Vou me dar um minuto de licença filosófica para dar uma martelada nietzscheana em Descartes: só um espírito muito medroso rejeita como falsas mesmo as opiniões mais prováveis. O objetivo de Descartes é muito mais apropriar-se da verdade com absoluta segurança do que obtê-la. Seu fim não é propriamente a verdade, mas um modo específico de achegar-se a ela. É muito mais provável que se obtenha mais verdades correndo riscos epistêmicos do que o contrário. Descartes, no entanto, tem horror a qualquer risco. Em sua defesa, poder-se-ia dizer que ele não quer propriamente muitas verdades, mas quer absolutamente pelo menos uma. Mas o que se aproxima mais da finalidade de obter a verdade, obter várias ou obtê-la absolutamente? Se há mais de um modo de obter a verdade, não há qualquer razão para que um modo específico sacie mais a finalidade de obter a verdade do que outros. Privilegiar um ou outro modo tem menos a ver com a satisfação da finalidade de obter a verdade e muito mais com a satisfação de uma necessidade subjetiva, a saber, a de sentir-se seguro. E o meu ponto hoje é só esse: a natureza psicológica de um sujeito fornece os parâmetros pelos quais a sua empresa epistemológica será avaliada por ele mesmo. O medroso só sabe quando sabe que sabe. O pecado de Descartes foi não ter tido coragem de errar.
A distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação é normalmente apresentada como marcando a diferença entre, por um lado, os processos de pensamento, teste e experimentação que de fato ocorreram em um laboratório ou em um ambiente de pesquisa e que levaram ou contribuíram para alguma descoberta científica e, de outro, os processos de justificação e validação dessa descoberta. Haveria, portanto, uma clara diferença entre descrever como cientistas chegaram a fazer certas alegações científicas, o que seria uma tarefa para as ciências empíricas, como a sociologia, a psicologia e a antropologia da ciência, e justificar essas alegações, o que seria uma tarefa para a epistemologia, uma disciplina normativa e não-empírica. Essa distinção é corriqueira em debates acerca do escopo da filosofia da ciência e teria sido explicitada inicialmente por Reichenbach. Contudo, quando examinamos a maneira como ele circunscreveu as tarefas da epistemologia, notamos que alguns elemento...
Comentários
Muito legal teu post. Li um artigo do James Conant sobre William James que trata desse ponto que levantaste (está no Cambridge Companion to William James). Faz muito tempo, mas lembro de uma citação do James que dizia que nossas inclinações filosóficas são, em boa medida, determinadas pelo nosso temperamento. Isso me parece verdadeiro e uma boa razão para explicar a grande diferença entre filósofos como Descartes e Hume, por exemplo.
Mudando um pouco de assunto: não entendi bem tua associação entre internalismo e medo. Posso admitir uma justificação a partir de razões (internalista), mas essas razões não precisam ser conclusivas (como Descartes parece exigir). A justificação baseada nas melhores razões (e que não estivesse aberta a objeções aparentes) seria suficiente para considerar nossas crenças como verdadeiras (como um procedimento prático, ainda que elas não fossem efetivamente verdadeiras). Para um certa variante do internalismo isso me parece admissível e, assim, o internalista não seria um medroso, mas alguém capaz de admitir que sabe muitas coisas pois elas encontraram apoio nas melhores evidências (não-conclusivas).
F.
De fato, a associação não pode ser entre medo e internalismo tout court. Descartes, no entanto, tem um internalismo particular, deontológico, orientado sobretudo ao dever de evitar o erro. Não é casual o seu livro "Regras para a Direção do Espírito". A faculdade de julgar é algo que devemos policiar, educar, vigiar e controlar com a mais absoluta determinação. No Discurso, Descartes diz que poucos espíritos conseguem obter esse domínio sobre a faculdade de julgar. E não é de se espantar que assim seja. Sua ética da crença é rigorosa, fervorosa, só alguém motivado por um medo absurdo de errar consegue refrear a precipitação do juízo sobre o que é provável e razoável. Não é curioso que ele use a imagem de um gênio maligno para aterrorizar a nossa vida doxástica?
William James diz que o resultado de uma epistemologia baseada na finalidade de obter a verdade é completamente diferente de uma epistemologia baseada na finalidade de evitar o erro. Estas duas finalidades nem sempre convergem.
E isto fica claro quando você dá o exemplo de um internalismo baseado nas melhores razões. O medo de errar tem uma pequena coação sobre a justificação. O que orienta esta perspectiva é sobretudo a vontade de obter a verdade. Em Descartes, parece-me o oposto.
Um abraço,
Eros.