Na primeira meditação, Descartes afirma que a sua razão lhe diz para se abster de dar o seu assentimento não só a opiniões que sejam obviamente falsas, mas também a opiniões que não sejam completamente certas e indubitáveis. O corolário dessa afirmação é que, se você tem uma razão para duvidar de uma opinião, então está justificado em rejeitá-la. No entanto, Descartes não nos dá nenhuma razão para a sua afirmação inicial. Não é claro que devamos rejeitar uma opinião que não seja completamente certa. De onde provém a justificativa para este dever? Um motivo seria evitar o engano. Embora, por razões práticas, seja vantajoso evitar o engano, não é, ao mesmo tempo, vantajoso evitá-lo pelo preço de rejeitar todas as crenças incertas. Mas há razões teóricas para se evitar o engano. Se o seu objetivo é descobrir quais das suas opiniões são verdadeiras, então deve evitar o engano e, assim, rejeitar tudo que não for completamente certo. O que temos aqui é um raciocínio instrumental de adequação de meios a fins. Se a finalidade é obter a verdade, então o meio é evitar o engano. Mas há um certo exagero aqui. Embora evitar o engano seja um meio para obter a verdade, não é claro que ele seja o único meio. Descartes talvez dissesse que é o único meio que garante a obtenção da verdade, enquanto outros meios pudessem obtê-la sem dar a garantia de que realmente a obtiveram. Se assim for, então não podemos dizer que a finalidade de obter a verdade isoladamente justifica o dever de se evitar o engano. Precisamos encorpar essa finalidade para que ela suporte a afirmação inicial de Descartes. Precisamos dizer que a finalidade é obter a verdade garantidamente, com absoluta certeza. Mas, então, fica evidente que o dever de só aceitar o que é completamente certo já está embutido na finalidade e, assim, esta não serve para justificar aquele.
Voltei ao assunto da ética da crença (veja aqui a minha contribuição anterior 194 ) para escrever um texto que possivelmente será publicado como um verbete em um compêndio de epistemologia. Nesta entrada, decidi enfatizar três maneiras pelas quais a discussão sobre normas para crer se relaciona com a ética, algo que nem sempre fica claro neste debate: (1) normas morais servem de analogia para pensar normas para a crença, ainda que os domínios normativos, o epistêmico e o moral, sejam distintos; (2) razões morais são os fundamentos últimos para adotar uma norma para crer e (3) razões morais podem incidir diretamente sobre a legitimidade de uma crença, a crença (o ato de crer) não seria assim um fenômeno puramente epistêmico. O item (3) representa sem dúvida a maneira mais forte pela qual, neste debate, epistemologia e ética se entrelaçam. Sobre ele, abordei sobretudo o trabalho da Rima Basu que, a meu ver, é uma das contribuições recentes mais interessantes e inovadoras ao debate da ét...
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