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[125] Liberdade e Compulsão

O que me parece ser crucial para que um sujeito seja efetivamente livre é que ele tenha, digamos, um sistema de vontades e meta-vontades em que, para cada uma de suas vontades, é relativamente provável que o sujeito possa manter-se fiel a esta vontade. Este relativamente provável é para ser lido em um sentido estatístico. O sujeito deixa de ser livre, ou descrito como livre, tanto faz, quando alguma destas vontades ou meta-vontades, por alguma razão qualquer, sobrepõe-se no sistema como um todo de modo que a probabilidade de o sujeito manter-se fiel a ela se torna muito elevada, enquanto que a probabilidade de o sujeito manter-se fiel a qualquer outra vontade se torna muito baixa. Neste caso, o sistema de vontades entra em um desequilíbrio vicioso, vicioso pois, a não ser que haja uma intervenção externa, é extremamente improvável que o sujeito venha a recuperar o equilíbrio sistêmico entre as vontades. Há uma exceção para o que acabei de dizer: a meta-vontade de manter as vontades e outras meta-vontades em equilíbrio é a única meta-vontade cuja probabilidade de o sujeito lhe ser fiel não apenas se espera ser elevada como deve ser elevada para que o sistema mantenha-se em equilíbrio com elevada ou pelo menos razoável probabilidade. Sem esta meta-vontade, o sistema até pode permanecer em equilíbrio por algum tempo ou por muito tempo, por razões mais acidentais que regulares. A probabilidade de manter o sistema de vontades em equilíbrio será baixa sem esta meta-vontade. Eu acredito que as expressões "fulano tem muita força de vontade" e "ciclano tem pouca força de vontade" captam justamente esta diferença, a diferença entre pessoas que têm de um modo muito consciente a meta-vontade de manter as suas vontades e outras meta-vontades em equilíbrio e pessoas que não têm esta meta-vontade.

Uma pessoa com o sistema de vontades em desequilíbrio é uma pessoa visivelmente sem liberdade ou com restrita liberdade. A probabilidade de ela se manter fiel a quaisquer outras vontades exceto aquela que prepondera é muito baixa, por conseguinte, não há quase nada que ela efetivamente consiga fazer, por mais que ela se esforce, dentro agora das novas limitações físicas que o seu sistema em desequilíbrio lhe impõe.

O grau de liberdade de um sujeito depende diretamente do grau de equilíbrio do seu sistema de vontades. E o grau de equilíbrio de um sistema de vontades, como já ficou implícito no que disse acima, pode ser definido assim: quanto menor a variância entre as probabilidades de o sujeito manter-se fiel às suas vontades e meta-vontades, excetuando deste cálculo, a meta-vontade de manter o sistema em equilíbrio, maior o equilíbrio do sistema. A variância é uma medida do grau de homogeneidade das vontades no que diz respeito a probabilidade de o sujeito manter-se fiéis a elas.

Há mais uma situação que carece de um tratamento especial: se a variância for zero e o sujeito vier a ter vontades contraditórias, ele será lançado numa situação de inação e que igualmente estaríamos tentados a descrever como não-livre, já que ele, por si só, não tem como sair desta situação. Assim, o equilíbrio desejável para a liberdade pressupõe uma variância ligeiramente superior a 0. O que significa também que a meta-vontade de manter o sistema em equilíbrio não pode ser uma vontade a qual o sujeito tem probabilidade 1 de manter-se fiel, pois isto implicaria que ele consegue manter-se fiel a todas as outras vontades com igual probabilidade. Podemos, no entanto, redefinir o que entendemos por um sistema de vontades em equilíbrio: o sistema está em equilíbrio quando a variância é baixa o suficiente para que seja provável que o sujeito consiga manter-se fiel a qualquer uma de suas vontades, mas não tão baixa a ponto de igualar-se a zero.

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