Pular para o conteúdo principal

[130] Sellars e A lógica de "parece"

"X parece F a S" não é o relato de algo que se apreende imediatamente. O
conteúdo de "X parece F a S" é que X é F. Se X é F, então a experiência
por trás de "X parece F a S" é a experiência de ver que X é F. Se X não
é F, então a experiência não é de ver. Trata-se de uma experiência
enganosa.

Gostaríamos de ter algo mais imediato para caracterizar esta experiência
enganosa. Mas talvez não tenhamos. Ou talvez não precisemos. "O bastão
semi-imerso na água parece torto". Temos aqui um parecer qualitativo,
não endossamos a propriedade de ser torto do bastão. Qual o conteúdo
desta experiência? Seu conteúdo é a de que o bastão é torto. Temos o
mesmo tipo de experiência que teríamos se o bastão fosse torto. Na
verdade, neste caso é mais adequado dizer que estamos diante de um
parecer genérico. O bastão parece torto sem parecer um torto
determinado, pois a presença da água no cenário impede que o bastão
pareça um torto determinado, isto é, impede que o bastão pareça
exatamente como parece um bastão que é torto. É o caso de dizermos aqui
também que o bastão apenas parece ser torto, pois, neste caso, já
sabemos que o conteúdo da experiência é falso. Não só não endossamos o
conteúdo como o negamos.

Como respondemos à pergunta: "por que o bastão parece torto?". Por que
o bastão está imerso na água e, em tais circunstância, ele parece
assim.

O vocabulário ordinário sobre objetos físicos e as suas qualidades é
suficiente para caracterizar o conteúdo de todas as experiências
perceptivas. Quando a experiência não é um ver, quando é ilusória,
simplesmente não endossamos a afirmação que caracteriza o seu conteúdo.

Agora, vamos usar estes resultados para lidar com as figuras
ambíguas. Kuhn quer defender que, na mudança de gestalt, o estímulo
permanece o mesmo, mas não a experiência. De fato, isto pode ocorrer, a
questão crucial, no entanto, é se isto tem as implicações epistêmicas
que Kuhn desejou extrair. Quando vejo a figura L-P como a figura de um
pato, o conteúdo da minha experiência é a de que a figura, lá, é a de um
pato. Quando vejo a figura L-P como a figura de uma lebre, o conteúdo da
minha experiência é a de que a figura, lá, é a de uma lebre. São duas
experiências distintas, pois os conteúdos delas são distintos. O que
impressiona o filósofo é que, em princípio, pode-se dizer que toda
circunstância no mundo que confirma o conteúdo da primeira experiência
também confirma o conteúdo da segunda experiência. A diferença evidencial,
portanto, estaria no sujeito. Mas este talvez seja um jeito errado de
entender a situação.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

[102] Relativismo e Irracionalismo

Irracionalismo é a tese de que os nossos julgamentos são arbitrários. O irracionalismo pode aplicar-se apenas a um setor do conhecimento humano. Por exemplo, podemos ser irracionalistas morais. Assim, julgamentos morais sobre como agir, o que fazer, o que é certo e errado são arbitrários, não temos uma razão para eles, eles não se fundam em nada que possa legitimá-los diante dos outros. Podem ser fomentados por nossas emoções ou desejos, mas nada disso tira a sua arbitrariedade diante da razão. Chegaríamos ao irracionalismo moral se tivéssemos razões para pensar que não há nada na razão que pudesse amparar julgamentos morais. Isto é, dado um dilema moral do tipo "devo fazer X ou ~X", não há ao que apelar racionalmente para decidir a questão. Donde se seque que, qualquer decisão que você tomar, seja a favor de X, seja de ~X, será arbitrária. Como poderia a razão ser tão indiferente à moralidade? Primeiro vejamos o que conferiria autoridade racional a um julgamento moral, pois

[197] Breve introdução à tese da mente estendida

A tese da mente estendida é distinta e não se confunde com o externismo acerca dos conteúdos mentais. Nesta breve introdução, apresento em linhas gerais o externismo acerca dos conteúdos mentais para, em seguida, contrastá-lo com a tese da mente estendida. Identifico e apresento, então, os principais comprometimentos da tese da mente estendida. A tese do externismo acerca dos conteúdos mentais afirma que as relações causais que temos com o ambiente determinam, de alguma forma, o conteúdo dos nossos estados mentais, ou seja, aquilo que percebemos, ou aquilo acerca do qual pensamos algo, ou aquilo que desejamos etc. depende dos objetos com os quais interagimos causalmente. Um argumento comum em favor dessa tese é inspirado no argumento clássico de Putnam para o externismo semântico[1]. Imaginemos um planeta muito semelhante ao nosso, praticamente gêmeo nas aparências. Ele é abundante em um líquido muito semelhante à água, povoado com seres inteligentes como nós e que usam esse lí

[200] A distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação, segundo Reichenbach

A distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação é normalmente apresentada como marcando a diferença entre, por um lado, os processos de pensamento, teste e experimentação que de fato ocorreram em um laboratório ou em um ambiente de pesquisa e que levaram ou contribuíram para alguma descoberta científica e, de outro, os processos de justificação e validação dessa descoberta. Haveria, portanto, uma clara diferença entre descrever como cientistas chegaram a fazer certas alegações científicas, o que seria uma tarefa para as ciências empíricas, como a sociologia, a psicologia e a antropologia da ciência, e justificar essas alegações, o que seria uma tarefa para a epistemologia, uma disciplina normativa e não-empírica. Essa distinção é corriqueira em debates acerca do escopo da filosofia da ciência e teria sido explicitada inicialmente por Reichenbach. Contudo, quando examinamos a maneira como ele circunscreveu as tarefas da epistemologia, notamos que alguns elemento