Pular para o conteúdo principal

[83]

Costumo dizer que o desejo é tudo que brota irrefletidamente das emoções e dos instintos mais básicos, ao passo que a vontade é um desejo sedimentado no curso de uma reflexão. A distinção é mesmo borrada, há casos nebulosos de desejo-vontade. De qualquer forma, pode-se enxergar na vontade um desejo sancionado, com intenções de universalidade e objetividade. Outra possibilidade seria dizer que a vontade, por ser fruto da adição de uma reflexão sobre o desejo, teria uma intimidade maior com o sujeito que os seus desejos, isto é, as suas vontades lhe seriam mais essenciais e os desejos mais acidentais. No entanto, é arbitrário dizer que a sanção da razão torna algo mais íntimo do sujeito que as suas emoções e instintos. Ou talvez não seja tão arbitrário assim. Uma possibilidade: a reflexão, por examinar simultaneamente distintas facetas do sujeito, suas inúmeras crenças e atitudes, é capaz de julgar quais desejos estão em maior conformidade com essa sopa confusa que é o sujeito. E o desejo simples seria então apenas a manifestação de uma única faceta do sujeito. Mas não quero dar aqui uma dimensão temporal à coisa. Um desejo reflete uma singularidade do sujeito, mas esta singularidade não precisa ser efêmera, ela pode ser intensa o suficiente para resistir ao longo do tempo, mesmo se estiver em desarmonia com todo o restante do sujeito. E nada impede que uma vontade seja efêmera, embora talvez seja mais raro, se o sujeito passar por um período de intensa reavaliação das suas crenças.

Falar que a vontade está em maior conformidade com o sujeito que os desejos pressupõe que haja uma certa coesão no próprio sujeito e aí reside uma grande dificuldade.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

[102] Relativismo e Irracionalismo

Irracionalismo é a tese de que os nossos julgamentos são arbitrários. O irracionalismo pode aplicar-se apenas a um setor do conhecimento humano. Por exemplo, podemos ser irracionalistas morais. Assim, julgamentos morais sobre como agir, o que fazer, o que é certo e errado são arbitrários, não temos uma razão para eles, eles não se fundam em nada que possa legitimá-los diante dos outros. Podem ser fomentados por nossas emoções ou desejos, mas nada disso tira a sua arbitrariedade diante da razão. Chegaríamos ao irracionalismo moral se tivéssemos razões para pensar que não há nada na razão que pudesse amparar julgamentos morais. Isto é, dado um dilema moral do tipo "devo fazer X ou ~X", não há ao que apelar racionalmente para decidir a questão. Donde se seque que, qualquer decisão que você tomar, seja a favor de X, seja de ~X, será arbitrária. Como poderia a razão ser tão indiferente à moralidade? Primeiro vejamos o que conferiria autoridade racional a um julgamento moral, pois

[197] Breve introdução à tese da mente estendida

A tese da mente estendida é distinta e não se confunde com o externismo acerca dos conteúdos mentais. Nesta breve introdução, apresento em linhas gerais o externismo acerca dos conteúdos mentais para, em seguida, contrastá-lo com a tese da mente estendida. Identifico e apresento, então, os principais comprometimentos da tese da mente estendida. A tese do externismo acerca dos conteúdos mentais afirma que as relações causais que temos com o ambiente determinam, de alguma forma, o conteúdo dos nossos estados mentais, ou seja, aquilo que percebemos, ou aquilo acerca do qual pensamos algo, ou aquilo que desejamos etc. depende dos objetos com os quais interagimos causalmente. Um argumento comum em favor dessa tese é inspirado no argumento clássico de Putnam para o externismo semântico[1]. Imaginemos um planeta muito semelhante ao nosso, praticamente gêmeo nas aparências. Ele é abundante em um líquido muito semelhante à água, povoado com seres inteligentes como nós e que usam esse lí

[205] Desafios e limitações do ChatGPT

  Ontem tive uma excelente discussão com o Everton Garcia da Costa (UFRGS) e André Dirceu Gerardi (FGV-SP), a convite do NUPERGS, sobre Desafios e Limitações do ChatGPT nas ciências humanas . Agradeço a ambos pela aprendizagem propiciada. Gostaria de fazer duas considerações que não enfatizei o bastante ou esqueci mesmo de fazer. Insisti várias vezes que o ChatGPT é um papagaio estocástico (a expressão não é minha, mas de Emily Bender , professora de linguística computacional) ou um gerador de bobagens. Como expliquei, isso se deve ao fato de que o ChatGPT opera com um modelo amplo de linguagem estatístico. Esse modelo é obtido pelo treinamento em um corpus amplo de textos em que a máquina procurará relações estatísticas entre palavras, expressões ou sentenças. Por exemplo, qual a chance de “inflação” vir acompanhada de “juros” numa mesma sentença? Esse é o tipo de relação que será “codificada” no modelo de linguagem. Quanto maior o corpus, maiores as chances de que esse modelo será