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[174] É da fraqueza que nascem as aparências

Não ser capaz de reconhecer as suas fraquezas só reforça a sua fraqueza no geral. Poucos têm a força para este reconhecimento, que, de fato, não é fácil, não só pela pressão interna, mas também pela externa. Relutamos em ver no espelho a nossa face mais feia. Incomoda. Também relutamos em mostrar aos outros o que temos de mais feio. Nos envergonha. E os outros, muitos deles, não poupam esforços em nos fazer se sentir envergonhados. A demonstração de fraqueza é recepcionada por muitos com demonstração de suposta força. Batem justamente quando nos mostramos fracos. A razão de baterem, nesta circunstância, é também fruto da fraqueza deles. Covardia sempre será uma atitude de fraco, do fraco que deseja parecer forte, do fraco que só bate quando o outro está desarmado, humilhado ou desamparado. Forte que é forte não quer bater em quem é fraco ou está fraco, seria uma vergonha e demérito para a sua real força. Forte bate em forte e ajuda o fraco a ficar forte. Para tal fim, às vezes, bate no fraco, mas só quando é claro o intento de fortalecê-lo, com a força apropriada e provável o efeito pretendido. De outro modo, o forte seria covarde, o que faria dele, na verdade, um fraco. O forte não quer parecer forte, muito menos pela covardia. 
A proporção entre fortes e fracos influi diretamente na fronteira entre realidade e aparência que perpassa as nossas vidas. Se são muitos os fracos, a realidade é quase completamente consumida pela aparência. Fracos têm uma necessidade muito forte por parecer forte, o que alimenta a covardia e faz nova pressão para que todos os fracos sucumbam ainda mais à necessidade de parecer forte. É um ciclo vicioso que gera um mundo de aparências. Fracos se furtam à realidade quando, por covardia, parecem o que não são, fortes, e quando, por medo, deixam de manifestar o que são, fracos. Evitam o espelho e se escondem de si mesmos e dos outros. Fracos vivem mergulhados em aparências. Se, ao contrário, os fortes fossem muito mais numerosos, prevaleceria em nossas vivências a realidade, o que somos. Nos veríamos nos espelho não sempre sem desgosto, mas pelo menos sem medo. E a fraqueza que, por ventura, viéssemos a ter, exporíamos ao mundo sem receios, tanto por não temer apanhar de fracos covardes que, como urubus, se aproveitam da situação, quanto por sermos fortes o suficiente para não nos envergonhar do que verdadeiramente somos. Viver em realidade exige coragem e força. 
Uma comunidade que queira conviver com a verdade e a realidade precisa de fortes. Só eles a suportam por completo e se suportam por completo. E só eles têm a força necessária e na medida certa para conduzir os fracos no árduo processo de fortalecimento, tanto quanto a estes é possível se fortalecer. A triste sina de uma comunidade de fracos é que ela só conta com a sorte para que, em seu seio, floresça um forte. Sem a contribuição de um forte para o fortalecimento dos demais, não há como a comunidade de fracos atravessar o véu de aparências que a envolve em um verdadeiro encontro consigo mesma. Felizmente, a realidade não é preta e branca. Entre fracos e fortes há uma imenso contínuo. Mas podemos dizer que quanto mais fracos os membros de uma comunidade, tanto mais ela depende da sorte para o fortalecimento que lhe permitiria viver encarando a realidade. 
Mas por que não nos contentamos com a fraqueza e vivemos só das aparências? Se te agrada viver rodeado de covardia, de mesquinharia, ausente de si, e sobretudo com a sentida falta de sentido de parecer o que não és, nada  tenho a lhe dizer.

Comentários

Flavio Williges disse…
Oi Eros,
Não sei se entendi bem o que estás dizendo. Eu, por exemplo, me considero um fraco, uma pessoa de pouca personalidade e presença de espírito. Sou manso no geral, mesmo quando não deveria ser e não me saio muito bem quando preciso ser agressivo. Então, no final das contas, quase todas as pessoas são melhores ou mais fortes do que eu. No entanto, não acho que eu seja moralmente reprovável; falta-me talvez alguma habilidade, alguma presença maior, mas não vejo isso necessariamente como uma deficiência moral.

Abraço

Flavio
Eros disse…
Oi Flávio,

Não associei força à presença de espírito ou à personalidade forte e fraqueza à ausência de espírito ou à personalidade fraca ou a qualquer outra coisa desse gênero, mas apliquei forte e fraco apenas à capacidade de se encarar de frente e tentei tirar algumas consequências daí para o tipo de comunidade que podemos ter conforme formos em geral mais fracos ou fortes.

Eu não acho que ninguém consiga se encarar de frente o tempo todo. Eu não consigo, estou muito longe disso. No entanto, disto não se segue que é melhor não se encarar nunca e viver num mundo de aparências, aparências de si mesmo para si mesmo e também para os outros. E embora naturalmente uns sejam mais capazes de se encarar de frente do que outros, não acho que essa capacidade não possa ser desenvolvida ou aperfeiçoada se nos esforçarmos.

Não cheguei ao ponto de dizer diretamente que tens a obrigação moral de desenvolver essa capacidade tanto quanto possível, mas disse sim que me parece bem melhor tentar fazê-lo se buscamos uma vida mais autêntica conosco e com os outros. Mas a gente pode não querer viver uma vida autêntica. Ou eu posso estar errado em associar força, no sentido indicado, à autenticidade.

Um abraço,
Eros.
Eros disse…
E não tenha dúvidas de que, no sentido que você indicou, mais próximo de personalidade, eu sou ainda mais fraco.

Abraços,
Eros.

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