de se distinguir externo de interno, alguns deles triviais e outros não. A distinção costuma ser borrada ou difícil de se sustentar quando introduzida com mais de um modalizador, i.e, possível e acessível. Por exemplo, podemos definir o internalismo a respeito do conteúdo mental assim: o conteúdo de qualquer pensamento é determinado por fatores acessíveis ao sujeito. A pergunta que obviamente se levanta diz respeito aos limites e restrições do acesso. Por qual meio é feito o acesso aos fatores determinantes, apenas por pensamentos proposicionais ou imagens e percepções também são aceitas? Os fatores determinantes do pensamento p devem ser acessíveis apenas no momento em que o sujeito pensa p ou podemos relaxar essa restrição e dizer que eles podem ser acessíveis em algum momento? Aqui já complicamos um pouco, pois usamos um outro modalizador para restringir o acesso. Fatores que um sujeito pode acessar é um tanto quanto vago. O modalizador pode ca

[93] Liberdade e Compatibilismo

Liberdade negativa ou liberdade da espontaneidade é a capacidade que o indivíduo tem de agir segundo a sua vontade ou desejo (Hobbes, Hume). Na ausência de obstáculos, se o sujeito tem uma vontade, ele é capaz de realizar a ação que satisfaz essa vontade e dizemos que a ação foi livre mesmo que a sua vontade tivesse sido determinada por algum processo causal anterior, provavelmente inconsciente. Esse tipo de liberdade parece ser essencial para a atribuição de responsabilidade. Se não vemos o sujeito como produtor da sua ação, não tendemos a lhe imputar responsabilidade pela ação resultante. Se o braço do indivíduo A é movido por B para atingir C, não diremos que A é responsável pela dor causada em C, já que a ação de bater em C com o seu braço não foi produzida por ele, nem emergiu de alguma vontade sua. Guardemos essa intuição sobre a atribuição de responsabilidade: o sujeito deve ser o produtor da sua ação, devemos percebê-lo como sendo a causa da sua ação, isto é, ela tem de partir

[92]

Há um sentido de "Eu compreendo" que se remete não ao significado do que é dito, mas a uma experiência vivida que além de explicar o que é dito, tornando-o inteligível, aproxima também falante e ouvinte por um elo empático. Este elo não pode ser suprimido da compreensão sem perda de inteligibilidade. Não é à toa que presenciamos o surgimento de sentimentos gregários entre pessoas que passaram pelos mesmos sofrimentos. Elas podem dizer umas para as outras com maior autoridade "Eu compreendo". Se queremos compreender alguém, temos que tentar nos aproximar do seu vivido, temos que tentar assimilá-lo a nossa própria vivência.

[91]

Recomendo a leitura deste ensaio do Sean Kelly sobre a revitalização da fenomenologia e a contribuição que ela ainda tem para a filosofia.

[90]

Geralmente, quando você faz uma afirmação, ela versa sobre alguma coisa, isto é, esta coisa é o objeto ou a referência da sua afirmação. Entender uma afirmação envolve entender qual é a sua referência. Se eu não sei sobre qual coisa algo está sendo afirmado, tampouco pode-se dizer que entendo a afirmação. Repare, no entanto, que uma coisa é entender ou saber qual é a referência (aquilo sobre o qual algo é afirmado) de uma afirmação e outra coisa bem diferente é ter um conhecimento direto, perceptivo ou intuitivo, desta referência. Posso fazer várias afirmações sem conhecer diretamente seus referentes. Posso, por exemplo, fazer a afirmação provavelmente falsa de que 'Extraterrestres são verdes', muito embora eu jamais tenha visto um. Que fique claro: podemos entender perfeitamente o sentido desta afirmação, qual a sua referência, a saber, o conjunto de todos os seres que nasceram fora da Terra, sem ter jamais conhecido diretamente um desses seres. Na verdade, pode ser o caso qu

[89]

1) A tese do determinismo é inicialmente simples de se enunciar: todo efeito tem uma causa ou um conjunto de causas e o primeiro é completamente determinado pelas segundas, isto é, tanto a ocorrência do efeito quanto as suas propriedades podem ser explicadas pelas suas causas. 2) A tese do livre-arbítrio afirma que uma ação é livre se ela não é constrangida ou causada.   A incompatibilidade entre as duas teses é patente. A ação humana, sendo ela um evento ou efeito, pelo determinismo, teria uma causa. Um voluntarista defensor da tese 2) afirma que não.   Mas há, então, um problema para o voluntarista: se a ação de um sujeito não é causada, como iremos responsabilizar o sujeito por ela? Precisamos de relações causais que relacionem as intenções do sujeito às suas ações tanto quanto para explicar o movimento da bola de bilhar ao ser atingida por uma outra. Sendo assim, temos: 3) A tese da responsabilidade moral, um sujeito é responsável por uma ação que podemos lhe imputar, isto é, por u

[88]

Trago à baila novamente a questão sobre se há um gênero literário mais apropriado para a expressão da filosofia. Quatro filósofos respondem à questão , lá no final da entrevista, a última. Nenhum deles, é verdade, diz algo de muito interessante ou que já não fosse esperado. Todos parecem estar acomodados com a hegemonia do gênero acadêmico. Apenas um deles nota o hermetismo provocado pelo pedantismo acadêmico. O diálogo é lembrado por Barry Stroud como gênero notável para a expressão filosófica, mas de difícil realização. Curioso nenhum deles ter lembrado do ensaio.  Claro que expressar a filosofia em forma de prosa lhe permite uma articulação maior das idéias e um texto que procura explicitamente apresentar argumentos e justificativas para uma idéia filosófica é, digamos, mais filosófico que um outro que apenas apresenta essa idéia. Mas o que seja uma justificativa também para uma idéia é algo variável. Nada impede que uma idéia moral, por exemplo, seja justificada em um romance por m

[87]

Dilema da amizade. Suponha que você tenha uma informação relevante que, se transmitida a terceiros, poderia evitar com que o seu amigo se ferisse gravemente. No entanto, seu amigo lhe pede que não transmita a informação e enfatiza a confiança que deposita em você, além disso, ele está bem ciente do seu risco. O que você, na qualidade de amigo, faz? Que tem mais importância em uma relação de amizade, o seu afeto pelo amigo, pela vida do amigo, pelo seu bem-estar, ou a confiança sobre a qual a relação se estabelece? Se você transmite a informação e quebra, assim, a confiança do seu amigo, é mesmo possível que a amizade termine, que seu amigo não o perdoe. E, de fato, parece ser difícil ser amigo de alguém em quem você não confia. Mas será a confiança necessária? Por outro lado, se você não transmite a informação e o seu amigo se fere quase mortalmente, não se poderia dizer que o seu apreço pelo amigo era demasiado pequeno a ponto de nem qualificarmos a relação que tinha com ele como a de

[86]

A filosofia está em alta nos EUA , por razões utilitaristas, é verdade. Uns adentram no meio para melhorar as suas habilidades argumentativas, outros a escolhem para melhorar suas habilidades de pensamento e escrita, por fim, há ainda aqueles que buscam na filosofia um ar de gravidade existencial que lhes tornará mais promissores na conquista de garotas. A motivação é sempre aprimorar alguma habilidade, seja lá qual for. Não posso ver isso com olhos completamente negativos, os efeitos podem ser bons, ainda que as motivações, em uns casos mais que outros, não sejam tão boas. De qualquer modo, por que haveria eu de achar também que é mais legítimo o sujeito que se move para a filosofia por viver na pele as suas questões e não aquentar em si a inquietude da dúvida? A motivação aqui, embora boa aos meus olhos, não é utilitarista também? O sujeito tem uma falta, um desejo, uma demanda, uma inquietação e busca supri-la pela filosofia (ele pensa que vai supri-la, mas, na verdade, só vai acent

[85]

Não temos nenhuma métrica para a quantificação do sofrimento, pois sua natureza subjetiva impossibilita ou pelo menos dificulta bastante o estabelecimento de um quantum comum de sofrimento a partir do qual pudéssemos aferir a intensidade do sofrimento de cada indivíduo. Um mesmo estímulo provoca sofrimentos de intensidades distintas em pessoas diferentes. Difícil também saber exatamente o que medir, a reação corpórea e comportamental do indivíduo sofredor ou o impacto que a experiência do sofrimento tem na sua existência. A segunda opção obsta ainda mais uma métrica, pois adentra no terreno dos significados. Ainda assim, somos capazes de avaliar intuitivamente o sofrimento. Cada qual se usa como métrica para estimar o sofrimento do outro e é mesmo capaz de fazer compensações ao conhecer um pouco mais a história ou os acontecimentos recentes deste outro. No fundo, assumimos que as discrepâncias individuais não sejam tão acentuadas. Correto ou não, preciso ou não, é assim que fazemos. F

[84]

Psicologia filosófica é o estudo que tem por objeto a dimensão existencial da vivência filosófica, não se resume à fenomenologia, embora a incorpore, pois foca não apenas as vivências internas do sujeito, a partir da sua própria perspectiva, mas também os seus comportamentos, a partir de uma visão externa. Cabe aqui saber quais as implicações para a vida e o comportamento de um sujeito ao abraçar e incorporar determinadas idéias filosóficas.

[83]

Costumo dizer que o desejo é tudo que brota irrefletidamente das emoções e dos instintos mais básicos, ao passo que a vontade é um desejo sedimentado no curso de uma reflexão. A distinção é mesmo borrada, há casos nebulosos de desejo-vontade. De qualquer forma, pode-se enxergar na vontade um desejo sancionado, com intenções de universalidade e objetividade. Outra possibilidade seria dizer que a vontade, por ser fruto da adição de uma reflexão sobre o desejo, teria uma intimidade maior com o sujeito que os seus desejos, isto é, as suas vontades lhe seriam mais essenciais e os desejos mais acidentais. No entanto, é arbitrário dizer que a sanção da razão torna algo mais íntimo do sujeito que as suas emoções e instintos. Ou talvez não seja tão arbitrário assim. Uma possibilidade: a reflexão, por examinar simultaneamente distintas facetas do sujeito, suas inúmeras crenças e atitudes, é capaz de julgar quais desejos estão em maior conformidade com essa sopa confusa que é o sujeito. E o desej

[82]

A filosofia de boteco, aquela feita sem muita preocupação acadêmica, através do livre pensar, ainda pode mudar a vida de uma pessoa, pode ter um efeito sobre o seu comportamento e até mesmo sobre a sua psicologia, despertando ou retendo emoções. Mas o que muda na vida de uma pessoa ao entrar numa discussão mais técnica sobre indexicais, a natureza conceitual da experiência perceptiva e outras coisas mais obstrusas? Muito pouco ou quase nada. Ou talvez mude, pode ser que aqui o correto fosse pensar que importa mais a filosofia estar adequada à linguagem a qual a pessoa está acostumada, que ela seja inteligível, e um perito em indexicais certamente vai incorporar cada nova informação sobre o assunto ao seu mundo e à sua práxis.

[81]

Existe um registro de escrita ou um gênero literário mais apropriado para a filosofia? Claro que uma resposta a esta questão pressupõe um entendimento prévio do que seja a própria filosofia. A questão, assim, é meta-filosófica. Antes eu pensava que a filosofia era uma atividade puramente conceitual e não-empírica, filosofar é aventurar-se em possibilidades conceituais, freqüentemente, em inusitadas possibilidades, quando há a criação de novos conceitos ou mesmo até de toda uma linguagem. O filósofo é alguém que anseia por uma compreensão cada vez mais ampla da sua experiência de mundo e a compreensão que ele erige é essencialmente mediada por conceitos. No entanto, entender a filosofia como uma atividade conceitual é bastante restritivo, ainda mais se tivermos em mente apenas os conceitos verbais. Primeiro por enjaular a filosofia no cárcere lógico próprio da estrutura conceitual, segundo por não refletir todas as possibilidades reais que temos para pensar a própria experiência do mun

[80]

No Crepúsculo dos Ìdolos , aforismo 31, Nietzsche compara o humilde ao verme. Ele nos lembra que este se encolhe quando infligido para que assim evite um segundo safanão, esta é a sua astúcia. Depois afirma que o correlato deste comportamento na moral é a humildade. De fato, a humildade contém uma retração, uma contenção, uma castração da vontade de afirmar. O humilde fala pouco, arrisca pouco, erra pouco, apanha menos, mas também conquista menos. Mas talvez possamos aqui distinguir a humildade parcimoniosa da humildade medrosa. A primeira se baseia na prudência, o sujeito se retém por razões que ele julga sensatas. Ele se cala não para evitar a violência, mas por perceber que a probabilidade de erro é alta. É verdade que, em última instância, ele se retém para evitar o safanão, mas a violência aqui é precificada, estimada, não se trata de um medo irrefletido. Ele pondera o preço desta violência e avalia o risco de ter de vir a pagá-lo. Só então decide, enfim, é prudente. A segunda hum