Pular para o conteúdo principal

[135] Filósofo, filosofia e filosófico

Machado levanta a questão sobre as condições para se ser um filósofo. Negativamente, parece não haver dúvida de que a posse de sabedoria ou de genialidade não são condições necessárias, e nem mesmo suficientes para ser um filósofo. Um físico genial não é também filósofo por conta da sua genialidade. Sendo um termo de profissão, há um certo uso de "filósofo" que se aplica a todos os indivíduos que trabalham no ramo da filosofia. Assim como chamamos de "físicos" aqueles que trabalham com física, que pesquisam sobre física, também chamamos de "filósofos" aqueles que trabalham com filosofia, que pesquisam sobre filosofia.

É como se tivéssemos definido o termo "filósofo" por "qualquer indivíduo que faz filosofia". Claro, então, que isto pressupõe que tenhamos uma clareza conceitual do que seja filosofia mais expressiva que a clareza do que seja um filósofo. Porém, poderíamos igualmente definir "filosofia" por "atividade que filósofos estão dispostos a qualificar como filosófica". A despeito da circularidade, não há dúvida de que esta segunda definição é mais complexa que a primeira e diria também que mais vaga. Quais filósofos? E o que dizer quando filósofos entram em desacordo sobre se uma determinada atividade é ou não filosófica? A definição peca também por ser epistêmica, por basear-se naquilo que filósofos pensam ser a filosofia e não no que ela de fato é. Uma definição mais adequada de filosofia deveria tanto quanto possível não repousar sobre o que filósofos pensam sobre a filosofia. A bem da verdade, esta já é uma forma de esvaziar a questão. Não há problema algum em evocar o que os filósofos sabem sobre a filosofia em uma definição do que seja a filosofia. Ao dizer que a definição meramente evoca o que eles pensam sobre a filosofia, já assumimos que eles não sabem nada sobre o que seja filosofia, o que é no mínimo estranho. Qualquer posição que sustente que um filósofo não sabe absolutamente nada sobre o que seja a filosofia é, no mínimo, contra-intuitiva e forte candidata à falsidade.

Há, no entanto, desacordo entre filósofos sobre o que seja filosófico e, portanto, sobre o que seja filosofia. Mas que tipo de desacordo é este? Físicos também não estão em acordo sobre quais teorias físicas são verdadeiras e, nem por isso, vamos dizer que eles não sabem ou não conhecem aquilo que a física compreende. A diferença é que físicos compartilham um conjunto de problemas e questões que dão o escopo do que seja a física. Mas há mesmo uma diferença substancial? Filósofos também não compartilham um conjunto de problemas e questões que dão o escopo do que seja a filosofia? Talvez o modo como filósofos compartilhem estas questões seja mais difuso que o modo como fazem os físicos, mas isto não significa que a filosofia não esteja relativamente bem delimitada por estes problemas e questões, significa apenas que ela está menos limitada por elas. Filósofos A, B e C compartilham os problemas q, r e z e os filósofos E, F e F compartilham os problemas q, r e t e assim por diante. O fato de haver interseções entre grupos de filósofos e não necessariamente entre todos já é suficiente para dar corpo à filosofia. Assim, a diferença entre física e filosofia seria meramente de grau, encontramos mais interseções entre grupos de físicos que de filósofos.

A dúvida persiste: entre os problemas e questões que filósofos compartilham, como eles distinguem aqueles que são constitutivos da filosofia daqueles que não são? Mas o mesmo problema se aplica aos físicos: entre os problemas que os físicos compartilham, como eles distinguem aqueles que são constitutivos da física daqueles que são, por exemplo, constitutivos da química? Filósofos já têm de saber de antemão o que é a filosofia e filosófico para, então, selecionar os problemas que constituem e definem a filosofia? Mas isto só é efetivamente um problema se não nos atentamos para a dimensão dinâmica ou retroalimentadora do saber. A partir do que S sabe sobre a filosofia, ele qualifica certos problemas como filosóficos. Ao fazê-lo, ele amplia o que sabe sobre a filosofia, pois agora, por analogia e, na verdade, por quaisquer outras formas de raciocínio comparativo, ele tem uma base mais ampla em contraste com a qual julgar se um novo problema é filosófico ou não. E, assim, chegamos ao resultado não-paradoxal e não-circular-vicioso de que quanto mais um filósofo lida com a filosofia tanto mais ele sabe o que é filosófico. E o mesmo vale para o físico, o químico etc.

Comentários

Postei um link para essa postagem lá no meu blog.

Postagens mais visitadas deste blog

[102] Relativismo e Irracionalismo

Irracionalismo é a tese de que os nossos julgamentos são arbitrários. O irracionalismo pode aplicar-se apenas a um setor do conhecimento humano. Por exemplo, podemos ser irracionalistas morais. Assim, julgamentos morais sobre como agir, o que fazer, o que é certo e errado são arbitrários, não temos uma razão para eles, eles não se fundam em nada que possa legitimá-los diante dos outros. Podem ser fomentados por nossas emoções ou desejos, mas nada disso tira a sua arbitrariedade diante da razão. Chegaríamos ao irracionalismo moral se tivéssemos razões para pensar que não há nada na razão que pudesse amparar julgamentos morais. Isto é, dado um dilema moral do tipo "devo fazer X ou ~X", não há ao que apelar racionalmente para decidir a questão. Donde se seque que, qualquer decisão que você tomar, seja a favor de X, seja de ~X, será arbitrária. Como poderia a razão ser tão indiferente à moralidade? Primeiro vejamos o que conferiria autoridade racional a um julgamento moral, pois ...

[200] A distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação, segundo Reichenbach

A distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação é normalmente apresentada como marcando a diferença entre, por um lado, os processos de pensamento, teste e experimentação que de fato ocorreram em um laboratório ou em um ambiente de pesquisa e que levaram ou contribuíram para alguma descoberta científica e, de outro, os processos de justificação e validação dessa descoberta. Haveria, portanto, uma clara diferença entre descrever como cientistas chegaram a fazer certas alegações científicas, o que seria uma tarefa para as ciências empíricas, como a sociologia, a psicologia e a antropologia da ciência, e justificar essas alegações, o que seria uma tarefa para a epistemologia, uma disciplina normativa e não-empírica. Essa distinção é corriqueira em debates acerca do escopo da filosofia da ciência e teria sido explicitada inicialmente por Reichenbach. Contudo, quando examinamos a maneira como ele circunscreveu as tarefas da epistemologia, notamos que alguns elemento...

[205] Desafios e limitações do ChatGPT

  Ontem tive uma excelente discussão com o Everton Garcia da Costa (UFRGS) e André Dirceu Gerardi (FGV-SP), a convite do NUPERGS, sobre Desafios e Limitações do ChatGPT nas ciências humanas . Agradeço a ambos pela aprendizagem propiciada. Gostaria de fazer duas considerações que não enfatizei o bastante ou esqueci mesmo de fazer. Insisti várias vezes que o ChatGPT é um papagaio estocástico (a expressão não é minha, mas de Emily Bender , professora de linguística computacional) ou um gerador de bobagens. Como expliquei, isso se deve ao fato de que o ChatGPT opera com um modelo amplo de linguagem estatístico. Esse modelo é obtido pelo treinamento em um corpus amplo de textos em que a máquina procurará relações estatísticas entre palavras, expressões ou sentenças. Por exemplo, qual a chance de “inflação” vir acompanhada de “juros” numa mesma sentença? Esse é o tipo de relação que será “codificada” no modelo de linguagem. Quanto maior o corpus, maiores as chances de que esse modelo ...