Pular para o conteúdo principal

[184] Ética na discussão

Há uma razão muito simples para não podermos, em uma discussão entre pares, introduzir como premissa uma afirmação que o nosso interlocutor não aceita, a não ser, obviamente, que a fundamentemos em outras afirmações que ele aceita. Mas neste caso, ele aceitará a afirmação ou, pelo menos, se comunga as mesmas regras de inferência, deveria aceitá-la. Se ele não aceita, não podemos de qualquer modo prosseguir a discussão como se ele a aceitasse. A razão para isso é moral. Ao fazê-lo, deixamos de tratar o interlocutor como um par; passamos a representá-lo como alguém cognitivamente inferior ou como tendo menos autoridade epistêmica do que nós e rompemos, assim, com uma assunção mútua, aceita (geralmente implicitamente) no início da discussão, de que éramos e, portanto, nos trataríamos como pares intelectuais. Somente alguém cognitivamente inferior ou de menor autoridade epistêmica se encontra na situação de ter a obrigação epistêmica de aceitar de alguém cognitivamente superior e de maior autoridade epistêmica uma afirmação que, até então, ele não enxergava como verdadeira e que não é fundamentada em outras que ele aceita. Se continuamos a discussão a partir de uma afirmação que o interlocutor não aceita, geramos a presunção de que ele tem esta obrigação epistêmica e, portanto, o tratamos como cognitivamente inferior ou de menor autoridade epistêmica. Ofendemos, assim, a dignidade epistêmica que lhe fora concedida no início da discussão.

Claro que, mantendo uma discussão entre pares, não ficamos sem recursos para articular a nossa posição a partir de afirmações que o interlocutor não aceita. Porém, para não cometer a falta moral acima, as afirmações que o interlocutor não aceita e que não são fundamentadas em outras que ele aceita devem ser explicitamente introduzidas na discussão como assunções. O interlocutor poderá, então, engajar na discussão da cogência de nossa posição, muito embora a sua solidez estará, a partir de então, fora da discussão.

Uma autêntica discussão entre pares jamais deveria ser vista como uma batalha, mas como uma atividade cooperativa em que os envolvidos se engajam respeitosamente na busca conjunta da verdade.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

[102] Relativismo e Irracionalismo

Irracionalismo é a tese de que os nossos julgamentos são arbitrários. O irracionalismo pode aplicar-se apenas a um setor do conhecimento humano. Por exemplo, podemos ser irracionalistas morais. Assim, julgamentos morais sobre como agir, o que fazer, o que é certo e errado são arbitrários, não temos uma razão para eles, eles não se fundam em nada que possa legitimá-los diante dos outros. Podem ser fomentados por nossas emoções ou desejos, mas nada disso tira a sua arbitrariedade diante da razão. Chegaríamos ao irracionalismo moral se tivéssemos razões para pensar que não há nada na razão que pudesse amparar julgamentos morais. Isto é, dado um dilema moral do tipo "devo fazer X ou ~X", não há ao que apelar racionalmente para decidir a questão. Donde se seque que, qualquer decisão que você tomar, seja a favor de X, seja de ~X, será arbitrária. Como poderia a razão ser tão indiferente à moralidade? Primeiro vejamos o que conferiria autoridade racional a um julgamento moral, pois

[197] Breve introdução à tese da mente estendida

A tese da mente estendida é distinta e não se confunde com o externismo acerca dos conteúdos mentais. Nesta breve introdução, apresento em linhas gerais o externismo acerca dos conteúdos mentais para, em seguida, contrastá-lo com a tese da mente estendida. Identifico e apresento, então, os principais comprometimentos da tese da mente estendida. A tese do externismo acerca dos conteúdos mentais afirma que as relações causais que temos com o ambiente determinam, de alguma forma, o conteúdo dos nossos estados mentais, ou seja, aquilo que percebemos, ou aquilo acerca do qual pensamos algo, ou aquilo que desejamos etc. depende dos objetos com os quais interagimos causalmente. Um argumento comum em favor dessa tese é inspirado no argumento clássico de Putnam para o externismo semântico[1]. Imaginemos um planeta muito semelhante ao nosso, praticamente gêmeo nas aparências. Ele é abundante em um líquido muito semelhante à água, povoado com seres inteligentes como nós e que usam esse lí

[200] A distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação, segundo Reichenbach

A distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação é normalmente apresentada como marcando a diferença entre, por um lado, os processos de pensamento, teste e experimentação que de fato ocorreram em um laboratório ou em um ambiente de pesquisa e que levaram ou contribuíram para alguma descoberta científica e, de outro, os processos de justificação e validação dessa descoberta. Haveria, portanto, uma clara diferença entre descrever como cientistas chegaram a fazer certas alegações científicas, o que seria uma tarefa para as ciências empíricas, como a sociologia, a psicologia e a antropologia da ciência, e justificar essas alegações, o que seria uma tarefa para a epistemologia, uma disciplina normativa e não-empírica. Essa distinção é corriqueira em debates acerca do escopo da filosofia da ciência e teria sido explicitada inicialmente por Reichenbach. Contudo, quando examinamos a maneira como ele circunscreveu as tarefas da epistemologia, notamos que alguns elemento