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A Concepção (2006), dirigido por José Eduardo Belmonte, narra a história de um grupo de jovens que, cansados de seus seres e de suas existências entediantes e repetitivas, funda um movimento chamando "concepcionista". O bordão do movimento é ser uma nova fraude a cada dia, inventar e viver uma nova personalidade que não dure mais que 24 horas. A chave para por em prática esse projeto é o hedonismo exagerado. Submergir em prazeres efêmeros, intensos e fugazes, valendo-se de drogas inclusive para ajudar a eliminar a prisão maior do ser: a memória. "Devemos eliminar a memória", diz um concepcionista. A busca incessante pelas múltiplas personalidades
resulta da constatação de que "as pessoas estão doentes de si mesmas", há, em todo ser humano, uma angústia por estar preso ao seu ser. O personagem X, que serve de guru ao grupo de jovens e cuja identidade é desconhecida, lança a reflexão inaugural do movimento: "ser sempre o mesmo é como morrer aos poucos. Para viver, é preciso se libertar". O ego deve morrer em prol do prazer, da liberdade de si.

A execução do projeto concepcionista coloca uma dificuldade imediata de ordem prática: como garantir a subsistência se a cada dia você é uma personalidade diferente e não mantém qualquer consistência nas relações e nem persistência no trabalho? Problema que é resolvido com o conhecimento períto de X na falsificação de documentos e cartões de crédito. Assim o grupo pôde cair em orgias, consumir drogas, desligar-se do mundo, viver fantasias, fingir profissões sem se preocupar com o pão de amanhã.

O filme termina com um choque de realidade, quando a polícia faz uma batida no apartamento do grupo para apurar uma denúncia de tráfico de drogas. Os membros principais escapam a tempo, se separam e tentam ainda manter suas vidas concepcionistas, agora em situações mais precárias, sem a ajuda estelionatária do personagem X. Não há uma conclusão definitiva sobre o modo de vida concepcionista, o diretor parece mesmo oscilar no seu próprio julgamento. Os jovens peristem, apesar dos riscos e dificuldades, mesmo quando a prisão se apresenta como provável.

Em consonância com o mote da "morte ao ego", o filme explora o nú masculino o tempo inteiro. O pênis está sempre visível, solto e balouçante nas cenas de orgia, sobrepondo-se ao corpo feminino, que, embora apareça, não recebe grande destaque. Parece uma clara tentativa de chocar os padrões sociais que execram o nú masculino nas telas de cinema.

"A Concepção" deixa alguma reflexão interessante? O movimento tem um apelo fraco, afinal sua execução passa pela bandidagem, pela falsificação de documentos, riscos que poucas pessoas estarão dispostas a correr para "libertar" o seu eu. Há um certo irrealismo psicológico também na própria concepção do concepcionismo. A não ser que você elimine por completo a sua memória, jamais vai conseguir viver a farsa de dentro, como indistinta de si, ela sempre lhe será fingida, o que denuncia a percepção de um Eu constante, que não se altera, ou pelo menos que não se desintegra na velocidade diária requerida pelo concepcionista. O método hedônico de eliminar a memória, consumindo drogas compulsivamente, tem o efeito de deixar a pessoa tão desligada da realidade e tapada socialmente que é de se questionar se ainda faz sentido dizer que ela vive alguma personalidade de alguma maneira. Os próprios concepcionistas do filme não atingem esse grau absoluto de eliminação da memória. Isso fica vizível quando Liz, que fora para São Paulo passar um tempo aplicando suas farsas, resolve voltar à Brasília para se juntar novamente aos seus amigos concepcionistas, sentindo saudades de suas bagunças. Ora, saudades é algo que não cabe a um ser sem memória.

A despeito das falhas de argumento, "A Concepção" tem ao menos o mérito de colocar em destaque uma questão existencial que qualquer ser humano já deparou ou irá deparar um dia: a angústia e o desespero de ser quem é. Difícil imaginar uma pessoa que, em algum momento da sua vida, não tenha sentido um desespero enorme por se sentir preso à pessoa que é, às expectativas que são criadas em seu entorno, à impossibilidade de se mover em alternativas de vida. Esse tipo de angústia já havia sido identificado e explorado por Kierkegaard em "O Desespero Humano". No entanto, lá ele aponta a oscilação constante do Eu na sua relação consigo mesmo entre dois desesperos antagônicos, o primeiro é aquele já discutido e o segundo é justamente o seu oposto: a angústia de não ser quem é, o desespero em se ver forçado a se refugiar de si mesmo. Exemplo desse segundo tipo de desespero obtive pelo efeito catártico do próprio filme. Ao ver cenas de hedonismo exagerado e a tentativa de eliminar a memória, senti quase angustiado a necessidade de ser quem sou, de não perder as minhas memórias, de ser capaz de sentir saudades das pessoas que me foram caras, de não me afastar de mim mesmo num frenesi hedônico que não costure nenhum rumo a minha existência. Esse segundo tipo de desespero, tão comum quanto o primeiro, não é mencionado no filme, o que é até de se esperar, posto que ele enfraquece a tese concepcionista, ao nos fazer constatar que as pessoas não estão assim tão "doentes de si mesmas". Há sim uma oscilação existencial, em virtude das várias situações que vivemos, positivas e negativas, entre querer ser desesperadamente quem é e querer ser desesperadamente outro. Por fim, a própria solução hedônica para o primeiro tipo de angústia e desespero não parece de fato uma solução, mas uma fuga. Esquecer-se de si pela perda de memória e submergir no prazer fugaz e efêmero tem mais a cara de um encobrimento do problema que uma solução para ele. Põe-se o eu para dormir, assim a angústia não é vivenciada. Mas pode-se questionar se um efrentamento consciente do desespero não poderia resultar numa transformação positiva de si mesmo.

Comentários

Oi, Eros,
quando vieres para a Ilha faremos os dois passeios, de barco pela costa da lagoa e uma flanada no Pantano do Sul (com um livro de filosofia em mãos)
:)

beijos meus e da pan
Arlequim disse…
O filme parece ser interessante, pelo menos as questões que coloca assim me parecem. Concordo com você sobre o fato de fugir do eu pode ser mesmo uma tentativa de esquecer a angústia que todos nós experimentamos e que Kierkegaard mesmo propõe como parte (não tenho certeza se posso ir tão longe) essencial do ser humano. Nesse sentido a pergunta que me coloco é: será que a falta da memória e a supressão do eu, não tornariam impossível uma vida minimamente humana? Se tomamos o homem como resultado de todos os processos conscientes ou não. E mais a fundo, se Freud nos propõe um inconsciente infinito, as impressões podem não ficar marcadas na consciência, mas em outro ambito podem ficar registradas e retornar a partir lá de maneira desastrosa?

P.S.: Não sei se fui longe demais em minhas observações, e nem o quanto são pertinentes.
Eros disse…
Bem, há vários tipos de memórias, memória de curto e longo prazo e ainda a memória de trabalho, para falar apenas das memórias com conhecimento declarativo. E ainda essas podem ser inconscientes e conscientes. Há também as memórias de conhecimento procedural e algo que poderíamos chamar de memória emocional, exemplificada muito bem, por exemplo, no filme "Brilho Eterno de Uma mente sem Lembranças". Pessoas sem memória declarativa de longo prazo, como o personagem do filme Amnésia, continuam bem humanas, ao meu ver, suas reações emocionais não se deterioram, nem a capacidade de pensar. No entanto, perdem a perspectiva global da sua existência e fatalmente devem sentir algum tipo de angústia com isso, angústia de um Eu vazio.

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