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[147] Ceticismo, sonho, vigília e contexto.

Uma pessoa que esteja sonhando não está em condições de saber se está sonhando ou se está acordado. Somente ao acordar se pode verificar: "eu estava sonhando" ou "as experiências que estava tendo eram experiências de sonho". Um motivo simples para isso é que, em sonho, o indivíduo não está com as suas capacidades cognitivas em pleno funcionamento. Em vigília, sim, pelo menos em princípio. É verdade que, em sonho, pode-se ter a falsa impressão de acordar de um sonho. E é verdade que, no sonho, você poderia falsamente pensar: "eu estava sonhando". O cético gostaria logo de concluir: se posso ter este pensamento tanto sonhando quanto em vigília, então não sei agora se estou a sonhar ou se estou em vigília. Mas esta inferência é inválida. Para torná-la válida, precisamos de uma premissa francamente falsa. Vejamos.

(1) Após acordar, em vigília, posso pensar: "estava sonhando".
(2) Após ter a impressão de acordar, em sonho, posso pensar: "estava
sonhando".
(3) Se posso pensar "estava sonhando", então não sei se realmente
acordei ou se estou tendo a impressão de ter acordado.
(4) Tive a experiência de ter acordado e posso pensar: "estava
sonhando".
Logo, não sei se realmente acordei ou se estou tendo a impressão de ter
acordado. Ou seja, não sei se estou sonhando ou se estuo em vigília.

O argumento acima é válido. Ou melhor, a conclusão se segue de (3)-(4) por modus ponens. Mas ou (3) é gratuita, ou é falsa. Digo ser gratuita no caso de não se seguir de (1)-(2). Mas caso se siga de (1)-(2), então é falsa. (3) ardilosamente subtrai a situação em que me encontro, situação que está marcada tanto em (1) quanto em (2). (3), assim, não parece decorrer nem de (1), nem (2), nem da conjunção de ambas. De (2), eu poderia extrair sim:

(3') Se, em sonho, posso pensar "estava sonhando", então, em sonho, não sei se realmente acordei ou se estou tendo a impressão de ter acordado.

É importante notar que agora a situação não é mais ignorada. Porém, (3') não pode cumprir mais o mesmo papel que (3) no argumento, pois, se adicionamos (3'), temos de adicionar o equivalente a (3') não mais a partir de (2), mas sim agora a partir de (1):

(3'') Se, em vigília, posso pensar "estava sonhando", então, em vigília, não sei se realmente acordei ou se estou tendo a impressão de ter acordado.

(3'') é francamente falso de um modo que (3') não é. Se estou em vigília, então sei distinguir estar acordado de ter a impressão de estar acordado. Minhas faculdades mentais estão funcionando plenamente. Não há, nesta situação, como me enganar a este respeito. Em vigília, eu sei que estou em vigília. Mas se (3'') é falso e (3') verdadeiro, então ou (3) não é equivalente à conjunção de (3'') e (3') e, portanto, deve ser excluída do argumento ou (3) é falsa. Em qualquer caso, o cético perde o seu ponto de apoio.

O cético conclui coisas falsas por assumir ou premissas gratuitas, ou premissas falsas. Em qualquer caso, ele o faz por ignorar as situações nas quais as pessoas podem se encontrar. Mas como pode o cético simplesmente ignorar as situações nas quais as pessoas podem se encontrar? Este movimento do cético não é nada razoável.

Se o cético parte da distinção entre sonho e vigília, isto é, de que há tal coisa como o estado de sonhar e o estado de vigília, então ele não tem como chegar na conclusão de que um sujeito nunca sabe se está a sonhar ou se está em vigília a não ser que, no curso da sua argumentação, ele ignore, sem qualquer razão, estes estados. Se ele não parte desta distinção, então é difícil imaginar o que ele gostaria de concluir.

Novamente, onde está a assimetria? A assimetria está no seguinte: enquanto pode ser verdadeiro que, em sonho, em virtude de não se estar com as capacidades mentais em pleno funcionamento, não somos capazes de distinguir a impressão de estar acordado da experiência de estar acordado, é falso que, em vigília, se dê o mesmo. Não, em vigília, com as faculdades cognitivas em pleno funcionamento, depois de tomar um banho e beber um café, não temos qualquer dúvida quanto a estar em vigília. Nestas circunstâncias, quem levanta a dúvida sobre se está em vigília ou não simplesmente parece não saber o que significa "vigília". A situação é idêntica àquela descrita por Austin em Sentido e Percepção (p. 18): se um indivíduo está diante de uma cadeira, pode tocá-la, sentar-se nela e ainda levanta dúvidas sobre se vê uma cadeira, então podemos dizer que este indivíduo parece não saber o que significa a expressão "ver uma cadeira".

Veja também a postagem abaixo: [146]

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