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[173] Três momentos em que Popper, o anti-indutivista, precisa da indução

Para Popper, pouco importa saber como chegamos a uma teoria quando estamos interessados em justificá-la. Pode interessar à psicologia e à sociologia saber como os cientistas formulam as suas teorias, os fatores que os influenciam etc. Porém, nada disso contribui para a justificação da teoria. A questão de saber como formulamos as nossas teorias pertence ao contexto da descoberta, que é distinto, para Popper, do contexto da justificação.

Quanto à justificação da teoria, o máximo que podemos fazer é testá-la. A partir do nosso aparato lógico, extraímos dedutivamente previsões da teoria e investigamos se essas previsões se verificam. Se elas não se verificam, algo vai mal com a teoria. Se elas se verificam, continuamos a extrair mais previsões e a fazer mais testes com a teoria. Seu sucesso nos testes não nos licencia a inferir a sua verdade, apenas que podemos aceitá-la e continuar testando-a. E assim prossegue a atividade científica.

Tudo isso vai bem...

(1) Mas sem um limitador sobre quais teorias testar, Popper ameaça tornar a ciência impraticável. Suponhamos que O é uma observação não explicada pelo conhecimento atual. Podemos formular a teoria T, que implica O. Mas também poderíamos formular T', que também implica O. Na verdade, dado uma observação ou qualquer conjunto finito de observações, podemos ter infinitas teorias que implicam O ou esse conjunto de observações. Por que testar T e não T'? Sem uma indução prévia, que é feita em geral na prática científica, a ciência ficaria paralisada diante da impossibilidade de escolher entre infinitas teorias para testar e investigar. A indução prévia é a indução que vai nos dizer qual teoria é mais provável, T ou T'. A teoria mais provável é aquela que investigaremos e submeteremos aos testes. Importante frisar que não há como lidar com essa dificuldade simplesmente com a dedução. T e T' podem ser igualmente coerentes e compatíveis com o nosso conhecimento atual. Só a inferência indutiva nos indicará, dado o conhecimento atual, qual é mais provável.

(2) Por que é racional aceitar/manter uma teoria que passou no teste? Ora, dada uma teoria T, que passou em vários testes, por que mantemos T e não uma outra, T', que podemos inventar e que acomoda igualmente todos os testes pelos quais T passou e sem ser logicamente equivalente a ela? Há uma boa razão indutiva para manter T e não T'. T, que passou em vários testes, provavelmente passará em outros. Mas não temos nenhuma base indutiva para preferir T', já que ela ainda não foi testada. Outra situação. Imagine que T e T' são duas teorias rivais. Ambas passaram nos testes, porém, T passou em mais testes e em testes mais diversificados. Qual teoria diríamos estar mais corroborada? T, certamente. Mas isto é fazer uma indução. Assim, para decidir entre teorias rivais, ambas sobreviventes aos testes, também nos apoiamos em uma indução.

(3) Teorias não implicam previsões sozinhas. Em geral, várias condições iniciais e hipóteses auxiliares são acrescentadas para que se possa deduzir de todo o conjunto previsões para serem testadas. A teoria da relatividade isoladamente não é suficiente para extrair a previsão de que um raio luminoso passando nas proximidades do sol tem a sua trajetória afetada em tal magnitude pela força gravitacional do sol. Hipóteses sobre os nossos instrumentos de medida, a própria medida da massa do sol etc. precisaram ser acrescentadas para junto com a teoria possibilitar a dedução da referida previsão. E se a previsão se mostrasse falsa, a teoria de relatividade estaria refutada? Não necessariamente. Se a previsão é inferida a partir da conjunção da teoria, hipóteses auxiliares e condições iniciais, a falsidade da previsão depõe apenas em favor da falsidade da conjunção destes três elementos, mas não depõe em favor da falsidade de um elemento em específico. Ou seja, Se (T ^ CI ^ HA) -> P e ~P, já que a previsão se revelou falsa, por modus tollens, inferimos ~(T ^ CI ^ HA), que é equivalente à ~T v ~CI v ~HA. A falsificação não nos diz qual elementos é falso e, protanto, não nos diz em qual elemento devemos mexer. Mas o cientista precisa de uma pista de onde mexer. Novamente, ele recorre à indução. Ele irá mexer no elemento que, segundo o seu conhecimento, tem a menor probabilidade de ser verdadeiro. Sem essa indução, sua escolha teria de ser arbitrária, introduzindo elementos irracionais na atividade científica.

O problema de Popper é simplesmente a sua cegueira indutiva. Em "Conjecturas e Refutações" (Popper, p. 72) ele é claro em afirmar que uma sentença só é racionalmente justificada se lhe damos razões dedutivas. Esta é uma condição muito forte para a justificação racional, pois exclui de partida a indução do papel de justificação. Isso vai bem com a posição do Popper de que a indução simplesmente não existe. O resultado não poderia ser outro: o falsificacionismo sozinho não dá conta de explicar a racionalidade da prática científica. Falta-lhe, justamente, as doses saudáveis de indução.

Popper está correto, porém, quando crítica as limitações da indução para explicar a descoberta científica. Não chegamos necessariamente às teorias por indução. Em alguns casos, talvez; mas não é a regra.

De qualquer modo, não é pelo contexto da descoberta que a indução deve a sua dignidade, mas sim pelo seu papel de justificação. Só preconceitos dedutivos nos impedem de percebê-lo. E por mais que queiram racionalizar epistemologicamente este preconceito, eu o vejo como fruto do medo da incerteza.

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Popper, K. Conjecturas e Refutações. Brasília: Editora UnB, 1981.



Comentários

Flavio Williges disse…
Excelente teu texto, Eros!
Eros disse…
Muito obrigado, Flavio. Um abraço.

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