Abaixo segue-se uma reflexão que tenta apontar a causa psíquica do fanatismo: a carência do absoluto.
E se deus fosse o diabo? Nada mudaria. Assim como nada mudaria se deus existisse. Dostoievsky se questionava, "se deus não existe, então tudo é permitido"? Eis o problema do homem que se deixa corroer completamente pela incerteza e procura fora de si o fundamento para os seus valores. E tem algum fundamento? Valores não são todos iguais, alguns lhe são mais caros que outros. Podemos fundamentar alguns valores em outros mais preciosos. Mas lá no fundo, o que sustenta o seu valor mais querido? Nada. Ele carece tanto de fundamento quanto a sua certeza de que tem uma mão ao olhar para ela. São absolutos? De forma alguma. Rocha dura que nunca fura? Também não. Mas são vigas assim assentadas que só com muita mina para implodir. Ah, mas se é possível implodi-las, eliminá-las, estou no vazio, no escuro. Que me serve de guia? Eis o problema daquele homem novamente: sua carência de certeza é proporcional à incerteza que vivencia. Não é a ausência do absoluto que o faz carente da certeza, é a carência do certo que o faz sentir a ausência do absoluto. O não-carente está relativamente satisfeito com as vigas que tem, até que lhe apareça uma forte, mas bem forte razão para pensar em contrário. Para o carente, até a razão chinfrim lhe deixa insatisfeito com o que tem. O carente quer o absoluto e sente mais do que tudo a sua falta justamente por estar carente, amedrontado, inseguro quanto ao que fazer. Não tem em si a força necessária para andar, por isso a busca fora, no imutável. E, pelo mesmo motivo, ele é o tipo que, se não se engana achando que encontrou o absoluto, conclui que tudo é permitido e arruína a sua vida em um caos completo. Tudo e qualquer coisa lhe é e não é guia ao mesmo tempo. Claro, se não há um absoluto, ou não o encontro, ou, ainda pior, perco a esperança de encontrá-lo quando sinto a sua falta mais do que tudo, vivo por completo o desespero. Desesperado aceito qualquer coisa. O carente que não encontra o absoluto se fere mortalmente a cada instante. Pior ainda é o carente que se engana achando ter encontrado o absoluto. Para ele o sancionado e permitido é muito bem definido. Ele abraça esse absoluto com toda a intensidade da sua carência. A força com que agora o defende é proporcional à carência que sentia. Ele range os dentes a quem se lhe opõe. Ele mata se for preciso, se suspeitar que querem lhe tirar o aconchego do absoluto. No fundo, ele teme o retorno da carência. Esse carente acaba ferindo mais aos outros que a si mesmo. Sua ação é definida e precisa, violentamente precisa, ele jamais se realinha.
E o não-carente? Ah, ele vai seguindo a vida com o bom-senso e a prudência aristotélicas. Ele anda, para e escuta as vozes alheias. Pensa, realinha-se caso ache necessário e continua o ciclo. E para ele, tudo é permitido? Não, mas a sua linha do que é e o que não é permitido também não está traçada para todo o sempre. Ele se permite o retraçado, movido pela sua força interna, não pelo oba-oba do carente que concluiu que tudo é permitido. Para este, não há retraçado, só rabiscos. Assim, a questão de se tudo é ou não permitido, caso não haja um absoluto, não se conclui por uma martelada demonstrativa, ela se fecha pela psicologia. É preciso se conhecer, perceber as suas necessidades e carências.
Comentários
Gostei muito do teu post. Suspeito que o fanatismo, assim como algumas posições filosóficas reducionistas (do tipo: transparência completa ou opacidade completa) resultam de um desconforto com a condição humana, com a ausência de padrões absolutos que acompanha boa parte de nossa vida com conceitos. Indo numa direção diferente da tua, queria acrescentar q essa ânsia pelo absoluto é inerente à nossa condição, é constitutiva do humano. Por isso, me parece salutar sempre desconfiar de nossos princípios. A vida não é quieta, mas gostaríamos que fosse. E esse desejo pode nos levar a fixação por alguma espécie de verdade perfeita e aprisionadora.
Flavio
Concordo contigo que o desconforto com a condição humana nos provoca o desejo de transcendê-la, porém, parece-me que em uns o desconforto é maior que em outros, pelas razões mais diversas, o que faz com que aqueles primeiros desejem mais o absoluto que estes segundos. Como você, acho que a filosofia, ao nos dar consciência da nossa condição, pode nos auxiliar a lidar melhor com este desconforto. Algumas racionalizações podem sim aplacar desejos irrealizáveis.
abraços,
Eros.
Bom texto, mas estranho.....
Vou pela opinião do Flávio para poder tecer meu comentário “a carência quanto ao absoluto é inerente ao homem”. Eu também creio nisso, esta carência parece-me intrínseca ao homem, e se assim o for então o próprio apelo do homem ao absoluto faz parte de sua verdadeira razão, e portanto se compreende naquilo que é a sua própria verdade. Com tal, não pode ter valor menor do que qualquer outra pretensão que a oponha. Afinal, trata-se da verdade. Então não há a menor razão para que o sujeito que pretenda o absoluto se fruste, mesmo por que esta verdade ainda traz em si o fato de que o próprio absoluto é racionalmente injustificável e, ao menos mundanalmente, inalcançável.
O elemento estranho ao texto é a suposta contraposição entre o carente e o não carente. Em algum momento vc diz que o carente “não têm em si a força necessária para andar” em contraposição ao não carente que “se move por sua força interna”. Mas isto só se figura de fato como contraposição se “esta força interna” do não carente não tiver ela mesma nada de externo. Oras, se esta força é de fato exclusivamente interna, prevalecendo sempre sobre elementos externos, então ela é sim alicerce para um posso-querer arbitrário, e portanto, para o não carente, vale com toda a sua força o “tudo é permitido”. O que segue disto é que se ele não se permite a certas coisas é por que existe algo externo que assim dita, isto que se diz reconhecer no íntimo é também, de alguma maneira, externo. Então o não carente, que nega o “tudo é permitido, também não traz em si a força necessária para andar.
De qualquer maneira, eu acredito ser um erro perder de vista o fato de que o próprio homem é posterior ao mundo, então qualquer que seja a sua verdade, é algo que o antecede e que se dá de encontro, esta verdade íntima do homem é a própria verdade do mundo (independentemente do que isto seja).
Abraços......TC