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Reinventar a roda pode não ser muito construtivo e interessante no mundo empírico, pois isso implica em desperdiçar recursos materiais e humanos. Mas no mundo das idéias faz todo o sentido. Em primeiro lugar, porque uma idéia sempre vem em um invólucro. Raramente você vai reinventar a mesma idéia usando o mesmo invólucro. Invólucros são pessoais, ainda que objetivos e inteligíveis. No entanto, algumas pessoas assimilam melhor algumas idéias com certos invólucros do que com outros. Logo, quanto mais invólucros uma idéia tiver, tanto mais acessível ela será. Em segundo lugar, porque reinventar a idéia dá àquele que a reinventa uma domínio maior sobre a "tecnologia" da idéia do que aquele que simplesmente lê a idéia em algum lugar. Quem lê recebe a idéia passivamente. Quem pensa a recebe ativamente. É a diferença entre achar que sabe andar de bicicleta por observar alguém andando e realmente saber andar por ter andado. É preciso viver uma idéia para poder perceber bem todos os seus desdobramentos e entender a sua importância. Raramente se obtém isso lendo. Na verdade, ler demais embrutece e atrofia o pensamento, pois você se acostuma a pensar pelos outros ao invés de pensar por si. Cite menos e pense mais.

Comentários

Muito bom, muito bom mesmo. Esses dias eu pensava sobre esse assunto do "pensar" pelos outros, que afinal é o ofício de ponta dos professores de filosofia da atualidade. Sabe, fiquei pensando que é como se eles dissessem: "vejam, meu cérebro não tem nada de bom, ninharias, não vale a pena, então eu me aproprio, por exemplo, do cérebro de Heidegger, eu uso a linguagem dele, eu o cito mas sem dizer que o estou citando para o interlocutor pensar que a idéia saiu naquele mesmo instante do meu cérebro, eu me aproprio dos raciocínios e de tudo que pertence a Heidegger a tal ponto que com o tempo as pessoas pensarão que o cérebro genial dele não é dele, mas meu..." concordo contigo, se a Filosofia passasse pelo que a pessoa realmente é, sente, vive, pensa, não-vive, não-pensa, etc e tal, os prof de filosofia talvez pudessem ser grandes filósofos e então eles diriam, em contrapartida da primeira fala-"hipotética": "vejam, eu li muita Filosofia, conheci muitos livros geniais, mas eu prefiro ensinar a partir do meu próprio pensamento porque ainda que não seja genial, ao menos é mais verdadeiro comigo, mais justo com vocês e com o mundo, falo a partir de um cérebro que está vivo, ou seja, do meu, em contraponto com aqueles que só usam cérebros mortos como se fossem os seus próprios."
... soa meio hilário, não te parece?
... desculpe a repetição da palavra "cérebro", é que não achei que seria adequado ir usando termos como "pensamento" & outras derivações.
beijo beijo
* se quiser pode excluir esse comentário do teu blog.
Eros disse…
Jamais excluiria um comentário teu, Sandra, ainda mais um assim tão bem pensando. Concordo contigo que aqui no Brasil há mesmo essa tendência a fazer uma simbiose entre o professor e o autor de sua preferência. Inclusive esses professores se sentem pessoalmente atacados e ofendidos quando você critica a idéia do seu filosofo preferido, tamanha a assimilação do outro em si. Mas acho que já foi pior e que o cenário está melhorando. Tenhamos um pouco de fé.
... risos... "tenhamos um pouco de fé", só você mesmo, Eros, para me dizer isso. :) Adorável.

& você toca num ponto que é a "quintessência", a "simbiose" muito provavelmente é a responsável pelo fato de se sentirem tão "ofendidos" com críticas ao cérebro_morto pilhado até as últimas conseqüências; mas que situação hilária, deve ser o preço que eles têm que pagar porque como disse Pessoa, "os deuses vendem quando dão"...quando lembro de algumas coisas eu fico naquele estado de "mas é inacreditável" que seja um curso de filosofia, não pode ser, não era para todo mundo aqui ser ético, pensante, usar argumentos justos? e por aí vai, mas não, é o contrário, como é que pode? Tem uma amiga do RS que diz assim: se eles que conhecem ética em várias línguas são assim o que a gente pode esperar de quem nem sabe o que significa ética no nosso aurélio? Pois então, acho que essa questão do uso de cérebros_mortos_meu_próprio_cérebrotem uma relação direta com a ética e a ética da "simbiose" descrita por você torna-se, é claro, esquizóide.
beijo grande em teu coração, Eros.

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