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[158] Paradoxo do Prefácio, justificação e dedução

Resta ainda alguma dúvida de que a dedução não transmite justificação, em especial se aceitamos que a justificação é falível? O paradoxo do Prefácio (introduzido por Makinson) ilustra este ponto muito bem. Sabe-se que um autor tem fortes razões para pensar que cada uma das sentenças escritas no seu livro está justificada. Para reforçar esta ideia, podemos supor que ele revisou cada uma de suas afirmações e ainda submeteu o rascunho final ao apreço de seus amigos críticos. Ainda assim, por uma razoável cautela, ele escreve no prefácio que algum erro pode lhe ter escapado e que a responsabilidade pela falha é toda dele. Ora, tal autor mantém crenças inconsistentes se supomos que o mecanismo inferencial subjacente ao seu raciocínio é dedutivo. Como ele acredita que cada uma das sentenças do seu livro está justificada, ele crê justificadamente em:

(1) S1, S2, S3...Sn

Porém, quando ele afirma que muito provavelmente o seu livro contém algum erro, ele está assentido justificadamente a:

(2) Não é verdade que (S1 e S2 e S3 ... e Sn).

Se esperamos que o autor deva acreditar nas consequências dedutivas de suas crenças, pelo menos aquelas consequências mais simples e triviais, então o autor deveria acreditar em:

(3) S1 e S2 e S3...e Sn.

Que é a negação de (2). Quando modelamos esse raciocínio em particular pelo cálculo das probabilidades, fica clara a razão pela qual o autor assente a (2) e não a (3) dado que assente a (1). Se o autor atribui uma probabilidade menor que 1 a cada sentença do livro, ainda que a probabilidade atribuída seja muito próxima de 1, a probabilidade resultante da conjunção de todas as sentenças do livro será muito baixa, uma vez que a conjunção de probabilidades se calcula multiplicando seus valores.

Se o autor atribuísse probabilidade 1 a cada uma das afirmações do seu livro, (1) não implicaria (2), mas (3). Neste caso, poderíamos modelar o raciocínio tanto pela lógica proposicional quanto pelo cálculo de predicados.

Estas considerações não são uma crítica à lógica dedutiva, apenas explicitam uma de suas limitações. Por não ser sensível ao grau de justificação com que assentimos às crenças, ela é incapaz de captar muitas das inferências válidas que fazemos cotidianamente. Em um domínio de saber em que a justificação não vem em graus, mas em um par dicotômico, sim e não, aceito e não-aceito, podemos usar a lógica dedutiva para modelar os raciocínios feitos neste campo do saber sem medo. Mas só aí. 

Comentários

Oi, Eros. Quando digo que algumas da coisas que eu disse podem estar erradas, mesmo que tenham sido justificadas dedutivamente, o que faço é reconhecer que posso, inadvertidamente, ou estar cometendo uma falácia, ou estar baseado alguma premissa falsa. Mas dizer isso não é asserir que provavelmente alguma das minhas afirmações é falsa, mas que minha justificação não exclui essa possibilidade. Parece incoerente dizer: por tais e tais razões é o caso que p, embora provavelmente seja falso que p. Mas não é incoerente dizer: por tais e tais razões é o caso que p, embora eu possa estar enganado sobre isso. Asserir a probabilidade da falsidade é diferente de asserir a possibilidade do engano. Não?
Eros disse…
Oi Alexandre,

Posso ter um argumento indutivo razoável aliás em favor da idéia de que todo livro contém algum erro e, portanto, provavelmente alguma das afirmações feitas no meu livro é falsa.

O paradoxo do prefácio é interessante justamente por se ter boas razões independentes para crenças que geram uma inconsistência se colocamos a máquina dedutiva para funcionar.

Na verdade, tenho boas razões para S1, S2...Sn e para ~(S1 ^ S2 ... ^ Sn).

A luz do paradoxo do Prefácio, parece então que respondemos negativamente à pergunta: devo acreditar em tudo aquilo que se segue dedutivamente das minhas crenças?

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