Pular para o conteúdo principal

[103] Liberdade e Indeterminismo

Em [93] discuti algumas intuições em torno da liberdade e da responsabilidade moral. Arrolei algumas razões tanto para a liberdade da espontaneidade quanto para a liberdade da indiferença. É difícil preferir uma em detrimento da outra, racionalmente. Vejamos, no entanto, o que é necessário mudar em nossa visão de mundo para sustentar a liberdade da indiferença.

Em visões não-transcendentais e não-dualistas da liberdade da indiferença, o indeterminismo parece ser necessário. O indeterminismo é a tese de que alguns eventos físicos não são causados, mas inauguram no mundo uma nova série causal. Sendo o ato de volição ou ato de escolher, decidir, deliberar um evento físico, caso este evento seja não causado, isto é, indeterminado, segue-se que ele é livre segundo a liberdade da indiferença. E a ação resultante deste ato é também livre e sobre a qual o indivíduo é responsável.

O indeterminismo gera, no entanto, um problema epistêmico. Dada uma ação qualquer, que também é um evento físico, na falta de um critério para distinguir eventos determinados de eventos indeterminados, não temos como saber se esta ação é causada ou não pela vontade do sujeito, a despeito de ter toda a aparência de voluntária, isto é, de ser o resultado de uma deliberação. Caso essa ação não seja determinada, caso ela seja a inauguração de uma nova cadeia de eventos no mundo, não podemos atribuir ao sujeito responsabilidade por ela.

A este respeito, então, a liberdade da indiferença não se encontra em situação melhor que a liberdade da espontaneidade. Lembremos que esta última também acarreta um problema epistêmico, a saber, distinguir, entre as causas internas aquelas que são dignas de imputar responsabilidade à ação resultante. Ações resultantes de compulsão, ainda que deliberadas, não nos parecem intuitivamente tão livres e, assim, o sujeito é menos responsável por elas.

Como ambas as liberdades acarretam dificuldades epistêmicas, a liberdade da espontaneidade soa mais plausível devido a sua economia e parcimônia metafísica. Não precisamos mudar a nossa visão científica do mundo para acomodá-la.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

[102] Relativismo e Irracionalismo

Irracionalismo é a tese de que os nossos julgamentos são arbitrários. O irracionalismo pode aplicar-se apenas a um setor do conhecimento humano. Por exemplo, podemos ser irracionalistas morais. Assim, julgamentos morais sobre como agir, o que fazer, o que é certo e errado são arbitrários, não temos uma razão para eles, eles não se fundam em nada que possa legitimá-los diante dos outros. Podem ser fomentados por nossas emoções ou desejos, mas nada disso tira a sua arbitrariedade diante da razão. Chegaríamos ao irracionalismo moral se tivéssemos razões para pensar que não há nada na razão que pudesse amparar julgamentos morais. Isto é, dado um dilema moral do tipo "devo fazer X ou ~X", não há ao que apelar racionalmente para decidir a questão. Donde se seque que, qualquer decisão que você tomar, seja a favor de X, seja de ~X, será arbitrária. Como poderia a razão ser tão indiferente à moralidade? Primeiro vejamos o que conferiria autoridade racional a um julgamento moral, pois

[197] Breve introdução à tese da mente estendida

A tese da mente estendida é distinta e não se confunde com o externismo acerca dos conteúdos mentais. Nesta breve introdução, apresento em linhas gerais o externismo acerca dos conteúdos mentais para, em seguida, contrastá-lo com a tese da mente estendida. Identifico e apresento, então, os principais comprometimentos da tese da mente estendida. A tese do externismo acerca dos conteúdos mentais afirma que as relações causais que temos com o ambiente determinam, de alguma forma, o conteúdo dos nossos estados mentais, ou seja, aquilo que percebemos, ou aquilo acerca do qual pensamos algo, ou aquilo que desejamos etc. depende dos objetos com os quais interagimos causalmente. Um argumento comum em favor dessa tese é inspirado no argumento clássico de Putnam para o externismo semântico[1]. Imaginemos um planeta muito semelhante ao nosso, praticamente gêmeo nas aparências. Ele é abundante em um líquido muito semelhante à água, povoado com seres inteligentes como nós e que usam esse lí

[200] A distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação, segundo Reichenbach

A distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação é normalmente apresentada como marcando a diferença entre, por um lado, os processos de pensamento, teste e experimentação que de fato ocorreram em um laboratório ou em um ambiente de pesquisa e que levaram ou contribuíram para alguma descoberta científica e, de outro, os processos de justificação e validação dessa descoberta. Haveria, portanto, uma clara diferença entre descrever como cientistas chegaram a fazer certas alegações científicas, o que seria uma tarefa para as ciências empíricas, como a sociologia, a psicologia e a antropologia da ciência, e justificar essas alegações, o que seria uma tarefa para a epistemologia, uma disciplina normativa e não-empírica. Essa distinção é corriqueira em debates acerca do escopo da filosofia da ciência e teria sido explicitada inicialmente por Reichenbach. Contudo, quando examinamos a maneira como ele circunscreveu as tarefas da epistemologia, notamos que alguns elemento