Aquela aula também não me deixou ileso. Logo que deixei os alunos, ocorreu-me pensar que a inexistência de uma substância pensante ameaçava um direito que sempre me foi muito caro. Se tudo o mais está perdido, se o horizonte de sentido se estreita à nulidade, sempre pensei poder, em última instância, apelar para a minha aniquilação. A minha existência sempre apareceu-me como mais minha do que qualquer outra coisa, muito mais minha inclusive que os meus pensamentos, os quais, tenho de confessar, por mais que brotem em mim, quase sempre têm um ancestral causal bem fora de mim. Já a minha existência estaria ali sempre bem presente a mim, predicando o que quer que eu fosse, estampando-se para mim e dizendo-me: "eu sou tua, só tua". Não que ela fosse essencial ao meu ser, meinongianos que o digam, mas certamente necessitada pelo meu querer ser, pela minha vontade de estar aí. De onde mais poderia provir a razão mínima de ser da minha existência senão desta minha vontade de ser? Não que eu não pudesse adicionar outras razões, mas nenhuma seria tão minha quanto esta, nenhuma outra me faria perceber a minha existência como tão doada a mim quanto esta, nem, por mais contrária que fosse, eu pensava, poder-me-ia retirar essa sensação de posse que eu tinha sobre a minha existência. Eu quero, logo existo. Se não existo, fatalidades à parte, então não mais quis ser.
Mas eis que já não me vejo mais sozinho neste mundo. Não sou uma substância que pensa. Não sei mais se perduro além da justa duração deste pensamento. Essa leve impressão de ser o mesmo de ontem, de ser aquele que pensou minutos atrás a ameaça da inexistência de uma substância pensante para a posse da sua existência não me dizem nada agora. As ligações que me fazem pensar que há um eu substancial perdurando no tempo são fracas o suficiente para minar a confiança de que era exata e absolutamente o mesmo eu em todos os pensamentos de que me recordo. Eu que agora sou, voraz em ser, aproprio-me como minhas todas as impressões que me aparecem. Eu as tomo à força como minhas. Ao tomá-las, contudo, vejo-me forçado a reconhecer a voracidade de outros em ser. Eles tanto quanto eu querem durar neste espaço em que só cabe, a cada vez, um. No espaço presente, venci eu. Apesar da luta, reconheço também que me são próximos. Eles compartilham comigo as minhas impressões, ainda que suprimam algumas e adicione outras e as costurem com novas linhas. Se me vencem, eu me pulverizo, mas não o pó de que sou feito. Um eu futuro mais inclinado à arqueologia do Eu poderia a partir do material que encontra em si reconstituir, ainda que com certa dose de imperfeição, a amarra única que dá a impressão do meu eu. Ao historiar-se, ele me encontraria e correia inclusive o risco de trazer-me novamente à tona e ver-se subjugado por mim. Apesar de toda esta luta em ser, luta esta que considero justa, uma vez que eu só sou se eles não são, não posso, no entanto, deixar de reconhecer o direito que eles têm de vir a ser. Quando sou, eu os aniquilo, mas esta não é uma aniquilação absoluta, irreversível. A tragédia da minha duração persiste por todo o meu durar. A qualquer momento, posso ser alijado do presente por um outro eu que venha a ser. Do mesmo modo, se não sou, posso a qualquer momento vir a ser. Situação diversa seria se, aproveitando do contato íntimo que tenho com este corpo enquanto existo, eu o aniquilasse. Este seria o golpe mais baixo de afirmação do meu ser sobre os dos outros. Toda uma constelação de eus perderia o direito de vir a ser. Concluo, então: a minha existência já não me aparece como tão minha quanto antes, pois reconheço esta luta entre eus como justa; reconheço que qualquer outro tem o direito de vir a ser em detrimento do meu próprio ser. Aquele que, em um instante, tiver a maior vontade de ser, será. A existência deste corpo que nos serve de arena, esta sim me pertence ainda menos. Ele é a condição de possibilidade de todos nós, é o meio pelo qual podemos vir a ser. E mesmo que eu perdesse por completo a vontade de ser, não me vejo mais no direito de aproveitar-me desta intimidade com o corpo para lhe dar um fim visando muito mais o meu próprio. Querer me aniquilar através do corpo parece-me interditado agora uma vez que implica em aniquilar toda uma multidão ou, no mínimo, com a possibilidade desta dispersa no tempo. Com tal multiegocídio eu não posso compactuar. Mais uma vez me vejo, então, aderido à vida por forças que não brotam totalmente de mim.
Mas eis que já não me vejo mais sozinho neste mundo. Não sou uma substância que pensa. Não sei mais se perduro além da justa duração deste pensamento. Essa leve impressão de ser o mesmo de ontem, de ser aquele que pensou minutos atrás a ameaça da inexistência de uma substância pensante para a posse da sua existência não me dizem nada agora. As ligações que me fazem pensar que há um eu substancial perdurando no tempo são fracas o suficiente para minar a confiança de que era exata e absolutamente o mesmo eu em todos os pensamentos de que me recordo. Eu que agora sou, voraz em ser, aproprio-me como minhas todas as impressões que me aparecem. Eu as tomo à força como minhas. Ao tomá-las, contudo, vejo-me forçado a reconhecer a voracidade de outros em ser. Eles tanto quanto eu querem durar neste espaço em que só cabe, a cada vez, um. No espaço presente, venci eu. Apesar da luta, reconheço também que me são próximos. Eles compartilham comigo as minhas impressões, ainda que suprimam algumas e adicione outras e as costurem com novas linhas. Se me vencem, eu me pulverizo, mas não o pó de que sou feito. Um eu futuro mais inclinado à arqueologia do Eu poderia a partir do material que encontra em si reconstituir, ainda que com certa dose de imperfeição, a amarra única que dá a impressão do meu eu. Ao historiar-se, ele me encontraria e correia inclusive o risco de trazer-me novamente à tona e ver-se subjugado por mim. Apesar de toda esta luta em ser, luta esta que considero justa, uma vez que eu só sou se eles não são, não posso, no entanto, deixar de reconhecer o direito que eles têm de vir a ser. Quando sou, eu os aniquilo, mas esta não é uma aniquilação absoluta, irreversível. A tragédia da minha duração persiste por todo o meu durar. A qualquer momento, posso ser alijado do presente por um outro eu que venha a ser. Do mesmo modo, se não sou, posso a qualquer momento vir a ser. Situação diversa seria se, aproveitando do contato íntimo que tenho com este corpo enquanto existo, eu o aniquilasse. Este seria o golpe mais baixo de afirmação do meu ser sobre os dos outros. Toda uma constelação de eus perderia o direito de vir a ser. Concluo, então: a minha existência já não me aparece como tão minha quanto antes, pois reconheço esta luta entre eus como justa; reconheço que qualquer outro tem o direito de vir a ser em detrimento do meu próprio ser. Aquele que, em um instante, tiver a maior vontade de ser, será. A existência deste corpo que nos serve de arena, esta sim me pertence ainda menos. Ele é a condição de possibilidade de todos nós, é o meio pelo qual podemos vir a ser. E mesmo que eu perdesse por completo a vontade de ser, não me vejo mais no direito de aproveitar-me desta intimidade com o corpo para lhe dar um fim visando muito mais o meu próprio. Querer me aniquilar através do corpo parece-me interditado agora uma vez que implica em aniquilar toda uma multidão ou, no mínimo, com a possibilidade desta dispersa no tempo. Com tal multiegocídio eu não posso compactuar. Mais uma vez me vejo, então, aderido à vida por forças que não brotam totalmente de mim.
Comentários
Teu texto, que adorei, me lembrou de Fernando Pessoa, que adoro.
Eu não pude deixar de pensar o seguinte: se não fomos levados a esse resultado -- se o suicídio é imoral, então não há um Eu substancial pensante -- por razões mais egoísticas do que propriamente altruísticas. Em outras palavras, por que *um* Eu substancial pensante não poderia concluir, por considerações envolvendo outros Eus substanciais pensantes, que se o suícidio é imoral, então há Eus substanciais pensantes, em particular, um Eu que chega (ou que poderia chegar) a essa conclusão e que, conectado com isso (com o fato de ser um eu que pensa, que quer, etc...),tem projetos?
Eu também não pude deixar de pensar como ficariam aqueles casos em que o suícidio pelo menos *parece* que não é imoral -- p.ex., em que *alguém* ou *algo* é levado a autoaniquilação por razões altruísticas.
Um grande abraço.
Certamente que não. A tese de que só há uma substância pensante "habitando" um corpo e a tese de que esta substância pensante é metafisicamente independente do corpo são distintas. Mas eu só preciso da primeira para fazer o meu contraste. Claro que, se quisermos relaxar na nomenclatura, qualquer sujeito com capacidade introspectiva, ainda que falha, chegará à conclusão de que é uma substância pensante, algo que pensa, ou, no mínimo, que há pensamentos.
Abraços,
Eros.
Acho que tens razão. Enfraquecer muito o Eu, não só enquanto duração no tempo, mas fundamentalmente enquanto entidade única e individuada, pode fazer com que este Eu difuso resultante não se veja motivado a levar em consideração os interesses de outros eus difusos, até porque ele pode se justificar dizendo que estes interesses já estão contemplados pelos seus próprios interesses.
De qualquer modo, basta ao Eu reconhecer a possibilidade de que ele possa cessar sem que o seu corpo cesse para reconhecer que o corpo não lhe pertence exclusivamente. O que já motiva a interdição do suicídio através da aniquilação do corpo.
Além da situação que você imagina, parece-me que há uma outra exceção também: quando o corpo está suficientemente debilitado para permitir uma vida de projetos, a eutanásia e o suicídio estão licenciados. Se nem Eu, nem qualquer outro Eu podem ter realmente uma vida através deste corpo, posso cessar a minha existência através da aniquilação do corpo.
Um abraço,
Eros.