O preceito de que não devemos fazer ao próximo aquilo que não gostaríamos que fizessem conosco esconde, no fundo, uma fraqueza, o medo de sofrer e ser magoado. A vontade comum de fugir do desprazer dá a forma do referido preceito. Para diminuir a chance de que a dor se concretize, impomos ao outro justamente o dever, a obrigação de não nos ferir. A imposição externa é retoricamente enfraquecida com a concessão ao julgamento interno: cada indivíduo é a media do prazer e desprazer e, portanto, do que devemos ou não evitar fazer ao próximo. Concessão pequena que em nada ajuda para encobrir a monstruosidade do dever imposto. Nietzsche chama essa moral de moral de rebanho, bem e mal demarcados por uma classe de fracos e oprimidos, ressentidos que, para suportar a sua própria fraqueza, denominam "má" a vontade de poder alheia. O preceito de não fazer ao próximo aquilo que não gostaríamos que fizessem conosco é claramente um preceito de restrição da vontade ou mesmo do desejo, restrição do exercício do poder humano. Os fortes devem ser contidos. Cabe muito bem aqui a pergunta: não seria melhor cultivar a força e a coragem, de modo a sermos capazes de suportar a dor e o sofrimento sem sucumbir, sem rancor, ao invés de coibir a vontade humana para se resguardar do sofrimento? O mundo seria completamente diferente se optássemos pela primeira possibilidade. Mas é algo que podemos optar? A objeção imediata é que se as pessoas exercessem sempre o seu poder, de maneira incontida, haveria mais mortes e flagelados. Contudo, ignore por um momento a ferida física, pense apenas nas feridas emocionais. A pergunta torna-se, assim, bem mais legítima. Um mundo de pessoas fortes não seria necessariamente um mundo sem dor emocional, mas seria um mundo onde a dor não é encarada como algo ruim ou maléfico, quando muito, um obstáculo cujo encontro e padecer serve de alimento para o fortalecimento. Consideremos que isso é dito numa perspectiva existencialista e talvez irrealista em termos psicológicos, o que deve ser investigado. A vantagem de um mundo assim é que o não fazer mal a alguém se torna mais autêntico, se torna um sinal mais visível da sua própria vontade. "Não te inflijo dor porque te considero, porque te estimo e não porque eu viria a me sentir culpado.". Sem a culpa ou o medo de reprimendas sociais como obstáculos, como moduladores do comportamento, a expressão se torna mais genuína e verdadeira. A desvantagem óbvia é que se um indivíduo desejar infligir dor a um outro, ele não encontrará nenhuma barreira psicológica ou resistência social para fazê-lo, e, portanto, provavelmente passará da intenção para ação, infligindo a dor. Contudo, o pressuposto é que, neste mundo, o segundo indivíduo esteja preparado para receber esta dor, sem que isso provoque um abalo sísmico em sua psiquê.
Voltei ao assunto da ética da crença (veja aqui a minha contribuição anterior 194 ) para escrever um texto que possivelmente será publicado como um verbete em um compêndio de epistemologia. Nesta entrada, decidi enfatizar três maneiras pelas quais a discussão sobre normas para crer se relaciona com a ética, algo que nem sempre fica claro neste debate: (1) normas morais servem de analogia para pensar normas para a crença, ainda que os domínios normativos, o epistêmico e o moral, sejam distintos; (2) razões morais são os fundamentos últimos para adotar uma norma para crer e (3) razões morais podem incidir diretamente sobre a legitimidade de uma crença, a crença (o ato de crer) não seria assim um fenômeno puramente epistêmico. O item (3) representa sem dúvida a maneira mais forte pela qual, neste debate, epistemologia e ética se entrelaçam. Sobre ele, abordei sobretudo o trabalho da Rima Basu que, a meu ver, é uma das contribuições recentes mais interessantes e inovadoras ao debate da ét...
Comentários
Agora, infligir dor ao outro é algo inevitável durante toda a vida, não adianta, uma hora ou magoamos ou sairemos magoados. Tem quem escolha o segundo, mas aí acho que é masoquismo.
=*