Pular para o conteúdo principal

[117] Ceticismo e o cético

1. A resposta contextualista. Trata-se de uma resposta que dá razão tanto ao cético quanto ao homem ordinário. O homem ordinário está certo ao exigir pouco da justificação e do conhecimento, pois os contextos em que ele se justifica e conhece são contextos em que a atribuição de justificação e conhecimento não demanda a eliminação da possibilidade de erro. Em outras palavras, é como se o contextualista estivesse dizendo que há distintos usos de 'justificar' e 'conhecer'. Teríamos, então, se usássemos termos distintos, o 'justificar_cético' e o 'justificar_ordinário'. O critério para a aplicação do 'justificar_cético' envolve a eliminação da possibilidade de erro. O critério para a aplicação do 'justificar_ordinário' é, curiosamente, até mais complicado, envolve, para cada situação ordinária, eliminar as possibilidades de erro relevantes para aquela situação. Apesar de o critério de 'jusitifcar_ordinário' ser mais complexo, por sorte, é algo que facilmente, sem muita reflexão, aprendemos e incorporamos pela prática. 


2. Onde eu quero chegar? O contextualismo parece-me esvaziar um pouco o aspecto normativo do justificar e do conhecer, concentrando-se apenas em descrever práticas distintas envolvendo o uso dos termos 'justificar' e 'conhecer'. Desde que o cético use o 'justificar_cético' em contextos céticos e o homem ordinário use o 'justificar_ordinário' em contextos ordinários, estão todos corretos e não há qualquer disputa ou oposição. Se algum deles se equivoca, usando um conceito no contexto errado, lhe chamamos a atenção. Aqui sim, temos uma dimensão normativa, mas não é a normatividade do justificar e do saber, é a normatividade lingüística: usar a palavra certa na situação certa. 

3. De onde vem esta distinção entre contexto cético e contexto ordinário? O que a justifica? 

4. Há alguma normatividade própria do justificar e do conhecer que não seja completamente redutível à normatividade do uso de 'justificar' e do 'conhecer'? Se há, esta normatividade não nos poderia dar algum indício sobre se há tal coisa como um contexto cético? 

5. Vejamos 4 situações extraídas do mais que inspirador Da Certeza, do Wittgenstein. 

5.1. Tipo 1: o louco.

[217. Se alguém supusesse que todos os cálculos eram incertos e que não podíamos confiar em nenhum (justificando-se dizendo que os erros são sempre possíveis), talvez disséssemos que era doido]. 

5.2. Tipo 2: o demente.

[155. Se Moore proferisse proposições contrárias às que ele declara certas, não deixaríamos apenas de partilhar a sua opinião: considerá-lo-íamos demente]. 

5.3. Tipo 3: o filósofo.

[467. Estou sentado com um filósofo no jardim; ele diz repetidamente "Eu sei que aquilo é uma árvore", apontando para uma árvore próxima de nós. Outra pessoa chega e ouvi isto e eu digo-lhe: "este tipo não é doido". Estamos a filosofar].

5.4. Tipo 4: o homem ordinário. 

[220. O Homem sensato não tem certas dúvidas]. 

6. Duvidar exagerada e arbitrariamente é sinal de loucura ou demência. Wittgenstein, no caso do filósofo, parece abrir uma exceção, como se a nossa sociedade, por demais habituada com as suas extravagâncias inofensivas, lhe poupasse a atribuição de loucura. O fato de serem inofensivas é capital. A distinção entre dúvida teórica e prática é fundamental para a sobrevivência do filósofo no meio social. Sem ela, ele seria tratado como sujeito do tipo 1 ou do tipo 2. Ao fazer estas considerações, não parece que a normatividade do justificar e do conhecer tem absolutamente tudo a ver com a normatividade do que é racional e do que não é? 

7. Então este é o meu ponto, ainda em estágio bem confuso, reconheço: o que baliza a concepção fraca de justificação, a justificação prima facie são considerações sobre o que é racional fazer, o que é sensato. Não se refuta o cético jogando o seu jogo, mas apontando a sua irracionalidade. Epa, isto soou muito forte e dogmático. Na verdade, não sei o que dizer, não sei se a melhor resposta é a do aforisma 467, isto é, o cético não é louco, nem irracional, é apenas alguém peculiar, tem a mente de um cético e, portanto, merece um tratamento diferenciado. Com uma certa licença poética, eu diria que o cético é um louco são; ele é suficientemente são parar perceber a sua loucura e dar vazão a ela apenas no confinamento de um gabinete ou na presença dos seus pares, outros loucos sãos, jamais, no entanto, na prática, assegurando-se, assim, de não suscitar no resto da sociedade a dúvida sobre a sua sobriedade, mas ele é minimamente louco, pois mantém dúvidas e suspeitas que nenhum homem sensato mantém. 

8. É óbvio que eu estou errado, é óbvio que o cético não é louco ou irracional. Mas o único jeito do cético estar errado é sendo irracional. Mas ainda estou muito longe de conseguir apresentar isso de uma maneira clara e elegante. Estou muito longe de provar a verdade do condicional [Se o cético é irracional, então ele está errado em suas considerações epistêmicas] e a verdade do antecedente, [o cético é irracional], para, então, refutá-lo com o auxílio do modus ponens.

9. Por que é tão difícil provar que o cético é irracional? Quando entramos no terreno das teorias da racionalidade ( e este é um terreno que conheço pouco e, portanto, o que eu vou falar agora é ainda mais confuso), o cético tem a seu favor uma perene e robusta tradição filosófica que formula teorias do que é ser racional tendo por base agentes ideais em situações e condições ideais. Dificilmente o cético soará irracional quando o seu comportamento for iluminado por estas teorias. Há outras teorias mais recentes, a do Pollock, por exemplo, e a de um outro cara, Christopher Cherniak, que, aliás, tem um livro muito, muito interessante sobre o assunto, "Minimal Rationality", em que se tenta discutir o que é ser racional para agentes concretos, com recursos limitados em situações concretas. Iluminado por estas teorias, há chances bem maiores de o  cético ser descrito como irracional. É claro que a esta altura o cético já está rindo de mim, pois ele me jogará de volta ao plano epistêmico e me dirá que não tenho razões para saber qual é a teoria correta sobre a racionalidade. Sendo assim, não tenho como concluir pela sua irracionalidade e muito menos bloquear as suas suspeitas epistêmicas. Na verdade, o cético transformará o meu modus ponens no seu modus tolens. Touché!

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

[102] Relativismo e Irracionalismo

Irracionalismo é a tese de que os nossos julgamentos são arbitrários. O irracionalismo pode aplicar-se apenas a um setor do conhecimento humano. Por exemplo, podemos ser irracionalistas morais. Assim, julgamentos morais sobre como agir, o que fazer, o que é certo e errado são arbitrários, não temos uma razão para eles, eles não se fundam em nada que possa legitimá-los diante dos outros. Podem ser fomentados por nossas emoções ou desejos, mas nada disso tira a sua arbitrariedade diante da razão. Chegaríamos ao irracionalismo moral se tivéssemos razões para pensar que não há nada na razão que pudesse amparar julgamentos morais. Isto é, dado um dilema moral do tipo "devo fazer X ou ~X", não há ao que apelar racionalmente para decidir a questão. Donde se seque que, qualquer decisão que você tomar, seja a favor de X, seja de ~X, será arbitrária. Como poderia a razão ser tão indiferente à moralidade? Primeiro vejamos o que conferiria autoridade racional a um julgamento moral, pois

[197] Breve introdução à tese da mente estendida

A tese da mente estendida é distinta e não se confunde com o externismo acerca dos conteúdos mentais. Nesta breve introdução, apresento em linhas gerais o externismo acerca dos conteúdos mentais para, em seguida, contrastá-lo com a tese da mente estendida. Identifico e apresento, então, os principais comprometimentos da tese da mente estendida. A tese do externismo acerca dos conteúdos mentais afirma que as relações causais que temos com o ambiente determinam, de alguma forma, o conteúdo dos nossos estados mentais, ou seja, aquilo que percebemos, ou aquilo acerca do qual pensamos algo, ou aquilo que desejamos etc. depende dos objetos com os quais interagimos causalmente. Um argumento comum em favor dessa tese é inspirado no argumento clássico de Putnam para o externismo semântico[1]. Imaginemos um planeta muito semelhante ao nosso, praticamente gêmeo nas aparências. Ele é abundante em um líquido muito semelhante à água, povoado com seres inteligentes como nós e que usam esse lí

[200] A distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação, segundo Reichenbach

A distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação é normalmente apresentada como marcando a diferença entre, por um lado, os processos de pensamento, teste e experimentação que de fato ocorreram em um laboratório ou em um ambiente de pesquisa e que levaram ou contribuíram para alguma descoberta científica e, de outro, os processos de justificação e validação dessa descoberta. Haveria, portanto, uma clara diferença entre descrever como cientistas chegaram a fazer certas alegações científicas, o que seria uma tarefa para as ciências empíricas, como a sociologia, a psicologia e a antropologia da ciência, e justificar essas alegações, o que seria uma tarefa para a epistemologia, uma disciplina normativa e não-empírica. Essa distinção é corriqueira em debates acerca do escopo da filosofia da ciência e teria sido explicitada inicialmente por Reichenbach. Contudo, quando examinamos a maneira como ele circunscreveu as tarefas da epistemologia, notamos que alguns elemento