Pular para o conteúdo principal

[85]

Não temos nenhuma métrica para a quantificação do sofrimento, pois sua natureza subjetiva impossibilita ou pelo menos dificulta bastante o estabelecimento de um quantum comum de sofrimento a partir do qual pudéssemos aferir a intensidade do sofrimento de cada indivíduo. Um mesmo estímulo provoca sofrimentos de intensidades distintas em pessoas diferentes. Difícil também saber exatamente o que medir, a reação corpórea e comportamental do indivíduo sofredor ou o impacto que a experiência do sofrimento tem na sua existência. A segunda opção obsta ainda mais uma métrica, pois adentra no terreno dos significados.

Ainda assim, somos capazes de avaliar intuitivamente o sofrimento. Cada qual se usa como métrica para estimar o sofrimento do outro e é mesmo capaz de fazer compensações ao conhecer um pouco mais a história ou os acontecimentos recentes deste outro. No fundo, assumimos que as discrepâncias individuais não sejam tão acentuadas. Correto ou não, preciso ou não, é assim que fazemos. Falo disto para agora falar de uma outra coisa.

O suicídio pode ser um ato genuinamente altruísta. Quem se matar, deixará de infringir dor e sofrimento a todos aqueles que o circundam, deixará de ser um consumidor da sociedade de mercados, contribuirá para uma emissão menor de gazes poluentes na atmosfera e, supondo que estes provocam ou contribuem para o aquecimento global, estará minorando o sofrimento de todas as espécies do planeta. Em outras palavras, a morte de um pode significar a subtração considerável do sofrimento total espalhado pelo mundo. Evidente que devemos compensar nessa conta o bem que este indivíduo deixará de fazer ao perecer. Daí a importância daquela capacidade de estimar o sofrimento alheio. Cada indivíduo deve fazer alguma idéia do bem e do mal que provoca, desconsiderando aqui as complicações que a relatividade destes termos impõem, e, em estimando o seu malefício maior que o seu benefício, terá feito um ato altruísta se optar pela aniquilação da sua vida em prol de um sofrimento menor no mundo.

Essa conta pode se complicar bastante se quisermos computar não só o bem e mal presentes e passados de um indivíduo, mas também os bens e males futuros. O terreno pantanoso das possibilidades futuras nos levaria a cálculos infinitos. Também podemos complicar se desejarmos integrar as estimativas individuais. O bem que um indivíduo estima fazer pode não ser o mesmo que outro estima que o primeiro faça. Eu posso fazer bem a muito mais pessoas do que imagino. E mal também. E nesta integração, a relatividade do bem e do mal não poderia ser ignorada. Ainda assim, numa perspectiva individual, o suicídio de um indivíduo é altruísta quando a sua morte minora o sofrimento que ele estima causar.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

[102] Relativismo e Irracionalismo

Irracionalismo é a tese de que os nossos julgamentos são arbitrários. O irracionalismo pode aplicar-se apenas a um setor do conhecimento humano. Por exemplo, podemos ser irracionalistas morais. Assim, julgamentos morais sobre como agir, o que fazer, o que é certo e errado são arbitrários, não temos uma razão para eles, eles não se fundam em nada que possa legitimá-los diante dos outros. Podem ser fomentados por nossas emoções ou desejos, mas nada disso tira a sua arbitrariedade diante da razão. Chegaríamos ao irracionalismo moral se tivéssemos razões para pensar que não há nada na razão que pudesse amparar julgamentos morais. Isto é, dado um dilema moral do tipo "devo fazer X ou ~X", não há ao que apelar racionalmente para decidir a questão. Donde se seque que, qualquer decisão que você tomar, seja a favor de X, seja de ~X, será arbitrária. Como poderia a razão ser tão indiferente à moralidade? Primeiro vejamos o que conferiria autoridade racional a um julgamento moral, pois

[197] Breve introdução à tese da mente estendida

A tese da mente estendida é distinta e não se confunde com o externismo acerca dos conteúdos mentais. Nesta breve introdução, apresento em linhas gerais o externismo acerca dos conteúdos mentais para, em seguida, contrastá-lo com a tese da mente estendida. Identifico e apresento, então, os principais comprometimentos da tese da mente estendida. A tese do externismo acerca dos conteúdos mentais afirma que as relações causais que temos com o ambiente determinam, de alguma forma, o conteúdo dos nossos estados mentais, ou seja, aquilo que percebemos, ou aquilo acerca do qual pensamos algo, ou aquilo que desejamos etc. depende dos objetos com os quais interagimos causalmente. Um argumento comum em favor dessa tese é inspirado no argumento clássico de Putnam para o externismo semântico[1]. Imaginemos um planeta muito semelhante ao nosso, praticamente gêmeo nas aparências. Ele é abundante em um líquido muito semelhante à água, povoado com seres inteligentes como nós e que usam esse lí

[200] A distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação, segundo Reichenbach

A distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação é normalmente apresentada como marcando a diferença entre, por um lado, os processos de pensamento, teste e experimentação que de fato ocorreram em um laboratório ou em um ambiente de pesquisa e que levaram ou contribuíram para alguma descoberta científica e, de outro, os processos de justificação e validação dessa descoberta. Haveria, portanto, uma clara diferença entre descrever como cientistas chegaram a fazer certas alegações científicas, o que seria uma tarefa para as ciências empíricas, como a sociologia, a psicologia e a antropologia da ciência, e justificar essas alegações, o que seria uma tarefa para a epistemologia, uma disciplina normativa e não-empírica. Essa distinção é corriqueira em debates acerca do escopo da filosofia da ciência e teria sido explicitada inicialmente por Reichenbach. Contudo, quando examinamos a maneira como ele circunscreveu as tarefas da epistemologia, notamos que alguns elemento