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[107] Novidade filosófica

A novidade metafórica enriquece a linguagem.‭ ‬Ela traz à tona novos sentidos que podem,‭ ‬então,‭ ‬ser recrutados para o nosso poderio expressivo.‭ 

Comparar a novidade filosófica com a novidade metafórica é parcialmente enganador,‭ como sugeri em [105], ‬pois uma novidade filosófica é a propriedade de um texto ou,‭ ‬em alguns casos,‭ ‬da junção de vários textos,‭ ‬mas não de sentenças isoladas‭; ‬enquanto a novidade metafórica pode e geralmente emerge em uma única sentença ou frase.‭ ‬Mas como um texto é também uma junção de várias sentenças,‭ ‬talvez a originalidade do texto filosófico pudesse ser uma medida da quantidade de novidades metafóricas que ele expressa.‭ 

Essa pode ser uma dimensão da novidade filosófica,‭ ‬que,‭ ‬no entanto,‭ ‬não se distingue da novidade do romance,‭ ‬ou mesmo da novidade científica,‭ ‬pois os textos científicos e os romances também podem expressar inúmeras metáforas novas.‭ ‬Isso não é problemático se for razoável supor que a especificidade filosófica de um texto filosófico se deve a outros fatores que a sua novidade.‭ ‬Sua novidade pode ser do mesmo tipo que a novidade de outros textos e,‭ ‬ainda assim,‭ ‬esses textos têm especificidades distintas.‭ 

Mas o ponto era só dizer que a novidade filosófica se explica em parte pela novidade metafórica,‭ ‬mas não se reduz a ela,‭ ‬assim como a novidade de um texto científico dificilmente se reduz também à novidade metafórica que ele traz à tona.‭ ‬A novidade de um texto científico deve descortinar também um saber empírico ou teórico novo.‭ ‬Algo que antes era apenas suposto é,‭ ‬após o texto,‭ ‬conhecido.‭ ‬A originalidade será ainda maior quanto mais amplo for o conhecimento empírico ou teórico obtido.‭ Há os casos de revoluções também, em que não é necessário trazer um novo conhecimento para a atribuição de novidade/originalidade, mas sim o estabelecimento de um novo campo de possibilidades de pesquisa, sendo este, na verdade, o caso de maior novidade ainda. 

Em‭ ‬A arte do romance‭,‭ ‬Kundera desenvolve a tese de que o romance desfruta de valor cognitivo,‭ ‬ele nos fornece conhecimento existencial.‭ ‬Pode-se dizer que o espaço‭ "‬lógico‭" ‬do romance é determinado pelas possibilidades fenomênicas da nossa existência.‭ ‬Assim,‭ ‬Kafka escreve um romance absurdamente original,‭ O Processo‭‬,‭ ‬por descortinar-nos uma forma de existência humanamente possível,‭ ‬em todas as suas dimensões fenomênicas.‭ ‬Forma esta que,‭ ‬alguns anos mais tarde,‭ ‬foi,‭ ‬de fato,‭ ‬tornada atual em regimes totalitários.‭ ‬Mas a novidade dessa forma de vida,‭ ‬dessa possibilidade de existência,‭ ‬com todos os seus desdobramentos fenomênicos,‭ ‬já estava presente no romance de Kafka e foi-nos, assim, desvelado por ele.‭ 

Nos três casos discutidos,‭ ‬a novidade metafórica,‭ ‬a novidade científica e a novidade romancista,‭ ‬podemos enxergar um processo de desvelamento.‭ ‬A novidade metafórica descortina,‭ ‬para os falantes de uma linguagem,‭ ‬uma possibilidade de sentido que lhes estava velada.‭ ‬A novidade científica descortina um saber empírico ou teórico.‭ ‬E a novidade romancista descortina uma possibilidade existencial,‭ ‬uma forma de vida,‭ ‬com todo o seu colorido fenomênico.‭ 

A novidade só faz sentido,‭ ‬obviamente,‭ ‬para um ser imerso no tempo.‭ ‬Sem a experiência do antes e do depois,‭ ‬não há novidade.‭ ‬O vir a ser de uma novidade entrelaça,‭ ‬para um ser,‭ ‬dois instantes distintos da sua experiência.‭ Seu horizonte de acesso às possibilidades de um domínio ôntico é reconfigurado, alargado ou ajustado, em qualquer caso, um novo ser lhe é dado na sua experiência, seja um sentido, um conhecimento, ou uma forma de existência etc.

‎Mas e quanto à filosofia? Que terreno ôntico ela explora? Que tipo de horizonte de possibilidades a novidade filosófica explora e desvela em nossa experiência? Em outras palavras, a novidade filosófica tem alguma especificidade, desvelando, assim, um tipo autêntico de realidade, ou ela é uma glossa de outros tipos de novidades, podendo, assim, ser resumida a elas? Esgoto toda a novidade filosófica quando a traduzo em novidades de sentido, de conhecimentos ou de formas de vida?

‎Colocando ainda de outra forma: será que o ajuste, o alargamento ou a reconfiguração de um horizonte de possibilidades de um terreno ôntico podem ser explicados por mudanças na linguagem que usamos para descrever esse horizonte e, assim, a novidade de sentido capta toda a diferença que um tipo de horizonte de possibilidades expressa no tempo, ou a estrutura de um horizonte é de tal forma entrelaçada e unida à experiência, servindo de base a todas as formas de existir e pensar, não sendo, então, redutível à realidade dos sentidos? É difícil, para mim, ver como a novidade desvelada pelo O Processo, em todo o seu colorido fenomênico, possa ser completamente reduzida a uma soma dos sentidos que ela articula e traz à tona. Mas isso pode ser apenas uma dificuldade intuitiva minha. 

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