Pular para o conteúdo principal

[120] Creio porque é melhor?

Penso que há uma diferença entre as seguintes situações:

Situação 1.

O bandido calcula o que é melhor para ele se safar e, ao final do
cálculo, conclui que o melhor para ele é não dedurar o comparsa. E, em
virtude do cálculo, ele crê que:

(CM) "o melhor para mim é não dedurar o comparsa".

Situação 2.

O libertino do Pascal recepciona o argumento da aposta, faz lá os seus
cálculos, percebe que o melhor para ele é crer na existência de Deus e,
em virtude do cálculo, ele crê que

(CD) "Deus existe".

Qual é a diferença entre a situação (1) e (2)? Vejamos antes o que é
comum. Em ambos os casos, o cálculo estabelece o que é melhor para o
indivíduo. O melhor para o bandido é não dedurar o seu comparsa. O
melhor para o libertino é acreditar em Deus. Qual é a diferença? O que é
melhor no caso do bandido é, ao mesmo tempo, o que torna a sua crença
(CM) verdadeira. Mas o que é melhor no caso do libertino não é o que
torna a sua crença (CD) verdadeira.

Então, no caso do bandido, o que serve para ele de
razão pragmática é também uma razão epistêmica. É uma razão
epistêmica porque é o que torna a sua crença verdadeira.

Razões não são, em si, pragmáticas ou epistêmicas. Elas são pragmáticas
ou epistêmicas conforme atendem a determinados fins. Grosseiramente, uma
razão é pragmática se ela atende a finalidade de obter o melhor para
mim. Uma razão é epistêmica se ela atende a finalidade de obter a
verdade. Em alguns casos, as duas coisas podem coincidir, o que é melhor
para mim é, ao mesmo tempo, o objeto do meu conhecimento/crença e,
portanto, o que me leva ao melhor para mim também me leva para a verdade
da minha crença.

Alguém pode não considerar intuitivo que uma razão pragmática, qua pragmática,
não possa ser uma razão para crer. Se ela é apenas uma razão pragmática,
então, obviamente, ela não leva à verdade, ela não atende à finalidade
da verdade. Como a crença é a atitude de tomar um certo conteúdo
proposicional como verdadeiro, é racional fazê-lo se há uma
razão/motivação pra pensar que a verdade desta crença é obtida, ou seja,
se há uma razão epistêmica em favor da verdade. Eu não consigo entender
o contrário, como alguém vai assentir a verdade de que [x é o caso] porque
[é melhor para ele que x seja o caso]. Eu consigo imaginar que o indivíduo
deseje e [espere que x seja o caso] em função de [ser melhor para ele que
se seja o caso]. Agora a dificuldade é minha. Como alguém pode crer
racionalmente, desconsidero, obviamente, os casos de crença irracional,
mas como ele pode assentir à verdade de que [x é o caso] pelo fato de
pensar que [é melhor para ele que x é o caso]? Se a crença pretende à
verdade, como pode uma consideração sobre o que é melhor para ele
cumprir a finalidade de obter a verdade a não ser quando ela é um fator
de verdade para a sua crença?

Vejamos uma situação. S tem uma doença terminal e tem 90% de chance de
morrer. Alguns psicólogos, no entanto, já mostraram, com relativa
evidência, que sujeitos que são otimistas quanto a sua melhora,
conseguem diminuir em 10 pontos percentuais a sua chance de morte. Ou
seja, se S é otimista quando à sua melhora, ele efetivamente diminui a
sua chance de morte de 90% para 80%. Assim, é melhor para S ser otimista
quanto a sua melhora. Mas como entendemos essa expressão "S é otimista
quanto a sua melhora"? O que ela descreve? Que S crê que ele tem boas
chances de sobreviver? Não, pois, efetivamente, mesmo depois da melhora, mesmo
com 80% de chance de morrer, isso está longe de ser uma boa chance de
sobreviver. Ser otimista, neste caso, no meu entendimento, não envolve
nenhuma crença do tipo, mas sim a esperança de que de ele tem boas
chances de sobreviver. A atitude fomentada pela razão pragmática, que é
melhor ser otimista quanto à sua melhora, neste caso, não é a da crença, mas
a da esperança ou desejo. O que tem efeito benéfico sobre a saúde do
indivíduo é a sua esperança de que irá melhorar e é perfeitamente
racional, neste caso, em virtude deste achado psicológico-medicinal, que
ele tenha esta esperança. A razão pragmática é aqui suficiente para a
racionalidade da sua atitude esperançosa diante da sua melhora.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

[102] Relativismo e Irracionalismo

Irracionalismo é a tese de que os nossos julgamentos são arbitrários. O irracionalismo pode aplicar-se apenas a um setor do conhecimento humano. Por exemplo, podemos ser irracionalistas morais. Assim, julgamentos morais sobre como agir, o que fazer, o que é certo e errado são arbitrários, não temos uma razão para eles, eles não se fundam em nada que possa legitimá-los diante dos outros. Podem ser fomentados por nossas emoções ou desejos, mas nada disso tira a sua arbitrariedade diante da razão. Chegaríamos ao irracionalismo moral se tivéssemos razões para pensar que não há nada na razão que pudesse amparar julgamentos morais. Isto é, dado um dilema moral do tipo "devo fazer X ou ~X", não há ao que apelar racionalmente para decidir a questão. Donde se seque que, qualquer decisão que você tomar, seja a favor de X, seja de ~X, será arbitrária. Como poderia a razão ser tão indiferente à moralidade? Primeiro vejamos o que conferiria autoridade racional a um julgamento moral, pois

[197] Breve introdução à tese da mente estendida

A tese da mente estendida é distinta e não se confunde com o externismo acerca dos conteúdos mentais. Nesta breve introdução, apresento em linhas gerais o externismo acerca dos conteúdos mentais para, em seguida, contrastá-lo com a tese da mente estendida. Identifico e apresento, então, os principais comprometimentos da tese da mente estendida. A tese do externismo acerca dos conteúdos mentais afirma que as relações causais que temos com o ambiente determinam, de alguma forma, o conteúdo dos nossos estados mentais, ou seja, aquilo que percebemos, ou aquilo acerca do qual pensamos algo, ou aquilo que desejamos etc. depende dos objetos com os quais interagimos causalmente. Um argumento comum em favor dessa tese é inspirado no argumento clássico de Putnam para o externismo semântico[1]. Imaginemos um planeta muito semelhante ao nosso, praticamente gêmeo nas aparências. Ele é abundante em um líquido muito semelhante à água, povoado com seres inteligentes como nós e que usam esse lí

[200] A distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação, segundo Reichenbach

A distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação é normalmente apresentada como marcando a diferença entre, por um lado, os processos de pensamento, teste e experimentação que de fato ocorreram em um laboratório ou em um ambiente de pesquisa e que levaram ou contribuíram para alguma descoberta científica e, de outro, os processos de justificação e validação dessa descoberta. Haveria, portanto, uma clara diferença entre descrever como cientistas chegaram a fazer certas alegações científicas, o que seria uma tarefa para as ciências empíricas, como a sociologia, a psicologia e a antropologia da ciência, e justificar essas alegações, o que seria uma tarefa para a epistemologia, uma disciplina normativa e não-empírica. Essa distinção é corriqueira em debates acerca do escopo da filosofia da ciência e teria sido explicitada inicialmente por Reichenbach. Contudo, quando examinamos a maneira como ele circunscreveu as tarefas da epistemologia, notamos que alguns elemento