Pular para o conteúdo principal

[76]

Breve consideração sobre as críticas literárias. É importante ficar claro que há pelo menos duas maneiras de tecer um comentário sobre um texto. Uma é a expressão direta do modo como o texto o afeta. Quando apelamos para este tipo de comentário, estamos focando a reação subjetiva diante de um texto. Frases como "gostei!", "achei emocionante", "lindo!" ou mesmo um "genial!", quando não vem acompanhado de uma justificativa que sustente a genialidade, servem para este propósito. Repare, no entanto, que embora esses comentários sejam a expressão de uma reação subjetiva, eles têm um valor objetivo considerável. Há uma grande diferença entre alguém que você considera um tonto dizer que gostou de um determinado texto seu e uma outra pessoa que você considera intelectualmente dizer a mesma coisa. Apesar das reações serem subjetivas, elas são o reflexo da formação e educação que as pessoas tiveram e, por isso, servem, em certa medida, como indicadores objetivos da qualidade do texto. Evidente que você, enquanto autor, só vai poder usufruir desse tipo de comentário se
conhece a pessoa que o emitiu.

A outra forma mais geral de comentar um texto é focar o próprio texto, visando seus elementos gramaticais, estilísticos, estéticos ou ainda o seu sentido/interpretação. Posso, por exemplo, pegar uma oração de um texto, redescrevê-la, sem alterar o seu sentido principal, e tentar argumentar que a nova versão é mais elegante. Ou, dada uma interpretação do texto, devidamente justificada, posso argumentar que várias passagens do texto são desnecessárias ou supérfulas para a consolidação e expressão do sentido captado nessa interpretação e que, assim, o autor teria feito melhor cortando essas passagens. Essas críticas são perfeitamente legítimas, mas não podemos perder de vista o que elas realmente valem. Nenhum texto tem uma só interpretação, ele não é fechado, mas aberto. E da mesma maneira como alguém pode ter uma interpretação que torne desnecessárias certas passagens do texto, uma outra pessoa pode ter uma interpretação segundo a qual essas mesmas passagens são essenciais. Que cada um use o seu engenho para tentar mostrar que sua interpretação é mais convincente.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

[102] Relativismo e Irracionalismo

Irracionalismo é a tese de que os nossos julgamentos são arbitrários. O irracionalismo pode aplicar-se apenas a um setor do conhecimento humano. Por exemplo, podemos ser irracionalistas morais. Assim, julgamentos morais sobre como agir, o que fazer, o que é certo e errado são arbitrários, não temos uma razão para eles, eles não se fundam em nada que possa legitimá-los diante dos outros. Podem ser fomentados por nossas emoções ou desejos, mas nada disso tira a sua arbitrariedade diante da razão. Chegaríamos ao irracionalismo moral se tivéssemos razões para pensar que não há nada na razão que pudesse amparar julgamentos morais. Isto é, dado um dilema moral do tipo "devo fazer X ou ~X", não há ao que apelar racionalmente para decidir a questão. Donde se seque que, qualquer decisão que você tomar, seja a favor de X, seja de ~X, será arbitrária. Como poderia a razão ser tão indiferente à moralidade? Primeiro vejamos o que conferiria autoridade racional a um julgamento moral, pois

[197] Breve introdução à tese da mente estendida

A tese da mente estendida é distinta e não se confunde com o externismo acerca dos conteúdos mentais. Nesta breve introdução, apresento em linhas gerais o externismo acerca dos conteúdos mentais para, em seguida, contrastá-lo com a tese da mente estendida. Identifico e apresento, então, os principais comprometimentos da tese da mente estendida. A tese do externismo acerca dos conteúdos mentais afirma que as relações causais que temos com o ambiente determinam, de alguma forma, o conteúdo dos nossos estados mentais, ou seja, aquilo que percebemos, ou aquilo acerca do qual pensamos algo, ou aquilo que desejamos etc. depende dos objetos com os quais interagimos causalmente. Um argumento comum em favor dessa tese é inspirado no argumento clássico de Putnam para o externismo semântico[1]. Imaginemos um planeta muito semelhante ao nosso, praticamente gêmeo nas aparências. Ele é abundante em um líquido muito semelhante à água, povoado com seres inteligentes como nós e que usam esse lí

[200] A distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação, segundo Reichenbach

A distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação é normalmente apresentada como marcando a diferença entre, por um lado, os processos de pensamento, teste e experimentação que de fato ocorreram em um laboratório ou em um ambiente de pesquisa e que levaram ou contribuíram para alguma descoberta científica e, de outro, os processos de justificação e validação dessa descoberta. Haveria, portanto, uma clara diferença entre descrever como cientistas chegaram a fazer certas alegações científicas, o que seria uma tarefa para as ciências empíricas, como a sociologia, a psicologia e a antropologia da ciência, e justificar essas alegações, o que seria uma tarefa para a epistemologia, uma disciplina normativa e não-empírica. Essa distinção é corriqueira em debates acerca do escopo da filosofia da ciência e teria sido explicitada inicialmente por Reichenbach. Contudo, quando examinamos a maneira como ele circunscreveu as tarefas da epistemologia, notamos que alguns elemento