Numa discussão, João acusa Marcos de criticar o filósofo Heigschelt sem compreendê-lo adequadamente. Segundo João, Marcos deveria ter feito um esforço interpretativo maior antes de se aventurar a criticar o renomado Heigschelt. Suponhamos que Marcos tenha dito que a proposição P afirmada por Heigschelt não tem como se sustentar. João, ao interpretar Marcos, atribui-lhe a afirmação de que a proposição Q afirmada por Heigschelt não tem como se sustentar e reprova Marcos dizendo que Heigschelt nunca afirmou Q.
Sim, de fato, Heigschelt nunca afimou Q, mas Marcos também nunca disse que Heigschelt afirmou Q, mas sim P. Por mais surreal que essa situação fictícia soe, ela não é tão rara em nossa comunidade filosófica. A paridade interpretativa, infelizmente, não é um valor universalmente compartilhado. Exige-se que realizemos o maior esforço interpretativo possível antes de dizer qualquer coisa sobre um filósofo renomado, mas as mesmas pessoas que fazem esta exigência não estão dispostas a despender o mesmo esforço ao discutir com os seus parceiros filosóficos menos renomados.
No fundo, é como se estivessem a dizer: um grande filósofo eu respeito, você não. Poder-se-ia objetar dizendo que estou querendo atenção demais. Não posso esperar a mesma atenção e dedicação que um grande filósofo recebe. Óbvio que não. Mas se alguém se dispõe a discutir comigo, ela deveria me respeitar tanto quanto respeita o grande filósofo e respeito envolve, entre outras coisas, se esforçar a entender o que o seu interlocutor disse. Uma comunidade filosófica genuína não nasce sem paridade interpretativa.
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