Pular para o conteúdo principal

[124] Não-ser e gênio maligno

Se eu me projeto para o meu ser além, para o meu não-ser, para a situação em que estou morto e não mais existo, não faz diferença se existi enganado pelo gênio maligno ou não. Da perspectiva do não-ser, qualquer existência que eu tive tem ser em quantidade suficiente para contrastar-se com o meu não-ser. Nenhuma novidade, já que o próprio cogito se pretende uma prova de ser. O ponto é a indiferença do não-ser para os diferentes modos de existir, o existir verídico e o existir enganado.  Para o não-ser, estes modos são indistintos. O que quero dizer com isto? Que sentido há em dizer que, para o não-ser, algo é assim ou assado? O sentido é muito simples, trata-se de algo a respeito do próprio sentido de ser. O não-ser fixa o alvo, o fim, a meta, o objetivo, a partir do qual, pode-se vislumbrar luminosamente o seu existir. Pode-se mergulhar em seu ser-existir de infinitas maneiras a partir deste trampolim que é o seu não-ser. Cada mergulho terá em comum com o outro a plenitude de ser, indistintamente. Cada mergulho revelará que pouco conta para esta plenitude de ser a real aderência à realidade. Seu ser terá sido pleno em todos os momentos em que se sentiu pleno, em que, ciente do  seu futuro não-ser, escolheu viver seu ser. 

 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

[201] A ética da crença

Voltei ao assunto da ética da crença (veja aqui a minha contribuição anterior 194 ) para escrever um texto que possivelmente será publicado como um verbete em um compêndio de epistemologia. Nesta entrada, decidi enfatizar três maneiras pelas quais a discussão sobre normas para crer se relaciona com a ética, algo que nem sempre fica claro neste debate: (1) normas morais servem de analogia para pensar normas para a crença, ainda que os domínios normativos, o epistêmico e o moral, sejam distintos; (2) razões morais são os fundamentos últimos para adotar uma norma para crer e (3) razões morais podem incidir diretamente sobre a legitimidade de uma crença, a crença (o ato de crer) não seria assim um fenômeno puramente epistêmico. O item (3) representa sem dúvida a maneira mais forte pela qual, neste debate, epistemologia e ética se entrelaçam. Sobre ele, abordei sobretudo o trabalho da Rima Basu que, a meu ver, é uma das contribuições recentes mais interessantes e inovadoras ao debate da ét...

[200] A distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação, segundo Reichenbach

A distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação é normalmente apresentada como marcando a diferença entre, por um lado, os processos de pensamento, teste e experimentação que de fato ocorreram em um laboratório ou em um ambiente de pesquisa e que levaram ou contribuíram para alguma descoberta científica e, de outro, os processos de justificação e validação dessa descoberta. Haveria, portanto, uma clara diferença entre descrever como cientistas chegaram a fazer certas alegações científicas, o que seria uma tarefa para as ciências empíricas, como a sociologia, a psicologia e a antropologia da ciência, e justificar essas alegações, o que seria uma tarefa para a epistemologia, uma disciplina normativa e não-empírica. Essa distinção é corriqueira em debates acerca do escopo da filosofia da ciência e teria sido explicitada inicialmente por Reichenbach. Contudo, quando examinamos a maneira como ele circunscreveu as tarefas da epistemologia, notamos que alguns elemento...

[205] Desafios e limitações do ChatGPT

  Ontem tive uma excelente discussão com o Everton Garcia da Costa (UFRGS) e André Dirceu Gerardi (FGV-SP), a convite do NUPERGS, sobre Desafios e Limitações do ChatGPT nas ciências humanas . Agradeço a ambos pela aprendizagem propiciada. Gostaria de fazer duas considerações que não enfatizei o bastante ou esqueci mesmo de fazer. Insisti várias vezes que o ChatGPT é um papagaio estocástico (a expressão não é minha, mas de Emily Bender , professora de linguística computacional) ou um gerador de bobagens. Como expliquei, isso se deve ao fato de que o ChatGPT opera com um modelo amplo de linguagem estatístico. Esse modelo é obtido pelo treinamento em um corpus amplo de textos em que a máquina procurará relações estatísticas entre palavras, expressões ou sentenças. Por exemplo, qual a chance de “inflação” vir acompanhada de “juros” numa mesma sentença? Esse é o tipo de relação que será “codificada” no modelo de linguagem. Quanto maior o corpus, maiores as chances de que esse modelo ...