Pular para o conteúdo principal

Postagens

Mostrando postagens de março, 2009

[127] Liberdade e Compulsão II

Em [125] , relacionei os predicados "ser livre" e "estar em um estado de compulsão". Interpretei ambos gradualmente e defendi que quanto mais um sujeito se encontra em um estado compulsivo, menos ele é livre. Nada disse sobre a relação reversa. O sujeito ser menos livre por outras razões é algo que ainda deixo em aberto. Um caso evidente de compulsão é a do viciado em drogas. Quando o grau do vício é muito elevado, descrevemos o sujeito como muito pouco livre, já que a sua vontade de consumir drogas prepondera o tempo todo ou quase o tempo todo. No entanto, podemos nos perguntar se o fato de ele ser considerado relativamente não-livre, nesta situação, se deve menos ao seu estado compulsivo, quebrando, assim, a associação que fiz, e mais ao fato de ele estar "preso" a uma "má" vontade, a saber, a de usar drogas. Se ele estivesse igualmente preso a uma boa vontade, diríamos que ele é livre? Enfim, o ser ou não livre depende do juízo de valor que fa

[126] Percepção, Alucinação e Ceticismo

Como ensinamos o faz de conta para um pessoa? Ensinamos o faz de conta mostrando para a pessoa que ela não deve atribuir os predicados "é verdadeiro" e "é falso" àquilo que ela diz. Isso que ela diz sem interpretá-lo como verdadeiro ou falso é o que constitui o discurso faz de conta. De qualquer modo, o discurso faz de conta é parasita do discurso assertivo. Não há como ensinar o faz de conta antes de ensinar como asseverar, como dizer a verdade ou a falsidade. O uso primário da linguagem é apofântico, assertivo. De maneira semelhante, a alucinação é parasitária da percepção. A percepção só ocorre quando há, de fato, o objeto da percepção. Um sujeito vê uma estante se há diante dele uma estante e a sua visão está funcionando adequadamente, de outro modo, ele estaria alucinando ou tendo uma ilusão. Quando o sujeito tem a alucinação de uma estante, ele não tem diante de si uma estante. Ele tem a experiência de ver uma estante. Esse é o máximo que podemos ir ao descrev

[125] Liberdade e Compulsão

O que me parece ser crucial para que um sujeito seja efetivamente livre é que ele tenha, digamos, um sistema de vontades e meta-vontades em que, para cada uma de suas vontades, é relativamente provável que o sujeito possa manter-se fiel a esta vontade. Este relativamente provável é para ser lido em um sentido estatístico. O sujeito deixa de ser livre, ou descrito como livre, tanto faz, quando alguma destas vontades ou meta-vontades, por alguma razão qualquer, sobrepõe-se no sistema como um todo de modo que a probabilidade de o sujeito manter-se fiel a ela se torna muito elevada, enquanto que a probabilidade de o sujeito manter-se fiel a qualquer outra vontade se torna muito baixa. Neste caso, o sistema de vontades entra em um desequilíbrio vicioso, vicioso pois, a não ser que haja uma intervenção externa, é extremamente improvável que o sujeito venha a recuperar o equilíbrio sistêmico entre as vontades. Há uma exceção para o que acabei de dizer: a meta-vontade de manter as vontades e o

[124] Não-ser e gênio maligno

Se eu me projeto para o meu ser além, para o meu não-ser, para a situação em que estou morto e não mais existo, não faz diferença se existi enganado pelo gênio maligno ou não. Da perspectiva do não-ser, qualquer existência que eu tive tem ser em quantidade suficiente para contrastar-se com o meu não-ser. Nenhuma novidade, já que o próprio cogito se pretende uma prova de ser. O ponto é a indiferença do não-ser para os diferentes modos de existir, o existir verídico e o existir enganado.  Para o não-ser, estes modos são indistintos. O que quero dizer com isto? Que sentido há em dizer que, para o não-ser, algo é assim ou assado? O sentido é muito simples, trata-se de algo a respeito do próprio sentido de ser. O não-ser fixa o alvo, o fim, a meta, o objetivo, a partir do qual, pode-se vislumbrar luminosamente o seu existir. Pode-se mergulhar em seu ser-existir de infinitas maneiras a partir deste trampolim que é o seu não-ser. Cada mergulho terá em comum com o outro a plenitude de ser, in

[123] Diálogos, Gênero textual e filosofia

Quando ainda estava na graduação de filosofia, perguntei certa vez a um professor por que um diálogo não poderia ser apresentado como um trabalho acadêmico ou mesmo como uma dissertação. Ele me respondeu que um diálogo não teria o caráter científico que se espera de um trabalho acadêmico. Até hoje não consegui engolir esta resposta. Por que diabos a filosofia, enquanto gênero literário, se aproximou do texto científico, se identificou com ele e não mais se distinguiu dele? O fato de a filosofia ter primordialmente a verdade como meta, assim como a ciência, não me parece suficiente para justificar a adoção dos mesmos gêneros literários. A verdade se aborda de diferentes maneiras. Pode-se expressar a verdade de diferentes maneiras. As ciências particulares tem os seus modos próprios de expressar os resultados das suas pesquisas, consoante, aliás, com os seus métodos de abordar a verdade. Não há, em princípio, qualquer razão para que a filosofia se limite a estes modos. Send

[122] Paradoxo, determinação do conteúdo e infinito

No seguinte paradoxo, podemos inicialmente ser levados a pensar que o problema está na auto-referência: (1) Esta sentença é falsa. A sentença (1) afirma de si mesma que ela é falsa. Se ela é falsa, então o que ela afirma de si é verdadeira. Mas se ela é verdadeira, então ela é falsa, já que ela afirma de si mesma ser falsa. Em qualquer caso,temos uma contradição. Pode-se sugerir que obtemos essa situação paradoxal em virtude da auto-referência. Mas podemos formular o paradoxo sem auto-referência. Podemos formulá-lo com mútua referência ou circularidade:  (2) A frase (3) é falsa.  (3) A frase (2) é verdadeira.  Se a frase (2) é verdadeira, então ela afirma da frase (3) que ela é falsa. Se a frase (3) é falsa, então não é verdade o que ela afirma (2). Mas (3) afirma de dois que ela é verdadeira. Se isto é falso, então(2) é falsa. O que é contraditório. Se a frase (2) é falsa, então o que ela afirma (3) não é verdadeiro. (2) afirma de (3) que ela é falsa. Então, se (2) é falsa, (3) é v

[121] Certeza, monotonia e conservadorismo.

Em uma situação ideal de conhecimento podemos ser absolutamente conservativos. Isto é, se cada informação do nosso estoque de conhecimentos é certa, então, obviamente, nenhuma outra informação pode cancelar a sua certeza. A certeza é uma propriedade não-cancelável do conhecimento. A monotonicidade da lógica clássica, o fato de que se A |= B, então A ^ C |= B, não tem outra função senão espelhar formalmente o conservadorismo do conhecimento certo. Nenhuma conclusão (B) extraída de uma certeza (A) pode ser cancelada, já que a verdade e a certeza são transferidas de (A) para aquilo que ela implica (B). E como a certeza não é cancelável, (B) se elege definitivamente como membro do corpo de conhecimento certo. A lógica dedutiva preserva a verdade. E, ao preservar completamente a verdade, ela restringe a sua utilidade prática à formalização de conhecimentos certos. Claro que se pode formalizar argumentos de premissas incertas pela lógica dedutiva. Pode-se fazê-lo, é possível fazê-lo, mas, e

[120] Creio porque é melhor?

Penso que há uma diferença entre as seguintes situações: Situação 1. O bandido calcula o que é melhor para ele se safar e, ao final do cálculo, conclui que o melhor para ele é não dedurar o comparsa. E, em virtude do cálculo, ele crê que: (CM) "o melhor para mim é não dedurar o comparsa". Situação 2. O libertino do Pascal recepciona o argumento da aposta, faz lá os seus cálculos, percebe que o melhor para ele é crer na existência de Deus e, em virtude do cálculo, ele crê que (CD) "Deus existe". Qual é a diferença entre a situação (1) e (2)? Vejamos antes o que é comum. Em ambos os casos, o cálculo estabelece o que é melhor para o indivíduo. O melhor para o bandido é não dedurar o seu comparsa. O melhor para o libertino é acreditar em Deus. Qual é a diferença? O que é melhor no caso do bandido é, ao mesmo tempo, o que torna a sua crença (CM) verdadeira. Mas o que é melhor no caso do libertino não é o que torna a sua crença (CD) verdadeira. Então, no caso do bandido,

[119] Realismo Científico e a Subida de Encosta

Perceber porque a subida de encosta ( hill climbing ) não garante a solução ótima, quanto muito, ela garante apenas o ótimo local, nos possibilita entender também, por analogia, porque não funciona o argumento realista de que teorias obtidas de pequenas transformações de uma outra bem confirmada têm mais chances de nos aproximar ainda mais da verdade.  Na verdade, o argumento realista é colocado como uma abdução, uma inferência pela melhor explicação. Parte-se de uma teoria T, bem confirmada. A partir dela, construímos, com pequenas modificações, as teorias T1, T2...Tn, sendo n não muito grande e as modificações não são substanciais. Observa-se que a probabilidade de alguma teoria Ti ser bem-sucedida é elevada, isto é, vir a ser uma teoria também bem confirmada. E, de fato, esta estratégia é evidenciada historicamente: trabalhar com hipóteses mais próximas da original (bem confirmada), e poucas delas, é mais frutífero que trabalhar com hipóteses muito distantes da original. Neste estág

[118] Fenomenologia da liberdade e o sentido da vida

Uma vida hedonista pode, na perspectiva daquele que a vivencia, ser repleta de sentido. O que potencializa a percepção do sentido, neste caso, é a satisfação contínua de desejos. Ou talvez, de modo negativo, o hedonista não perceba vazio em sua vida pelo fato de não se sentir impotente ou neutralizado por obstáculos que não conseguiria superar. Claro que o seu sucesso neste tipo de vida depende de os seus prazeres serem digamos fáceis. Uma vida hedonista repleta de sentido na perspectiva interna pode ser completamente destituída de sentido para aqueles que o observam. Mas isso só ocorre porque coletivamente demandamos uns dos outros e de nós mesmos uma vida que transborde em bens em alguns ou vários momentos da vida. Isto é, uma vida terá tanto mais sentido externo quanto mais bens gera para o que lhe é externo, pessoas, animais ou até algo inanimado como o planeta. Este sentido externo para a vida pode muito bem também ser o sentido interno para a vida se a demanda por transbordar em