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O que significa dizer 'eu creio na razão'? Por analogia à frase 'eu creio eu Deus', quer dizer que a pessoa que a enuncia acredita na existência da razão. Neste caso, supõe-se que a razão seja alguma coisa. Mas não me parece que seja isso que se tenha em mente ao enunciar 'eu creio na razão'. Este enunciado seria melhor parafraseado por 'eu confio na razão', ou, para detalhar um pouco mais, 'eu confio na razão como meio para solucionar problemas'. Aqui a razão é mais um meio, um processo e menos um objeto, o que nos gera de imediato dois tipos de problema: i) que tipo de processo a razão encerra e ii) como podemos saber que a razão é um processo confiável para solucionar problemas? Ambas as perguntas podem ser respondidas de várias maneiras e a segunda só pode ser enfrentada se pressupormos uma resposta para a primeira. Uma solução comum para a primeira é identificar o referido processo com o processo de raciocinar, de inferir, e dizer que ele é tão ou mais racional quanto mais se ajusta aos cânones da lógica. Assim, se alguém chega à solução de um problema por um caminho que não conseguimos mapear em passos lógicos, então diremos, de acordo com esta proposta, que a solução obtida não é racional. A distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação é aqui útil. Uma pessoa não precisa chegar por passos lógicos a uma solução para que ela seja racional, ou seja, não importa, para a racionalidade da solução, o contexto da descoberta; basta que seja possível fazer essa reconstrução, ou seja, basta que seja possível justificá-la. Se não for, então a solução não é racional. Um dos problemas dessa solução é que, para ela funcionar, devemos supor que os cânones da lógica são fixos, de outro modo, em momentos diferentes, a mesma solução poderia ser considerada racional e irracional. No entanto, essa solução foi consagrada justamente por se pensar que os cânones da lógica eram fixos. E, de fato, não mudaram de Aristóteles até Kant. O iluminismo não foi nada acidental. Mas as coisas mudaram no século XX e com o surgimento das lógicas não-clássicas, lógicas fuzzy e paraconsistentes, deixamos de ter um limite fixo para quais inferências são válidas e inválidas. Neste cenário, já não faz mais sentido dizer que uma solução é racional somente se for possível mapear em passos lógicos um caminho até ela, pois, mesmo que não seja possível fazer isso hoje, talvez o seja amanhã, com novas lógicas e regras de inferência. Vejamos agora a segunda questão. Mesmo supondo correta a solução discutida para a primeira pergunta, o que não é o caso, o veredito para a segunda questão também não parece nada promissor. A dificuldade da segunda questão é que não parece ser possível mostrar que a razão é confiável se já não confiarmos nela. O tropo do ciclo vicioso de Agrippa nos ameaça neste ponto. Repare. A pergunta 'como podemos saber que a razão é um processo confiável para solucionar problemas?' é um problema, que demanda uma solução. Se eu encontro uma solução para ela, solução esta que pretendo que seja racional, então já estarei confiando no processo de raciocínio como meio para encontrar soluções antes mesmo de provar que ele é confiável para este fim. Poder-se-ia argumentar que, neste caso, o ciclo não é vicioso, mas virtuoso, que, ao obter tal prova, minha confiança prévia estará justificada e, por isso, poderá ser ainda mais forte. Analogamente, a confiança em um amigo aumenta quando ele cumpre uma promessa feita. Contudo, embora a confiança possa aumentar com argumentos e provas, a verdade é que originalmente ela já existia e era e continuará a ser sustentada majoritariamente por um ato de fé, por uma confiança original que não demanda explicação ou que é mesmo inexplicável. Não há "prova" mais forte para a confiabilidade da razão do que o seu próprio uso.

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