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[177] Thomas Nagel e o absurdo da vida

O ceticismo que, por um lado, nos recomenda a não levar qualquer projeto de vida com absoluta seriedade é o mesmo que faz descortinar diante dos nossos olhos o absurdo da vida. O passo atrás que Nagel diz sempre ser possível dar diante da vida que você tem e dos valores aos quais adere é o passo que nos faz ver o caráter contingente e arbitrário das nossas vidas; e depois deste passo, deste movimento, fica ecoando em nossas mentes a pergunta: "por que levar a sério essa vida tão arbitrária e mesmo cômica?". Cômica sim, pois se arbitrária, nada mais cômico que levá-la a sério. E, contudo, voltamos, sem o auxílio de qualquer razão, às nossas vidas ordinárias, aos projetos que julgamos valiosos. Quanto a isso, não temos escolha. Simplesmente voltamos. Em nosso seio habita tanto a razão duvidosa que nos leva ao passo atrás rumo ao absurdo da vida, quanto a emoção crente que nos leva ao passo à frente de volta à vida. Mas este movimento de ir e vir não é sem efeito, ele deixa as suas marcas. Depois que vislumbramos o absurdo da vida, voltamos para ela, em toda sua contingência, com uma certa dose de ironia. A aderência já não é mais a mesma.

Este efeito é virtuoso e maléfico ao mesmo tempo. Por um lado, sua virtude reside em nos colar numa relação de prudência com a vida que adotamos. Talvez ela seja errada, talvez haja outras melhores; levo-a a sério, é verdade, mas não ao extremo. Se pensarmos em vidas errôneas ou ruins, esta postura de prudência nos parece salutar, pois evita os malefícios que podem advir da radicalização de uma vida equivocada. Pensemos nos homens bomba, na sua aderência total e absoluta a uma causa política ou religiosa. O efeito desta adesão absoluta é fatalmente a sentença de centenas. A atitude de prudência diante da vida fomenta a mudança em busca de outras melhores. Talvez o homem bomba mude de vida antes de se explodir, ou simplesmente não consiga se explodir na falta da aderência absoluta. As maiores atrocidades cometidas contra povos e etnias não se deveram exclusivamente às crenças falsas sobre estes povos e etnias (e.g. "negros não têm alma", "judeus são seres inferiores e perversos" etc.), mas também à aceitação destas crenças com absoluta confiança. Uma pitada de ceticismo e talvez menos crueldade fosse perpetrada a despeito das crenças falsas.

O efeito maléfico, por outro lado, é a perda do apetite pela própria vida. Se, a partir da perspectiva externa, ela não tem valor e significado, por que levá-la a sério? Por que me comprometer com esta vida que pode ser tão errada e patética quanto a do homem bomba? Por que me preocupar com uma biografia ou realizações ao invés de curtir ininterruptamente prazeres efêmeros? Por que, enfim, me preocupar com o que quer que seja? Do lado de fora, qualquer preocupação é vazia, vai de lugar algum a lugar nenhum. Por sorte, a natureza sábia não permite que estes pensamentos tenham sobre nós um efeito tão penetrante; de outro modo, imperaria a absoluta letargia e indiferença. Acordamos todos os dias e seguimos em frente com a vida. Comemos, bebemos, rimos, trabalhamos, às vezes empolgados, às vezes menos, mas estamos aí, em contato emotivo com o mundo e as pessoas que nos rodeiam. Mas não é verdade também que o efeito seja nulo. Em alguns mais do que em outros. Acordamos todos os dias e seguimos com a vida meio que resignados, vez ou outra, reaparece o pensamento: então é só isso que nos sobra. E passamos a saborear a vida com certa amargura.

O preço de uma vida mais prudente seria, assim, uma vida mais sem graça, resignada? Acho que há algo de errado na inferência acima. Penso que podemos aproveitar muito bem a contribuição do ceticismo para o desenvolvimento da prudência sem prejuízo à aderência à vida. Podemos ser prudentes e viver intensa e seriamente. Como? O ceticismo atua de duas maneiras distintas. Ele pode ser empregado contra um valor particular, mostrando a face arbitrária e contingente que este possui a partir da perspectiva externa. Este emprego é saudável e fomenta a prudência. A partir da perspectiva externa, não há qualquer razão para que eu esteja absolutamente comprometido com qualquer valor. A este respeito, todos os valores estão em pé de igualdade. É preciso tomar um cuidado especial aqui. Quando adotamos a perspectiva externa, não é que percebemos não haver qualquer razão externa para um valor qualquer, mas sim que não percebemos haver tais razões, ainda que elas existam. Temos uma certa cegueira para razões externas. E o reconhecimento desta cegueira externa nos auxilia a redimensionar o alcance das nossas razões internas, ele sugere o risco de se tomar absolutamente qualquer valor em particular.

O ceticismo também pode ser aplicado numa perspectiva interna. Neste caso, porém, sempre estamos apoiados em alguma coisa. Jogamos uns valores contra os outros, umas razões contra as outras e buscamos, neste processo, um equilíbrio reflexivo. Talvez apenas de um modo licencioso possamos falar aqui de um "ceticismo". Mas o fato é que lançamos dúvidas sobre os nossos valores e crenças, ainda que apoiados em outros valores e crenças. Neste processo, alguns valores se enfraquecem, outros se fortalecem. Mas o ponto para o qual gostaria de chamar atenção é o seguinte: duvidar e refletir sobre as próprias crenças e valores tem como efeito o reforço do compromisso com as crenças e valores resultantes. Isto acontece por duas razões: i) engajar-se no processo de autorreflexão traz consigo a presunção de que a atividade de dar razões é importante e ii) a autorreflexão conduz ao autoconhecimento, à identificação das crenças e valores refletidos como sendo seus. A conjunção destes dois fatores reforçam e fortalecem o compromisso do sujeito com os seus valores e crenças. Devido à importância de dar razões ele não abrirá mão dos seus valores e crenças a não ser por outras boas razões. Pelo fato de serem suas as razões ele se sentirá envolvido com elas e não substituirá algumas razões por outras a não ser quando as últimas passarem a ser suas e as primeiras não mais. Uma vida assim não tem como ser sentida, aos olhos do sujeito, como arbitrária, ainda que não se encontre para ela qualquer razão externa.

Assim, o passo atrás de Nagel, a tentativa de encarar a vida pelo lado de fora, só legitima a atitude irônica diante da vida se apoiada em dois erros: a) o erro de não perceber que a vivência da dúvida interna e da reflexão reforçam os laços de compromisso do sujeito com a sua perspectiva ao mediar a identificação do sujeito consigo mesmo, de si com as suas crenças e valores e b) o erro de não perceber que a reflexão sobre a vida tem efeito sobre como se sente a própria vida.

Uma dificuldade maior consiste em dizer que o passo atrás de Nagel não pretende legitimar a atitude irônica diante da vida, mas que ele tem, por uma questão de fato, este efeito. Sobre isso, penso que a distinção entre aderência absoluta e aderência comprometida pode trazer alguma luz. O passo atrás saudável de Nagel consiste em nos fazer reconhecer que não encontramos razões externas ou absolutas para os nossos valores. Pela mesma razão, deixaríamos de nos sentir comprometidos com os nossos valores, os veríamos, assim, como embotados. Este embotamento, por uma questão de fato, pode ocorrer se nos deixamos levar pelo desejo de estar aderidos absolutamente. A adesão absoluta significa apenas estar imune a razões, não implica ter a mais forte das razões. O sujeito pode estar absolutamente aderido e não ter razão alguma para a adesão. A adesão absoluta significa apenas que, qualquer que seja a razão oferecida, ela não terá qualquer efeito sobre a própria adesão. O passo atrás de Nagel nos faz perceber que não podemos ter uma vida assim, imune a razões. Mas se achamos que isso é uma razão para não ter nenhuma vida que não seja imune a razões, então fatalmente acharemos e sentiremos sem graça uma vida que não seja imune a razões. Ora, mas é claro que só alguém que já não seja imune a razões pode vir a sofrer o efeito de tal razão, o que nos leva à conclusão: o fato de não podermos ter uma vida imune a razões só pode vir a ser reconhecido como razão para não querer uma vida imune a razões no interior de uma vida que não é ela mesma imune a razões. E o que motivaria este reconhecimento a não ser o desejo de ver-se imune a razões? Por uma questão de fato, algumas pessoas podem não conseguir se ver livres desse desejo. Elas são as vítimas do passo atrás de Nagel. E não há qualquer razão que possamos dar a elas.

Por outro lado, a adesão comprometida é essencialmente sensível a razões. Ela só se move por razões. Evidentemente, pelo prisma da adesão comprometida, não há qualquer razão para valorizar a adesão absoluta, uma vez que esta última destitui a razão de ser da primeira. Aceitar a adesão absoluta implica em aceitar que ela pode ser desfeita sem qualquer razão. Seu surgimento e desaparecimento são questões de fato, não de razão. Não há como aceitar racionalmente este tipo de adesão. É também por esta mesma razão que só um desejo irracional de ver-se imune a razões pode tornar um indivíduo sensível ao efeito perverso do passo atrás de Nagel. Àqueles que possuem este desejo, recomenda-se a terapia. Àqueles que não o possuem, recomenda-se a autorreflexão, a qual, além de reforçar o compromisso com a a própria vida, torna o terreno menos propício para o surgimento daquele desejo.
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Leituras
Nagel, Thomas. The Absurd. The Journal of Philosophy. V. 68, N. 20, 1971, pp. 716-727. Uma cópia aqui.

Comentários

TNC disse…
Olá....

Postei este seu texto em meu Blog. Espero que não se importe..

Abraços...TNC

LINK: http://tncweblog.wordpress.com/2010/12/03/thomas-nagel-e-o-absurdo-da-vida/
Eros disse…
Fique à vontade. :)
abraços,
Eros.

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