Popper é conhecido por
ter proposto a falsificabilidade como critério de demarcação entre
ciência e não-ciência. Assim, uma teoria com pretensão de
cientificidade deve em princípio ser falseável ou testável. Uma
teoria é falseável se ela faz proibições, isto é, se ela afirma
que determinados eventos não vão ocorrer. Caso ocorram, a teoria é
falseada. Na verdade, a falsificação sozinha não é suficiente
para separar ciência de não-ciência, como reconhece o próprio Popper. Ela é apenas um critério de
demarcação entre sistemas empíricos e não-empíricos. Nada
impede que um grupo de cientistas mantenha na prática uma
sistema empírico imune ao falseamento, muito embora ele seja, em
princípio, falseável. Por exemplo, se esse grupo de cientistas
rejeita sistematicamente os relatos da ocorrência de eventos que são
proibidos pela teoria, ele age de modo não-crítico e não-científico. Assim, para caracterizar a demarcação
adequadamente, Popper se vale também de regras metodológicas,
regras que prescrevem como o cientista deve se comportar em relação
a um sistema empírico. Entre as regras metodológicas mais gerais
está a de que o cientista deve evitar estratégias que acabem por
imunizar um sistema teórico da refutação. Por exemplo, o cientista
deve evitar a estratégia de rejeitar sistematicamente relatos da
ocorrência de eventos que são proibidos pela teoria. A
falsificabilidade e as regras metodológicas, em conjunto, demarcaram
ciência de não-ciência.
Embora a maior parte da
filosofia da ciência de Popper tome como alvo de suas análises a
ciência natural, Popper pretende que elas se apliquem igualmente às
ciências humanas. O falsificacionismo não seria menos necessário
nas ciências humanas para demarcar sistemas empíricos de sistemas
não empíricos e as regras metodológicas igualmente não seriam menos necessárias para prescrever a conduta adequada dos cientistas
sociais. Neste breve comentário, quero apenas chamar a atenção
para a discussão na qual Popper se envolveu em torno do Princípio
da Racionalidade. Na Logica das Ciências Sociais,
Popper propõe, a partir da análise da lógica da Economia, que o
método de investigação que ele identifica nessa ciência, e que
ele chama de “lógica situacional”, poder ser aplicado a todas as
ciências humanas para a explicação da ação humana.
Grosseiramente, esse método envolve a modelagem da situação em que
o agente se encontra, identificando o objetivo do agente e os
conhecimentos que ele tem a sua disposição. Essa modelagem, quando
é, nos termos de Popper, “animada” pelo Princípio da
Racionalidade, formando assim um sistema empírico, nos permite
prever a ação apropriada para o agente na situação em que ele se
encontra. Se o agente falha em agir conforme o previsto, o sistema
empírico que serviu de base para a previsão é falseado.
Chamou muita atenção
nessa discussão de Popper acerca das ciências sociais a sua
alegação de que, na revisão de sistemas empíricos que seguem o
método da lógica situacional, o Princípio da Racionalidade é
aproximadamente verdadeiro e que ele deve ser preservado. Essa
alegação, em princípio, parece ir de encontro ao falsificacionismo
e à atitude crítica que Popper defende, e ele foi muito criticado
por isso. Tentarei esboçar uma resposta a essa crítica.
Antes de mais nada,
parece-me que precisamos ter um pouco mais claro o Princípio da
Racionalidade. Em um primeira formulação, Popper diz:
os agentes sempre agem de maneira apropriada à situação em que se encontram” (“O Princípio da Racionalidade [PR], 352).
Em seguida, ele
caracteriza alguns elementos da situação:
Neste ponto, devemos lembrar que a situação, tal como eu uso esse termo, já contém as metas pertinentes e os conhecimentos disponíveis pertinentes, especialmente sobre os meios possíveis para alcançar essas metas (PR, 351).
Se uma ação
apropriada a uma situação toma como padrão o conhecimento
científico disponível para atingir a meta que caracteriza essa
situação, então qualquer indivíduo que, por falta de
conhecimento, age diferentemente do que se esperaria se tivesse se
pautado no conhecimento científico disponível realiza uma ação
inapropriada. Nesse caso, teríamos muitas violações do princípio da
racionalidade e seria mesmo difícil sustentar que ele é mesmo
aproximadamente verdadeiro.
Mais adiante, Popper
reformula o princípio:
compreender seus atos significa ver a adequação deles segundo sua visão – loucamente equivocada - da situação problemática (PR, 355),
o que poderíamos reformular afirmando: “os agentes
sempre agem de maneira apropriada à situação em que se encontram
tal como eles a veem”. A ação apropriada
toma como padrão o conhecimento que o indivíduo tem ou supõe ter para atingir a
meta que caracteriza a situação em que ele se encontra. Assim,
ainda que o sujeito tenha crenças bastante equivocadas acerca de
como atingir essa meta, suas ações, na medida em que se pautam
nessas crenças, serão apropriadas. Essa leitura do princípio da
racionalidade miniminiza as violações. Torna o principio trivial?
Aparentemente, não, Popper dá um exemplo de violação:
Basta observarmos um motorista agitado, que tenta desesperadamente estacionar o carro quando não há vagas disponíveis, para ver que nem sempre agimos de acordo com o princípio da racionalidade (PR, 352).
A situação envolve a
meta de estacionar o carro e o conhecimento do indivíduo de que não
há vagas disponíveis. Ainda assim, o sujeito tenta desesperadamente
estacionar o carro. Sua ação não é apropriada à situação em
que ele se encontra tal como ele a vê.
Pode-se dizer que o
princípio da racionalidade foi contundentemente violado e, portanto,
conclusivamente falseado? Antes de responder à questão, devemos
lembrar que, para Popper, enunciados sintéticos não têm conteúdo
empírico isoladamente. Em sentido estrito, é o sistema teórico que
tem conteúdo empírico e, portanto, apenas ele, e não suas partes,
é falseável (LPC, 42, 88-91). Por exemplo, um enunciado universal
isoladamente não tem conteúdo empírico, nem é, em sentido
estrito, falseável, pois ele sozinho não implica enunciados
singulares. A este respeito, Popper se distancia tanto de empiristas
lógicos quanto de convencionalistas. Os primeiros alegam que
enunciados sintéticos universais são verificáveis e, portanto,
possuem um cabedal próprio de experiências que constituem o seu
conteúdo. Os segundos sustentam que enunciados universais são
verdadeiros a priori e que, qualquer que seja a explicação para a
seu caráter a priori, tais enunciados não são revisáveis diante
de experiências recalcitrantes.
Voltando à questão, o
que foi refutado no exemplo do sujeito que tenta agitadamente
estacionar o carro não foi o princípio da racionalidade
isoladamente, mas o sistema teórico que envolve esse princípio e o
modelo da situação em que o agente se encontra. O sistema teórico
previa que o agente, vendo que não há vagas e querendo estacionar o
carro, não tentaria agitadamente estacionar o carro. Diante da falha
preditiva, devemos decidir qual parcela do sistema teórico deve ser
responsabilizada pela falha preditiva e, portanto, revisada. Sobre
esse ponto, Popper não deixa dúvidas:
Defendo que uma política metodológica sensata é a que decide não responsabilizar o princípio da racionalidade e sim o resto da teoria, ou seja, o modelo (PR, 353).
Críticos de Popper
acusaram que essa política metodológica esconde o comprometimento
com o princípio da racionalidade como a priori. O que justificaria
essa política de sempre preferir revisar o modelo a não ser o
fato de que o princípio da racionalidade é tomado como verdadeiro a
priori? Popper está ciente da acusação. Ele reconhece que
parece que tratamos o princípio da racionalidade como se ele fosse um princípio lógico ou metafísico isento de refutação: como não refutável ou como válido a priori. Mas essa aparência é enganosa (PR, 353).
A questão é delicada
para Popper. Dissemos acima que o princípio de falsificação
sozinho não é suficiente para demarcar ciência de não-ciência. O problema da demarcação só é resolvido pela adoção de regras
metodológicas, regras que regulam a atitude do cientista em relação
a um sistema teórico. Popper poderia ser acusado de estar adotando uma postura
em relação ao princípio de racionalidade que é contrária as suas
regras metodológicas mais gerais e que são essenciais para a
demarcação da ciência. Como ele não titubeia em alegar que quem
fere essas regras deixa de jogar o jogo da ciência, ele poderia ser
acusado de ter deixado de jogar o jogo da ciência ao defender a
política metodológica de preservar o princípio de racionalidade.
Essa crítica, no
entanto, não é justa. Em primeiro lugar, Popper não está
protegendo os sistemas teóricos das ciências humanas de refutação.
A previsão frustrada de uma ação demanda a revisão do sistema
teórico que a implica. A regra metodológica que sugere preservar o
princípio de racionalidade não é uma regra que imuniza o sistema
teórico, mas uma regra que sugere onde devemos olhar para procurar
falhas responsáveis pela previsão falsa. Assim, Popper não está
infringindo as regras metodológicas mais gerais que governam a
atitude crítica do cientista em relação ao sistema teórico. O
problema da ambiguidade da falsificação, isto é, o problema de
saber o que revisar quando um sistema teórico faz predições
falsas, foi claramente identificado por Duhem (TF, p. 225-6), e
Popper está dando uma resposta para ele ao menos no campo das
ciências humanas que empregam o método da lógica situacional
através da regra metodologia que recomenda preservar o Princípio da
Racionalidade. Em segundo lugar, a justificativa para essa regra não
reside no comprometimento com o princípio da racionalidade como
válido a priori, como se Popper estivesse adotando uma estratégia
convencionalista, mas no fato de que não temos, até o momento, (i)
nenhuma outra maneira de testar o princípio da racionalidade a não
ser associando-o aos modelos situacionais, (ii) nem qualquer outro
princípio que pudesse compor um sistema teórico alternativo que
fornecesse um poder explicativo igual ou superior ao da lógica
situacional. Enquanto (i) e (ii) prevalecerem, a regra metodológica
que recomenda preservar o princípio da racionalidade é de fato
sensata.
[1] Popper, K. “O
Princípio da Racionalidade”. In: Miller, David (org.). Popper:
Textos Escolhidos. Contraponto, 2010, p. 349-358.
[2] Popper, K. A
Lógica da Pesquisa Científica. Editora Cultrix, 1993.
[3] Popper, K. Lógica
das Ciências Sociais. Editora Universidade de Brasília, 1978.
[4] Duhem, Pierre. A
Teoria Física: seu objeto e sua estrutura. Editora Uerj, 2014.
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