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[195] Popper e o Princípio da Racionalidade


Popper é conhecido por ter proposto a falsificabilidade como critério de demarcação entre ciência e não-ciência. Assim, uma teoria com pretensão de cientificidade deve em princípio ser falseável ou testável. Uma teoria é falseável se ela faz proibições, isto é, se ela afirma que determinados eventos não vão ocorrer. Caso ocorram, a teoria é falseada. Na verdade, a falsificação sozinha não é suficiente para separar ciência de não-ciência, como reconhece o próprio Popper. Ela é apenas um critério de demarcação entre sistemas empíricos e não-empíricos. Nada impede que um grupo de cientistas mantenha na prática uma sistema empírico imune ao falseamento, muito embora ele seja, em princípio, falseável. Por exemplo, se esse grupo de cientistas rejeita sistematicamente os relatos da ocorrência de eventos que são proibidos pela teoria, ele age de modo não-crítico e não-científico. Assim, para caracterizar a demarcação adequadamente, Popper se vale também de regras metodológicas, regras que prescrevem como o cientista deve se comportar em relação a um sistema empírico. Entre as regras metodológicas mais gerais está a de que o cientista deve evitar estratégias que acabem por imunizar um sistema teórico da refutação. Por exemplo, o cientista deve evitar a estratégia de rejeitar sistematicamente relatos da ocorrência de eventos que são proibidos pela teoria. A falsificabilidade e as regras metodológicas, em conjunto, demarcaram ciência de não-ciência.

Embora a maior parte da filosofia da ciência de Popper tome como alvo de suas análises a ciência natural, Popper pretende que elas se apliquem igualmente às ciências humanas. O falsificacionismo não seria menos necessário nas ciências humanas para demarcar sistemas empíricos de sistemas não empíricos e as regras metodológicas igualmente não seriam menos necessárias para prescrever a conduta adequada dos cientistas sociais. Neste breve comentário, quero apenas chamar a atenção para a discussão na qual Popper se envolveu em torno do Princípio da Racionalidade. Na Logica das Ciências Sociais, Popper propõe, a partir da análise da lógica da Economia, que o método de investigação que ele identifica nessa ciência, e que ele chama de “lógica situacional”, poder ser aplicado a todas as ciências humanas para a explicação da ação humana. Grosseiramente, esse método envolve a modelagem da situação em que o agente se encontra, identificando o objetivo do agente e os conhecimentos que ele tem a sua disposição. Essa modelagem, quando é, nos termos de Popper, “animada” pelo Princípio da Racionalidade, formando assim um sistema empírico, nos permite prever a ação apropriada para o agente na situação em que ele se encontra. Se o agente falha em agir conforme o previsto, o sistema empírico que serviu de base para a previsão é falseado.

Chamou muita atenção nessa discussão de Popper acerca das ciências sociais a sua alegação de que, na revisão de sistemas empíricos que seguem o método da lógica situacional, o Princípio da Racionalidade é aproximadamente verdadeiro e que ele deve ser preservado. Essa alegação, em princípio, parece ir de encontro ao falsificacionismo e à atitude crítica que Popper defende, e ele foi muito criticado por isso. Tentarei esboçar uma resposta a essa crítica.

Antes de mais nada, parece-me que precisamos ter um pouco mais claro o Princípio da Racionalidade. Em um primeira formulação, Popper diz:

os agentes sempre agem de maneira apropriada à situação em que se encontram” (“O Princípio da Racionalidade [PR], 352).

Em seguida, ele caracteriza alguns elementos da situação:

Neste ponto, devemos lembrar que a situação, tal como eu uso esse termo, já contém as metas pertinentes e os conhecimentos disponíveis pertinentes, especialmente sobre os meios possíveis para alcançar essas metas (PR, 351).

Se uma ação apropriada a uma situação toma como padrão o conhecimento científico disponível para atingir a meta que caracteriza essa situação, então qualquer indivíduo que, por falta de conhecimento, age diferentemente do que se esperaria se tivesse se pautado no conhecimento científico disponível realiza uma ação inapropriada. Nesse caso, teríamos muitas violações do princípio da racionalidade e seria mesmo difícil sustentar que ele é mesmo aproximadamente verdadeiro.

Mais adiante, Popper reformula o princípio:

compreender seus atos significa ver a adequação deles segundo sua visão – loucamente equivocada - da situação problemática (PR, 355),

o que poderíamos reformular afirmando: “os agentes sempre agem de maneira apropriada à situação em que se encontram tal como eles a veem”. A ação apropriada toma como padrão o conhecimento que o indivíduo tem ou supõe ter para atingir a meta que caracteriza a situação em que ele se encontra. Assim, ainda que o sujeito tenha crenças bastante equivocadas acerca de como atingir essa meta, suas ações, na medida em que se pautam nessas crenças, serão apropriadas. Essa leitura do princípio da racionalidade miniminiza as violações. Torna o principio trivial? Aparentemente, não, Popper dá um exemplo de violação:

Basta observarmos um motorista agitado, que tenta desesperadamente estacionar o carro quando não há vagas disponíveis, para ver que nem sempre agimos de acordo com o princípio da racionalidade (PR, 352).

A situação envolve a meta de estacionar o carro e o conhecimento do indivíduo de que não há vagas disponíveis. Ainda assim, o sujeito tenta desesperadamente estacionar o carro. Sua ação não é apropriada à situação em que ele se encontra tal como ele a vê.

Pode-se dizer que o princípio da racionalidade foi contundentemente violado e, portanto, conclusivamente falseado? Antes de responder à questão, devemos lembrar que, para Popper, enunciados sintéticos não têm conteúdo empírico isoladamente. Em sentido estrito, é o sistema teórico que tem conteúdo empírico e, portanto, apenas ele, e não suas partes, é falseável (LPC, 42, 88-91). Por exemplo, um enunciado universal isoladamente não tem conteúdo empírico, nem é, em sentido estrito, falseável, pois ele sozinho não implica enunciados singulares. A este respeito, Popper se distancia tanto de empiristas lógicos quanto de convencionalistas. Os primeiros alegam que enunciados sintéticos universais são verificáveis e, portanto, possuem um cabedal próprio de experiências que constituem o seu conteúdo. Os segundos sustentam que enunciados universais são verdadeiros a priori e que, qualquer que seja a explicação para a seu caráter a priori, tais enunciados não são revisáveis diante de experiências recalcitrantes.

Voltando à questão, o que foi refutado no exemplo do sujeito que tenta agitadamente estacionar o carro não foi o princípio da racionalidade isoladamente, mas o sistema teórico que envolve esse princípio e o modelo da situação em que o agente se encontra. O sistema teórico previa que o agente, vendo que não há vagas e querendo estacionar o carro, não tentaria agitadamente estacionar o carro. Diante da falha preditiva, devemos decidir qual parcela do sistema teórico deve ser responsabilizada pela falha preditiva e, portanto, revisada. Sobre esse ponto, Popper não deixa dúvidas:

Defendo que uma política metodológica sensata é a que decide não responsabilizar o princípio da racionalidade e sim o resto da teoria, ou seja, o modelo (PR, 353).

Críticos de Popper acusaram que essa política metodológica esconde o comprometimento com o princípio da racionalidade como a priori. O que justificaria essa política de sempre preferir revisar o modelo a não ser o fato de que o princípio da racionalidade é tomado como verdadeiro a priori? Popper está ciente da acusação. Ele reconhece que

parece que tratamos o princípio da racionalidade como se ele fosse um princípio lógico ou metafísico isento de refutação: como não refutável ou como válido a priori. Mas essa aparência é enganosa (PR, 353).

A questão é delicada para Popper. Dissemos acima que o princípio de falsificação sozinho não é suficiente para demarcar ciência de não-ciência. O problema da demarcação só é resolvido pela adoção de regras metodológicas, regras que regulam a atitude do cientista em relação a um sistema teórico. Popper poderia ser acusado de estar adotando uma postura em relação ao princípio de racionalidade que é contrária as suas regras metodológicas mais gerais e que são essenciais para a demarcação da ciência. Como ele não titubeia em alegar que quem fere essas regras deixa de jogar o jogo da ciência, ele poderia ser acusado de ter deixado de jogar o jogo da ciência ao defender a política metodológica de preservar o princípio de racionalidade.

Essa crítica, no entanto, não é justa. Em primeiro lugar, Popper não está protegendo os sistemas teóricos das ciências humanas de refutação. A previsão frustrada de uma ação demanda a revisão do sistema teórico que a implica. A regra metodológica que sugere preservar o princípio de racionalidade não é uma regra que imuniza o sistema teórico, mas uma regra que sugere onde devemos olhar para procurar falhas responsáveis pela previsão falsa. Assim, Popper não está infringindo as regras metodológicas mais gerais que governam a atitude crítica do cientista em relação ao sistema teórico. O problema da ambiguidade da falsificação, isto é, o problema de saber o que revisar quando um sistema teórico faz predições falsas, foi claramente identificado por Duhem (TF, p. 225-6), e Popper está dando uma resposta para ele ao menos no campo das ciências humanas que empregam o método da lógica situacional através da regra metodologia que recomenda preservar o Princípio da Racionalidade. Em segundo lugar, a justificativa para essa regra não reside no comprometimento com o princípio da racionalidade como válido a priori, como se Popper estivesse adotando uma estratégia convencionalista, mas no fato de que não temos, até o momento, (i) nenhuma outra maneira de testar o princípio da racionalidade a não ser associando-o aos modelos situacionais, (ii) nem qualquer outro princípio que pudesse compor um sistema teórico alternativo que fornecesse um poder explicativo igual ou superior ao da lógica situacional. Enquanto (i) e (ii) prevalecerem, a regra metodológica que recomenda preservar o princípio da racionalidade é de fato sensata.


[1] Popper, K. “O Princípio da Racionalidade”. In: Miller, David (org.). Popper: Textos Escolhidos. Contraponto, 2010, p. 349-358.
[2] Popper, K. A Lógica da Pesquisa Científica. Editora Cultrix, 1993.
[3] Popper, K. Lógica das Ciências Sociais. Editora Universidade de Brasília, 1978.
[4] Duhem, Pierre. A Teoria Física: seu objeto e sua estrutura. Editora Uerj, 2014.

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