Existe a esperança de que argumentos indutivos possam ser transformados em argumentos dedutivos através da adição de premissas. Assim, um argumento indutivo como:
(1) A1...An cachorros latem
:. Todos os cachorros latem
Seria transformado em um argumento dedutivo adicionando a premissa de que todos os caninos latem:
(1) Todos os caninos latem
(2) A1...An cachorros latem
:. Todos os cachorros latem.
Na verdade, o argumento acima dispensa (2) e se transforma realmente num argumento dedutivo com a substituição de (2) por (2'): Todos os cachorros são caninos.
(1) Todos os caninos latem.
(2') Todos os cachorros são caninos.
:. Todos os cachorros latem.
Se esta transformação soou muito artificial, tomemos mais um exemplo de inferência indutiva:
(1) O bule de água esteve no fogo pelos últimos 10 minutos
:. Provavelmente, a água está fervendo.
O exemplo é interessante por partir de uma afirmação particular para concluir outro fato particular, o que leva muitos a pensar com mais facilidade que há uma premissa oculta:
(1) Toda água em um bule que esteve no fogo pelos últimos 10 minutos se encontra fervendo.
(2) O bule de água esteve no fogo pelos últimos 10 minutos
:. A água está fervendo.
E agora temos um argumento dedutivo, na forma:
Vx(Fx -> Gx)
Fa
:. Ga
Mas esta transformação só muda o foco do problema. Se antes o nosso problema era a discussão da validade da inferência indutiva, agora ela se transforma na discussão sobre a verdade de uma afirmação geral. A este respeito, há um paralelo com argumentos dedutivos. Tomemos a regra de inferência modus ponens:
(1) P
(2) P -> Q
:. Q
Podemos discutir tanto a validade do argumento acima quanto a verdade da proposição (P ^ P -> Q) -> Q. Quem considera válido o modus ponens também reconhece a verdade de (P ^ P -> Q) -> Q e vice-versa. De modo análogo, quem reconhece válida a inferência:
(1) O bule de água esteve no fogo pelos últimos 10 minutos
:. Provavelmente, a água está fervendo.
Também reconhece que está bem suportada a afirmação geral:
(1) Todo água em um bule que esteve no fogo pelos últimos 10 minutos se encontra fervendo.
e vice-versa. Porém, não deixemos a analogia nos deixar cegos para o que há de diferente em ambos os casos. Na dedução, reconhecer a validade de uma inferência implica em reconhecer a verdade da afirmação que capta esta inferência; enquanto na indução, reconhecer a validade de uma inferência implica em reconhecer que a afirmação geral que capta esta inferência está bem suportada/justificada/confirmada. Diferença esperada, já que a dedução preserva a verdade; a indução, não. Na dedução, validade e verdade são faces de uma mesma moeda; não indução, validade e justificação/suporte/confirmação são faces de uma mesma moeda.
A esta altura já deve estar claro que a esperança de transformar argumentos indutivos em argumentos dedutivos não passa de uma esperança. Tanto faz como abordamos a questão, se perguntamos se uma dada inferência indutiva é válida ou se inquirimos se a afirmação geral que capta esta inferência está bem suportada, em ambos os casos temos de dar uma explicação seja da relação de suporte indutivo entre premissas e conclusão, seja da relação de suporte entre evidência e a afirmação geral em tela. A tentativa de transformar um argumento indutivo em um argumento dedutivo simplesmente nos leva a um outro argumento indutivo, pois agora temos de explicitar o nosso suporte indutivo para a afirmação geral em tela; no caso discutido, temos de fornecer um argumento indutivo para:
(1) Toda água em um bule que esteve no fogo pelos últimos 10 minutos se encontra fervendo.
Uma vez que (1) não se trata de uma verdade lógica, temos de lhe fornecer suporte indutivo/empírico, ou seja, temos de recorrer a um argumento indutivo.
A esperança de que argumentos indutivos sejam redutíveis a argumentos dedutivos repousa no erro de pensar que argumentos indutivos são argumentos dedutivos entimemáticos, isto é, argumentos com premissas ocultas. Este erro, por sua vez, repousa, em parte, na monotonia de pensar que a única relação concebível entre premissas e conclusão é a de implicação/conseqüência lógica dedutiva. Assim, o compromisso com a existência de argumentos indutivos genuínos é o compromisso com a existência de relações entre premissas e conclusão diversas da implicação e mais fraca que esta, posto que não preservam necessariamente a verdade. Isto não significa que os argumentos indutivos não tenham conexão com a verdade, eles têm na medida em que a relação de suporte e justificação tem alguma conexão com a verdade.
Se a relação de suporte/justificação/confirmação entre premissas e conclusão em um argumento indutivo é um tipo de relação lógica ao lado da implicação/conseqüência lógica dedutiva é uma questão que não é apenas técnica (a formulação de uma lógica indutiva), mas sobretudo filosófica, pois diz respeito à natureza da relação lógica. A lógica se ocupa essencialmente do estudo do que se segue do que, mas não é fora de disputa que ela deva se ocupar apenas do que se segue do que preservando a verdade. Nas palavras de Carnap:
A lógica dedutiva pode ser considerada como a teoria da conseqüência lógica, e a lógica indutiva como a teoria de outro conceito, que é igualmente lógico e objetivo, a saber... o grau de confirmação [1].--------------
[1] Carnap, R. “A Basic System of Inductive Logic I.” In Studies in Inductive Logic and Probability, Volume I, eds. Carnap, R. and Jeffrey, R. 33-165. Berkeley: University of California Press, 1971.
Comentários
Gostei da tua postagem. Gosto sempre do que escreves. Uma pergunta paralela: segundo teu juízo, a crítica de Hume à indução seria um erro categorial? Ele esperava encontrar na indução as leis lógicas que regem a dedução?
E a fundamentação da indução no hábito pode ser entendida como uma tentativa psicológica de mostrar que a indução é legítima e não tem valor nenhum?
Eu tendo a pensar que Hume viu um problema com a indução, viu que para um certo modelo de pensamento filosófico a indução não seria legítima (o modelo de pensamento dos monotonicos) e procurou mostrar que a legitimidade dela derivava de princípios de outra ordem (psicológicos). Acho que ele viu bem onde estava o problema,mas talvez não tenha tido condições de oferecer uma abordagem alternativa interessante.
Abraço
Flavio
Tendo a ver como você. Não acho que Hume tenha incorrido em um erro categorial. Penso que ele tentou mostrar duas coisas: (1) a indução não se reduz à dedução, ou seja, não é redutível, como você colocou, a um modelo de pensamento monotônico e (2) temos dificuldades em perceber com a indução é confiável/racional se nos mantemos num modelo completamente internalista da justificação.
Hume, assim, estaria extraindo as conseqüências absurdas de se pensar o pensamento/razão em geral através dos modelos do pensamento monotônico e da justificação internalista.
Quando você passa para um modelo de justificação externalista, começa a ficar mais claro que a ênfase de Hume no hábito não é uma solução meramente psicológica para a legitimidade da indução. Eu tendo a ver a questão desta maneira, com olhares strawsonianos. Stroud também chamada atenção para isso no seu livro sobre o Hume.
Um grande abraço,
Eros.
Obrigado por compartilhar o texto, Eros.
Fiquei com algumas questões. Carnap, ao buscar a formulação de uma lógica indutiva, pressupõe que argumentos indutivos não possam ser reduzidos a argumentos dedutivos? Penso que a resposta seja afirmativa. Nesse ponto ele estaria contigo e com Hume. Poderíamos dizer que o pressuposto problemático de Carnap não é esse, mas outro: o de que argumentos indutivos possam ser reduzidos a aspectos sintático-formais (expressos numa lógica indutiva)? Nesse ponto ele se distancia de Hume. Tu não apresentou esse pressuposto como um problema. Pelo contrário, apresentou-o como uma possibilidade de conceber a lógica de modo mais amplo, como o estudo do que se segue do que (sem a necessidade de preservar a verdade). A lógica indutiva seria, ainda assim, uma lógica. O grau de confirmação estaria para a lógica indutiva assim como a consequência lógica estaria para a lógica dedutiva (como na citação de Carnap).
Porém, pragmatistas tais como Goodman, Quine e Putnam fizeram críticas contundentes a esse pressuposto, que está na base da construção de uma lógica indutiva por Carnap.
Essas críticas concordam com Carnap sobre a tese de que argumentos indutivos não são redutíveis à lógica dedutiva; mas se afastam dele ao afirmar que não são redutíveis sequer a uma lógica indutiva.
O que eu fiquei pensando é o seguinte: mesmo que argumentos indutivos não possam ser reduzidos a uma lógica indutiva, isso automaticamente mina a construção de uma lógica indutiva? É claro que o projeto inicial e ousado de Carnap, de abarcar toda a indução numa lógica indutiva, não seria possível (dado esse pressuposto da irredutibilidade). Mas um desenvolvimento da lógica indutiva não poderia ser útil mesmo que seja insuficiente? Se até mesmo a lógica dedutiva é útil em investigações empíricas/indutivas, porque uma lógica indutiva deveria ser completamente rejeitada? Ou trata-se de uma questão de definição, de forma que se a lógica indutiva é insuficiente então não pode ser considerada "lógica"?
Acho que essa minha questão pode ser melhor colocada contrapondo-a ao teu último parágrafo. Mesmo que o projeto filosófico inicial de Carnap tenha se mostrado infértil e inadequado, isso torna irrazoável (ou até mesmo impossível) o desenvolvimento técnico de uma lógica indutiva?
O comentário ficou grande e com muitas dúvidas, além de não envolver o tema principal do texto. Mas não precisa responder tudo. :)
Abraços,
Claudio