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O que se pode perceber aqui [13] é uma certa relativização do teste de Turing. Para os critérios da época, a Turka passou no teste. Somente uma mente humana poderia jogar xadrez. Se a Turka jogava, então ela refletia, em um algum nível, a mente humana. Talvez alguns, na época, estivessem até mesmo dispostos a atribuir consciência a ela.

Temos aqui, hoje podemos dizer, um caso de dupla ignorância. Ignorância sobre em que consiste a atividade de jogar xadrez e ignorância sobre o funcionamento da mente. Não se sabia na época que a atividade de jogar xadrez poderia ser reduzida a uma função computável, isto é, uma função cuja entrada seria a configuração atual do tabuleiro e a saída uma jogada válida localmente ótima (uma solução globalmente ótima não tem solução em tempo polinominal). Ademais, desconheciam na época maiores detalhes do funcionamento da mente, o que ela poderia ou não fazer sem consciência. Neste cenário, era natural inferir que um ente capaz de jogar xadrez tinha características da mente humana, inclusive, a consciência. Seja P a atividade de jogar xadrex. Se a mente humana joga xadrez com consciência, então, se X joga xadrez, X joga também com consciência. Falácia, obviamente, pelo que foi dito acima. P pode ser realizada sem consciência. Uma máquina de Turing computa P. Esta é uma falácia que tenderemos a aceitar sempre que não soubermos como a atividade P em questão pode ser realizada e tivermos razões para pensar que a mente humana só a realiza com consciência.

Pensemos. Se uma máquina de Turing for capaz de realizar todas as atividades que uma mente humana pode realizar, neste caso, o que diremos?


  • (1) a máquina de Turing tem consciência.

  • (2) a mente humana funciona de uma maneira radicalmente diferente da máquina de Turing.

  • (3) a mente humana não tem consciência, esta entidade foi apenas suposta em nossos modelos teóricos na falta de uma compreensão melhor de como a mente realiza as suas atividades.


Difícil escolha, envolve decisões conceituais.

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