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[128] Aderência à vida

A teia de relacionamentos humanos é talvez a forma mais robusta de
aderência à vida. Despreender-se da vida, das coisas da vida, exige o
que Strawson chamou de 'atitude egoísta' diante dos outros. Isto é, nos
relacionamos com os outros sem se comprometer com eles, a não ser na
justa medida em que o comprometimento é necessário para a preservação
destes outros enquanto meios para obter fins que almejamos. O
relacionamento com os outros, a partir desta atitude, não desperta
nenhum sentimento de responsabilidade para com eles. O convívio, assim,
não pede a adesão à vida. Em contrapartida, o custo de não desejar se
sentir preso à vida é elevado, demanda a mais absoluta solidão
existencial. Uma vez que o relacionamento com os outros é tratado como
meio e não como um fim, sensações como a de confiança, empatia,
solidariedade, fundamentais para abrandar a sensação de solidão, estão
bloqueadas de partida. Confiança, empatia e solidariedade exigem o
comprometimento que só é possível quando o relacionamento com o outro é
tomado como um fim. Para sentir-se livre da vida é preciso adotar o mais
profundo abandono de si, é preciso ver-se como uma existência
desconectada de todas as demais, é preciso imaginar-se como um ponto em
um deserto.

Uma pessoa que tem um filho ou que se relaciona amorosamente com outra
abriu mão da posse plena sobre a sua vida. Em virtude dos
comprometimentos que estes relacionamentos exigem, esta pessoa perde o
direito de tirar a própria vida. Pode-se dizer que a perda deste direito
se dá em um grau menor na situação de uma relacionamento amoroso do que
na situação em que um filho é gerado. O bem-estar do filho, conforme a
sua idade, é muito mais dependente da sua existência do que o bem-estar
da pessoa amada. Além disso, o filho não escolheu relacionar-se contigo
como filho, enquanto a outra pessoa o fez. O fato de ambos serem
responsáveis pelo vir a ser da relação abranda a responsabilidade
isolada que você tem pela relação em comparação com a responsabilidade
que você tem pelo relacionamento paterno ou materno. Se, ao
relacionar-se com o outro amorosamente, você perdesse, em virtude do
comprometimento com o bem-estar desta pessoa, o total direito sobre a
própria vida, então, por razões similares, você perderia o direito de
romper o relacionamento. Como, em geral, as pessoas aceitam o rompimento
do relacionamentos amorosos, mas não aceitam, em geral, o abandono dos
filhos, podemos concluir que a perda do direito sobre a própria vida
comporta graus. O sujeito que se suicida e tem filhos age com maior
imoralidade do que o sujeito que se suicida, não tem filhos, mas tem um
relacionamento amoroso e este age também com maior imoralidade do que o
sujeito que se suicida, mas não tem filhos, nem relacionamento
amoroso. Percebe-se, então, que o suicídio se justifica, ou melhor, é
licenciado plenamente para aquelas pessoas que têm uma atitude egoísta
diante dos outros, que não se relaciona com elas compromissadamente. A
ausência de relacionamentos humanos autênticos licencia o suicídio. Este
é um resultado bem esperado, já que, em um certo sentido, uma vida
desconectada da teia social é uma existência sem significado. Pelo menos
a sociedade tende a considerá-la assim. Licencia-se, neste caso, o
suicídio em virtude de esta vida não fazer quase ou nenhuma diferença
seja para outras pessoas em particular, seja para a sociedade em
geral. Pode-se abrir aqui uma exceção para os casos de
genialidade. Mesmo que o gênio não mantenha relações significativas com
outras pessoas, seu suicídio pode não ser completamente licenciado em
virtude do valor que a sua obra tem para a sociedade. Parece-me, no
entanto, que este fator entra mais como um lamento pela perda do gênio
do que como cancelado, em algum grau, a aprovação do seu ato suicida.

Uma razão talvez para que as pessoas desejem ter filhos é que elas não
querem ter a vida delas nas suas próprias mãos, não querem se sentir
livres das próprias vidas, ou temem esse sentir. Pois então cada dia de
sua existência exige a consciência da sua escolha pelo viver. O sujeito
não viverá por obrigação, pela sensação de aderência à vida, mas por
escolher viver. Um sujeito que se vê livre do seu viver se defronta o
tempo inteiro com o porquê do seu viver. Este confronto não é isento de
sofrimento ou angústia.

Comentários

Marcely Costa disse…
"Se, ao relacionar-se com o outro amorosamente, você perdesse, em virtude do comprometimento com o bem-estar desta pessoa, o total direito sobre a própria vida, então, por razões similares, você perderia o direito de romper o relacionamento."

"A ausência de relacionamentos humanos autênticos licencia o suicídio."

Vou gravar essas frases. Minha carta suicida terá até citações de filósofos, olha que genial! xDD
Eros disse…
Enquanto estamos ligados por um genuíno e autêntico elo humano, seu suicídio não está licenciado. Jamais a perdoaria por tal ato. ;)
camila f. disse…
Poxa, gostei muito. Caí de pára-quedas aqui passeando pela internet. Tenho casos de suicídio na família e cada vez que penso nisso eu tento me concentrar que ainda há "amor". Se não por mim, pelo menos pelo outro, por meu pai por exemplo. Só então, não me dou a "liberdade" egoísta de me matar. (e pq às vezes falta coragem tbm né, afinal sou humana e tbm gosto de sair na sexta-feira pra tomar uma cerveja com os amigos, mas isso é só pq hj to de bom humor, hahaha)

Fiquei curiosa do resto do blog.
Obrigada e até mais.
Eros disse…
Para amar o outro, é preciso se amar e para se amar é preciso perceber o amor dos outros por ti. Embora o amor sempre nasça em um indivíduo, ele só pode existir quando nasce em mais de um, o que não significa que tenha de nascer com reciprocidade.

Volte sempre.

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