Pular para o conteúdo principal

[94] Internalismo e Externalismo

Há uma grande diversidade de modos de se distinguir externo de interno, alguns deles triviais e outros não. A distinção costuma ser borrada ou difícil de se sustentar quando introduzida com mais de um modalizador, i.e, possível e acessível. Por exemplo, podemos definir o internalismo a respeito do conteúdo mental assim: o conteúdo de qualquer pensamento é determinado por fatores acessíveis ao sujeito. A pergunta que obviamente se levanta diz respeito aos limites e restrições do acesso. Por qual meio é feito o acesso aos fatores determinantes, apenas por pensamentos proposicionais ou imagens e percepções também são aceitas? Os fatores determinantes do pensamento p devem ser acessíveis apenas no momento em que o sujeito pensa p ou podemos relaxar essa restrição e dizer que eles podem ser acessíveis em algum momento? Aqui já complicamos um pouco, pois usamos um outro modalizador para restringir o acesso. Fatores que um sujeito pode acessar é um tanto quanto vago. O modalizador pode carece tanto de restrição quanto o modalizador acessível , de modo que restringir este por aquele não nos leva muito longe. Perguntas similares se levantam: pode como? Fatores inconscientes que são trazidos à consciência por meio de hipnose contam? Fatores aos quais o sujeito vem a tomar conhecimento com a aprendizagem também contam? Enfim, fatores que o sujeito pode acessar sem maiores restrições englobam absolutamente tudo, deixando de lado talvez apenas o transcendente, a coisa-em-si e aí começamos a nos perguntar se a distinção nestes termos é útil para alguma coisa. Para as ciências, dificilmente.

Um distinção um pouco mais trivial: fatores externos são aqueles que se encontram fora dos limites corporais de uma pessoa, sob uma descrição física destes mesmos fatores. Embora os limites corporais sejam difusos sob a perspectiva atômica, não é sob a perspectiva macroscópica, da qual parte praticamente toda a psicologia que conhecemos. Assim, essa distinção pode ser usada pela psicologia. Se vai realmente ser produtivo é uma outra questão. Certamente será difícil explicar a determinação dos conteúdos dos nossos pensamentos, devido à relação que o sujeito mantém, na primeira pessoa, com esses conteúdos, por meio de fatores descritos apenas fisicamente, na terceira pessoa.

Embora eu tenha dito que definir externo em oposição a interno com mais de um modalizador possa nos levar a distinções confusas, nem sempre é o caso. Para tratar da justificação, na epistemologia, é comum valer-se da seguinte definição internalista acessibilista: um fator pode contribuir para a justificação da crença Q de S desde que esteja acessível a S no momento em que ele mantém Q. Para não complicar, vamos considerar apenas as crenças que o sujeito mantém conscientemente. Tal definição exclui fatores não só inconscientes, mas também os potencialmente-conscientes, porém inconscientes no momento. Conforme a necessidade, podemos alargar o acesso deste sujeito pelo modalizador pode desde que este seja restringido por algo diverso do próprio acesso, por exemplo, alguma capacidade cognitiva do sujeito. Assim teríamos: um fator pode contribuir para a justificação da crença Q de S desde que seja acessível a S, isto é, desde que ele já esteja consciente deste fator ou possa dele se lembrar no momento em que ele mantém Q. Neste caso, usamos a capacidade mnemônica para restringir o modalizador pode.

Distinções podemos fazer de mil e uma maneiras, se vamos usá-las ou não depende da utilidade do contraste que elas criam para a explicação dos fenômenos que nos interessam compreender. Não há receita de bolo, mas podemos fazer algumas recomendações. Primeiro, explicite sob quais linguagens descritivas o exlanandum (aquilo que será explicado) e o explanans (a explicação, os fatores que determinam ou causam o seu explanandum) vão ser descritos. O explanans vai estar apenas numa linguagem física e feito na terceira pessoa? E o explanandum, permitirá descrições na primeira pessoa? Deixe isso claro. Em seguida, ao tratar das relações entre explanans e explanandum, explicite bem quais modalizadores está usando e, por fim, como esses modalizadores devem ser restringidos, evitando, assim, cair numa distinção que contrasta o tudo com o nada, a qual, serve, ao mesmo tempo, para tudo e nada.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

[201] A ética da crença

Voltei ao assunto da ética da crença (veja aqui a minha contribuição anterior 194 ) para escrever um texto que possivelmente será publicado como um verbete em um compêndio de epistemologia. Nesta entrada, decidi enfatizar três maneiras pelas quais a discussão sobre normas para crer se relaciona com a ética, algo que nem sempre fica claro neste debate: (1) normas morais servem de analogia para pensar normas para a crença, ainda que os domínios normativos, o epistêmico e o moral, sejam distintos; (2) razões morais são os fundamentos últimos para adotar uma norma para crer e (3) razões morais podem incidir diretamente sobre a legitimidade de uma crença, a crença (o ato de crer) não seria assim um fenômeno puramente epistêmico. O item (3) representa sem dúvida a maneira mais forte pela qual, neste debate, epistemologia e ética se entrelaçam. Sobre ele, abordei sobretudo o trabalho da Rima Basu que, a meu ver, é uma das contribuições recentes mais interessantes e inovadoras ao debate da ét...

[200] A distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação, segundo Reichenbach

A distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação é normalmente apresentada como marcando a diferença entre, por um lado, os processos de pensamento, teste e experimentação que de fato ocorreram em um laboratório ou em um ambiente de pesquisa e que levaram ou contribuíram para alguma descoberta científica e, de outro, os processos de justificação e validação dessa descoberta. Haveria, portanto, uma clara diferença entre descrever como cientistas chegaram a fazer certas alegações científicas, o que seria uma tarefa para as ciências empíricas, como a sociologia, a psicologia e a antropologia da ciência, e justificar essas alegações, o que seria uma tarefa para a epistemologia, uma disciplina normativa e não-empírica. Essa distinção é corriqueira em debates acerca do escopo da filosofia da ciência e teria sido explicitada inicialmente por Reichenbach. Contudo, quando examinamos a maneira como ele circunscreveu as tarefas da epistemologia, notamos que alguns elemento...

[205] Desafios e limitações do ChatGPT

  Ontem tive uma excelente discussão com o Everton Garcia da Costa (UFRGS) e André Dirceu Gerardi (FGV-SP), a convite do NUPERGS, sobre Desafios e Limitações do ChatGPT nas ciências humanas . Agradeço a ambos pela aprendizagem propiciada. Gostaria de fazer duas considerações que não enfatizei o bastante ou esqueci mesmo de fazer. Insisti várias vezes que o ChatGPT é um papagaio estocástico (a expressão não é minha, mas de Emily Bender , professora de linguística computacional) ou um gerador de bobagens. Como expliquei, isso se deve ao fato de que o ChatGPT opera com um modelo amplo de linguagem estatístico. Esse modelo é obtido pelo treinamento em um corpus amplo de textos em que a máquina procurará relações estatísticas entre palavras, expressões ou sentenças. Por exemplo, qual a chance de “inflação” vir acompanhada de “juros” numa mesma sentença? Esse é o tipo de relação que será “codificada” no modelo de linguagem. Quanto maior o corpus, maiores as chances de que esse modelo ...