Tomemos inicialmente um domínio bem restrito. Eu e fulano, que vou chamar de Awks, estamos diante de bolas verdes e vermelhas. Awks é daltônico. Quando Awks está diante de uma bola verde, ele diz que ela é verde. Mas quando ele está diante de uma bola vermelha, ele também diz que ela é verde. Ou seja, as duas bolas, para ele, são indistinguíveis quanto à cor. Há algumas situações que eu gostaria de distinguir: (1) Eu saber que Awks é daltônico; (2) Eu não saber que ele é daltônico; (3) Awks saber que é daltônico; e (4) Awks não saber que é daltônico.
Chamemos uma das bolas que está diante de mim e de Awks de 'B' e B é verde. Se eu sei que Awks é daltônico, então faz sentido que eu diga para uma outra pessoa que Awks não sabe se B é verde ou vermelho. Mas o que eu posso dizer com sentido para Awks? Awks está diante de B e diz 'B é verde'. A afirmação de Awks é verdadeira, mas não é conhecimento, uma vez que ele diria o mesmo diante de uma bola vermelha. Falta-lhe a justificação. Mas faz sentido que eu diga para Awks que a sua afirmação não é conhecimento, que ele não sabe o que afirma? Se ele não sabe que é daltônico, não, não faz sentido. Imagine o diálogo:
Awks: Isto, apontando para B, é verde.
Eu: É mesmo verde, mas você não sabe que isto é verde.
A minha afirmação, neste contexto, não faz o menor sentido. Somente com o avanço do diálogo, ao deixar explícito para Awks que ele é incapaz de fazer certa distinção, se forja um contexto em que a minha frase pode ser pronunciado com sentido. Vejamos:
Awks: Não te entendo. Como não sei, se você mesmo acabou de dizer que é verde?
Eu: Isto, apontando para uma bola vermelha, é vermelha.
Awks: Não, é verde.
Eu: Não, é vermelha. Você é incapaz de distinguir verde de vermelho. Tenho um aparelho comigo que mede a frequência do raio luminoso refletido por um objeto. Veja, a frequência refletida por B é bem diferente da frequência emitida por esta outra bola.
Awks: É verdade.
Eu: Por isso, sem algum outro auxílio externo, você não sabe que esta bola é verde, enquanto aponto para B.
Awks: Realmente, não teria como sabê-lo.
Assim, enquanto Awks não tem qualquer ciência da sua incapacidade em distinguir verde de vermelho, não faz o menor sentido que eu diga, para Awks, que ele não sabe, por exemplo, que B é verde. Só posso lhe dizer tal coisa quando lhe dou, ao mesmo tempo, um quadro mais amplo que explique de que modo ele poderia não saber. Quando lhe digo que ele é incapaz de distinguir verde de vermelho, lhe fornece este quadro mais amplo.
E o próprio Awks, o que ele poderia dizer para si mesmo? Enquanto Awks não tem qualquer ciência de ser daltônico, ele está completamente justificado em confiar nos seus relatos sobre as cores dos objetos. Mesmo quando ele está diante de uma bola vermelha e afirma que ela é verde, ele está totalmente justificado em dizer que ela é verde e não tem qualquer razão para duvidar do seu relato. Ele pode inclusive dizer, diante de uma bola vermelha, "Eu sei que esta bola é verde". Posteriormente, ao descobrir-se daltônico, Awks não mais poderá sentir-se confiante diante dos seus relatos sobre a cor de um objeto que lhe parece verde. Sempre que ver um objeto que lhe parece verde, ele deverá suspender o seu juízo quanto à cor do objeto. A respeito dos seus antigos relatos, tal como, "Eu sei que esta bola é verde", ele poderá e deverá se corrigir: "Eu pensava que sabia". Agora, Awks possui também o quadro de referência mais amplo que lhe permite saber porque ele não sabe, diante de um objeto verde ou vermelho, qual é a sua cor.
O que se extrai deste caso é o seguinte: antes de Awks saber que é daltônico, ele não tinha, de fato, diante de um objeto verde, o conhecimento de que ele é verde, contudo ele estava, antes de saber que era daltônico, legitimado, diante de um objeto verde, a se auto-atribuir o conhecimento de que o objeto
é verde. Um outro ponto também de suma importância: enquanto eu não forneço ao Awks um quadro mais geral que lhe dê uma razão para pensar porquê ele não sabe que um objeto verde é verde, não faz o menor sentido dizer para Awks que ele simplesmente não sabe, diante de um objeto verde, que ele é verde.
Talvez pudéssemos dizer ainda mais: a mera possibilidade de que Awks é daltônico não surtiria qualquer efeito sobre a legitimidade da auto-atribuição de conhecimento de Awks a não ser quando já encorporada a uma visão mais geral da situação de Awks, qual seja, aquela em que eu detecto que Awks está a errar sistematicamente a classificação de objetos verdes e vermelhos. Neste contexto, a possibilidade de que Awks seja daltônico não é mais mera possibilidade, mas sim uma razão, uma explicação para a constância do seu erro, a qual, então, ele teria de eliminar para manter a legitimidade da sua auto-atribuição de conhecimento. Fora deste contexto mais geral, a mera possibilidade de que Awks é daltônico seria inócua. Vejamos a seguinte situação entre Awks e Krig, também daltônico.
B está em cena.
Awks: Veja, um objeto verde.
Krig: De fato.
C, que é vermelha, está em cena.
Krig: Veja, um objeto verde.
Awks: De fato.
Krig: se fôssemos daltônicos, não saberíamos que estes objetos são verdes.
Awks: Certamente, concordo contigo que, se esta hipótese vingasse, teríamos de retirar a auto-atribuição do conhecimento de que estes objetos são verdes. Por hora, não temos qualquer evidência de que ela seja verdadeira, ao contrário, vejo-me completamente legitimado a dizer que sei que ela é falsa.
Krig: Mas não te parece que teríamos de eliminar agora esta hipótese para manter como legítimas a nossa auto-atribuição de conhecimento?
[Há dois caminhos aqui possíveis, o mais fácil seria Awks dizer que já eliminou esta hipótese, uma vez que ele está legitimado a dizer que sabe que ela é falsa. Vejamos, no entanto, o caminho mais difícil...]
Awks: De modo algum. Fosse assim, toda a humanidade deveria também suspender o seu conhecimento a respeito das cores dos objetos, já que o acordo intra-espécie sobre as cores dos objetos não elimina a hipótese de que a nossa espécie sofra, digamos, de um daltonismo generalizado.
Krig: Justamente, temos de eliminar a hipótese do daltonismo generalizado para manter a legitimidade das nossas atribuições de cores. Se o conhecimento é factivo, isto é, se eu sei que p, então p, por que a atribuição de conhecimento não seria restringida por isso que eu sei sobre o saber? Eu só deveria me atribuir conhecimento quando sei que a atribuição não poderá ser jamais contestada. Sendo assim, deveríamos agora eliminar as hipóteses contrárias que nos são colocadas.
Awks: Não está claro para mim que tenhamos de extrair este dever com respeito a atribuição de conhecimento a partir do que sabemos a respeito do próprio saber. E eu diria que, a partir de outras coisas que sabemos sobre a atribuição de saber, este dever, na verdade, não se aplica à atribuição de conhecimento. Eu sei, por exemplo, que as atribuições de conhecimento podem ser contestadas por razões substanciais, nos levando a situações em que legitimamente diríamos: "eu pensava que sabia". Se o dever que você deseja impor à atribuição de conhecimento fosse, de fato, um dever a ser atendido para atribuir conhecimento, então não seria possível emergir uma situação em que eu pudesse dizer "eu pensava que sabia". Não me parece, assim, que o que sabemos sobre o saber tenha de ter mais impacto normativo sobre a atribuição de saber do que aquilo que sabemos sobre a própria atribuição de saber.
Chegamos a um impasse. O dever de só atribuir conhecimento com a garantia de que esta atribuição jamais será contestada é razoável? Como vamos decidir a questão? Qual saber tem maior força normativa sobre a atribuição de conhecimento, o saber sobre o saber ou o saber sobre a própria atribuição de conhecimento?
Chamemos uma das bolas que está diante de mim e de Awks de 'B' e B é verde. Se eu sei que Awks é daltônico, então faz sentido que eu diga para uma outra pessoa que Awks não sabe se B é verde ou vermelho. Mas o que eu posso dizer com sentido para Awks? Awks está diante de B e diz 'B é verde'. A afirmação de Awks é verdadeira, mas não é conhecimento, uma vez que ele diria o mesmo diante de uma bola vermelha. Falta-lhe a justificação. Mas faz sentido que eu diga para Awks que a sua afirmação não é conhecimento, que ele não sabe o que afirma? Se ele não sabe que é daltônico, não, não faz sentido. Imagine o diálogo:
Awks: Isto, apontando para B, é verde.
Eu: É mesmo verde, mas você não sabe que isto é verde.
A minha afirmação, neste contexto, não faz o menor sentido. Somente com o avanço do diálogo, ao deixar explícito para Awks que ele é incapaz de fazer certa distinção, se forja um contexto em que a minha frase pode ser pronunciado com sentido. Vejamos:
Awks: Não te entendo. Como não sei, se você mesmo acabou de dizer que é verde?
Eu: Isto, apontando para uma bola vermelha, é vermelha.
Awks: Não, é verde.
Eu: Não, é vermelha. Você é incapaz de distinguir verde de vermelho. Tenho um aparelho comigo que mede a frequência do raio luminoso refletido por um objeto. Veja, a frequência refletida por B é bem diferente da frequência emitida por esta outra bola.
Awks: É verdade.
Eu: Por isso, sem algum outro auxílio externo, você não sabe que esta bola é verde, enquanto aponto para B.
Awks: Realmente, não teria como sabê-lo.
Assim, enquanto Awks não tem qualquer ciência da sua incapacidade em distinguir verde de vermelho, não faz o menor sentido que eu diga, para Awks, que ele não sabe, por exemplo, que B é verde. Só posso lhe dizer tal coisa quando lhe dou, ao mesmo tempo, um quadro mais amplo que explique de que modo ele poderia não saber. Quando lhe digo que ele é incapaz de distinguir verde de vermelho, lhe fornece este quadro mais amplo.
E o próprio Awks, o que ele poderia dizer para si mesmo? Enquanto Awks não tem qualquer ciência de ser daltônico, ele está completamente justificado em confiar nos seus relatos sobre as cores dos objetos. Mesmo quando ele está diante de uma bola vermelha e afirma que ela é verde, ele está totalmente justificado em dizer que ela é verde e não tem qualquer razão para duvidar do seu relato. Ele pode inclusive dizer, diante de uma bola vermelha, "Eu sei que esta bola é verde". Posteriormente, ao descobrir-se daltônico, Awks não mais poderá sentir-se confiante diante dos seus relatos sobre a cor de um objeto que lhe parece verde. Sempre que ver um objeto que lhe parece verde, ele deverá suspender o seu juízo quanto à cor do objeto. A respeito dos seus antigos relatos, tal como, "Eu sei que esta bola é verde", ele poderá e deverá se corrigir: "Eu pensava que sabia". Agora, Awks possui também o quadro de referência mais amplo que lhe permite saber porque ele não sabe, diante de um objeto verde ou vermelho, qual é a sua cor.
O que se extrai deste caso é o seguinte: antes de Awks saber que é daltônico, ele não tinha, de fato, diante de um objeto verde, o conhecimento de que ele é verde, contudo ele estava, antes de saber que era daltônico, legitimado, diante de um objeto verde, a se auto-atribuir o conhecimento de que o objeto
é verde. Um outro ponto também de suma importância: enquanto eu não forneço ao Awks um quadro mais geral que lhe dê uma razão para pensar porquê ele não sabe que um objeto verde é verde, não faz o menor sentido dizer para Awks que ele simplesmente não sabe, diante de um objeto verde, que ele é verde.
Talvez pudéssemos dizer ainda mais: a mera possibilidade de que Awks é daltônico não surtiria qualquer efeito sobre a legitimidade da auto-atribuição de conhecimento de Awks a não ser quando já encorporada a uma visão mais geral da situação de Awks, qual seja, aquela em que eu detecto que Awks está a errar sistematicamente a classificação de objetos verdes e vermelhos. Neste contexto, a possibilidade de que Awks seja daltônico não é mais mera possibilidade, mas sim uma razão, uma explicação para a constância do seu erro, a qual, então, ele teria de eliminar para manter a legitimidade da sua auto-atribuição de conhecimento. Fora deste contexto mais geral, a mera possibilidade de que Awks é daltônico seria inócua. Vejamos a seguinte situação entre Awks e Krig, também daltônico.
B está em cena.
Awks: Veja, um objeto verde.
Krig: De fato.
C, que é vermelha, está em cena.
Krig: Veja, um objeto verde.
Awks: De fato.
Krig: se fôssemos daltônicos, não saberíamos que estes objetos são verdes.
Awks: Certamente, concordo contigo que, se esta hipótese vingasse, teríamos de retirar a auto-atribuição do conhecimento de que estes objetos são verdes. Por hora, não temos qualquer evidência de que ela seja verdadeira, ao contrário, vejo-me completamente legitimado a dizer que sei que ela é falsa.
Krig: Mas não te parece que teríamos de eliminar agora esta hipótese para manter como legítimas a nossa auto-atribuição de conhecimento?
[Há dois caminhos aqui possíveis, o mais fácil seria Awks dizer que já eliminou esta hipótese, uma vez que ele está legitimado a dizer que sabe que ela é falsa. Vejamos, no entanto, o caminho mais difícil...]
Awks: De modo algum. Fosse assim, toda a humanidade deveria também suspender o seu conhecimento a respeito das cores dos objetos, já que o acordo intra-espécie sobre as cores dos objetos não elimina a hipótese de que a nossa espécie sofra, digamos, de um daltonismo generalizado.
Krig: Justamente, temos de eliminar a hipótese do daltonismo generalizado para manter a legitimidade das nossas atribuições de cores. Se o conhecimento é factivo, isto é, se eu sei que p, então p, por que a atribuição de conhecimento não seria restringida por isso que eu sei sobre o saber? Eu só deveria me atribuir conhecimento quando sei que a atribuição não poderá ser jamais contestada. Sendo assim, deveríamos agora eliminar as hipóteses contrárias que nos são colocadas.
Awks: Não está claro para mim que tenhamos de extrair este dever com respeito a atribuição de conhecimento a partir do que sabemos a respeito do próprio saber. E eu diria que, a partir de outras coisas que sabemos sobre a atribuição de saber, este dever, na verdade, não se aplica à atribuição de conhecimento. Eu sei, por exemplo, que as atribuições de conhecimento podem ser contestadas por razões substanciais, nos levando a situações em que legitimamente diríamos: "eu pensava que sabia". Se o dever que você deseja impor à atribuição de conhecimento fosse, de fato, um dever a ser atendido para atribuir conhecimento, então não seria possível emergir uma situação em que eu pudesse dizer "eu pensava que sabia". Não me parece, assim, que o que sabemos sobre o saber tenha de ter mais impacto normativo sobre a atribuição de saber do que aquilo que sabemos sobre a própria atribuição de saber.
Chegamos a um impasse. O dever de só atribuir conhecimento com a garantia de que esta atribuição jamais será contestada é razoável? Como vamos decidir a questão? Qual saber tem maior força normativa sobre a atribuição de conhecimento, o saber sobre o saber ou o saber sobre a própria atribuição de conhecimento?
Comentários
Obrigado pelo comentário. Acho que não fui claro, de fato, neste ponto, mas o que me parece não fazer sentido é dizer para o Daltônico que ele não sabe que B é verde, a não ser que lhe diga ao mesmo tempo porque não sabe. Mas certamente podemos dizer do daltônico, que ele não sabe que B é verde. Outra situação: se digo para S que R não sabe que B é verde, S espera que eu diga também porque R não sabe que B é verde, talvez esteja dormindo, talvez seja cego ou talvez seja daltônico. Talvez S não interpele a razão pela qual R não sabe que B é verde, mas fica implícito que há alguma. No caso em que falo diretamente com o daltônico, todas estas outras possibilidades já estão eliminadas, se falo com ele, ele não está dormindo; ele me relata uma experiência, então não é cego, assim a expectativa de que eu diga a ele exatamente porque ele não sabe que B é verde assume o tom de um imperativo, ou, de outro modo, ele não me entende.
Um abraço,
Eros.
O que você disse parece-me um complemento à última fala de Awks, algo como: sabemos que as atribuições de conhecimento não exigem incontestabilidade, pois a aplicamos rotineiramente, é assim que fazemos e há vantagens em fazer assim e desvantagens em não fazer assim.
O cético, porém, não coloca a sua dúvida no nível prático. O cético concordaria que, para evitar a inculpabilidade por ignorância, temos de reconhecer a atribuição de conhecimento. Mas ele dirá que reconhece esta atribuição apenas para as necessidades práticas. No campo teórico, ele não a reconhece. No campo teórico, ele manterá que o conhecimento só deve ser atribuído se incontestável.
Resta saber se esta distinção entre teoria e prática, pela qual o cético tenta se salvar, não é apenas um ardil retórico.
Eros.
De modo algum, fico contente que as reflexões aqui colocadas tenham lhe instigado.
Um abraço,
Eros.