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[186] A tese da simetria

A tese da simetria, defendida pelo Programa Forte na Sociologia do Conhecimento, é geralmente vista com maus olhos pela filosofia da ciência. Não sem razão. Conforme ela é lida, considerações normativas sobre o conhecimento parecem ser completamente dispensáveis e despropositadas. Lida assim, a sociologia do conhecimento seria um substituto para a filosofia da ciência. Porém, como irei sugerir, a tese da simetria não precisa ser lida como tendo essa consequência.


O que é a tese da simetria? Grosseiramente, a tese afirma que explicações causais para crenças verdadeiras não evocam tipos de causas distintas daquelas que geralmente são evocadas para explicar crenças falsas. Mais fundamentalmente ainda, a tese sustenta que as explicações causais para as crenças que tomamos como sendo conhecimento não devem fazer referência à verdade ou à falsidade (ainda que suposta) da crença, a razões a favor ou contra essas crenças, nem mesmo à evidência potencialmente disponível a favor ou contra essas crenças. Em suma, explicações causais para as crenças que tomamos como sendo conhecimento não devem conter elementos epistêmicos. Fatores sociais, políticos, ideológicos ou mesmo psicológicos são arrolados em explicações causais para o fato de um sujeito ou um grupo de pessoas tomar uma certa crença como sendo conhecimento. A simetria consiste em que tais explicações farão referência a fatores do mesmo tipo seja a crença em questão verdadeira ou falsa, racional ou irracional, justificada ou injustificada. Estas distinções que importam para a filosofia da ciência são desconsideradas pela tese da simetria.


Vejamos um exemplo. Suponhamos que S1 acredite que sabe que o cigarro não fomenta câncer do pulmão. S1 é fumante e negligencia toda a evidência contrária que aparece nos jornais, na televisão ou mesmo nas conversas com amigos. Normalmente, diríamos que a crença de S1, além de provavelmente falsa diante da evidência acumulada nas últimas décadas, é irracional justamente por ignorar esta evidência tão facilmente acessível. Mas por que S1 negligencia esta evidência? Várias explicações podem ser dadas. Talvez S1 goste tanto de fumar que não quer reconhecer o prejuízo que esta prática impinge a sua saúde. Ou talvez S1 seja acionista de uma empresa de tabaco e também não quer reconhecer o prejuízo que o fumo causa a outras pessoas. S1, diríamos, é irracional por ignorar a norma da racionalidade epistêmica que demanda do sujeito dosar a sua crença em proporção à evidência disponível. Quando o sujeito se afasta da racionalidade, queremos ainda assim uma explicação para a sua crença. Nestes casos, como exemplificado, apelamos para fatores psicológicos ou sociais. Porém, se S1 acreditasse saber que fumar causa câncer do pulmão em virtude de ter ficado ciente dos estudos que mostram a elevada correlação entre fumar por um longo período e desenvolver câncer do pulmão, o sujeito teria atendido a demanda da racionalidade epistêmica e normalmente não pediríamos uma explicação causal para a sua crença.


No parágrafo acima, apresentamos a perspectiva da filosofia da ciência, que trabalha com explicações assimétricas para crenças racionais e irracionais. Quando o sujeito atende as demandas da racionalidade, não precisamos fornecer causas não-epistêmicas (causas sociais, políticas, ideológicas ou psicológicas) para a crença do sujeito de que ele detém conhecimento. As razões apresentadas ou disponíveis são suficientes para compreendermos a crença do sujeito. Apresentamos explicações causais apenas quando o sujeito se afasta da racionalidade, pois, nesta situação, queremos entender o que fez com que o sujeito se desviasse do que era razoavelmente esperado que ele acreditasse. O defensor do Programa Forte, ao contrário, diria que tanto no primeiro quanto no segundo caso deveríamos fornecer causas não-epistêmicas para as crenças de S1. No segundo caso, mesmo a crença de S1 de que fumar causa câncer do pulmão, em última instância, repousa sobre fatores sociais, políticos etc. Assim, ambos os casos devem ser explicados por meio de causas não-epistêmicas. Isso é o que preconiza a tese da simetria.

Agora precisamos perguntar: a filosofia da ciência e o programa forte estão em conflito? Minha resposta é que não precisam estar. Essas perspectivas apenas enfocam explicações de tipos distintos para as nossas crenças. A filosofia da ciência enfoca particularmente os casos de crenças obtidas racionalmente. Entre os seus objetivos está justamente o de explicitar a natureza da racionalidade epistêmica, isto é, os métodos e procedimentos adequados para a aquisição de crenças verdadeiras. Essa é uma questão normativa e não interessa ao Programa Forte. Um dos principais alvos da filosofia da ciência é o agente epistêmico e a caracterização do tipo de razão que ele pode e deve apropriadamente fornecer em favor das crenças que possui e das alegações de conhecimento que faz. O foco do Programa Forte é outro, ele recai sobre questões descritivas. Seu objetivo principal é descrever os fatores e as regularidades sociais, políticas, ideológicas ou psicológicas que determinam causalmente as nossas crenças, sejam elas verdadeiras ou falsas, racionais ou irracionais, justificadas ou injustificadas. Embora essas perspectivas pareçam conflitantes, não precisam ser. O filósofo da ciência não precisa sustentar que uma crença racional, obtida com boas razões, não tenha também causas não-epistêmicas. Na verdade, o filósofo da ciência pode até mesmo defender o determinismo social, isto é, a tese de que sempre que houver uma boa razão para a crença p de um sujeito, será o caso também que há causas não-epistêmicas para esta crença. A única restrição, para manter a compatibilidade com a posição do filósofo da ciência, é que tais causas não sejam indícios da falsidade da crença em questão, em especial, se ela é uma crença para a qual há boas razões.

O que o filósofo da ciência não pode aceitar é a tese reducionista, isto é, a tese de que razões boas ou ruins para uma crença, ou quaisquer outros fatores epistêmicos são constituídos apenas por fatores sociais, políticos, ideológicos ou psicológicos. Se fosse assim, então, em virtude da tese da simetria, não haveria de fato qualquer diferença substancial entre uma boa razão e uma razão ruim, entre uma crença justificada e uma injustificada, pois ambas teriam a mesma natureza e os mesmos constituintes. Por conseguinte, colapsaria a diferença entre racional e irracional, justificado e injustificado. Neste caso, a filosofia da ciência seria não só desnecessária, mas indesejável, pois trabalharia com base em uma distinção que não tem razão de ser, confundindo a nossa compreensão do fenômeno da aceitação de crenças.

O Programa Forte foi acusado de sustentar uma tese auto-refutante. Se toda crença tida como conhecimento tem causas não-epistêmicas que a determinam, então a crença dos sociólogos de que as teses do Programa Forte são conhecimento são elas mesmas determinadas também por causas não-epistêmicas. Esse ponto não é negado pelos defensores do Programa Forte. Na verdade, eles mesmo sustentam a reflexividade da sociologia do conhecimento, isto é, ela deve ser capaz de fornecer explicações causais para as suas teses e afirmações. Ora, então “não estariam os sociólogos obrigados a admitir que seus próprios pensamentos sejam determinados (causalmente) e até mesmo, em parte, socialmente determinados? Eles não teriam que admitir, portanto, na mesma proporção da força dessa determinação que suas próprias alegações são falsas?” 1(2008, p. 34). Mas como acabamos de ver, o fato de uma crença ser determinada causalmente por fatores não-epistêmicos não implica que ela seja falsa, irracional ou injustificada. E crenças verdadeiras, racionais e justificadas não têm de ser refratárias à determinação causal não-epistêmica.

Porém, se o defensor do Programa Forte pretende defender que a sociologia do conhecimento é conhecimento, então a reflexividade não é suficiente. Ele precisa mostrar (i) que há boas razões para as teses da sociologia do conhecimento e (ii) que as causas não-epistêmicas que explicam por que os sociólogos do conhecimento tomam as teses do Programa forte como conhecimento não são elas mesmas indícios da falsidade destas teses. Sem mostrar (i) e (ii), embora possamos ser causados a aceitar as teses do Programa Forte, não temos ainda qualquer razão para fazê-lo.

Por fim, o defensor do Programa Forte poderia defender a tese reducionista. Neste caso, as demandas (i) e (ii) não fariam sentido, pois razões para ou contra p não se distinguiriam e não seriam nada mais além de causas ou fatores não-epistêmicos. Mas então defender uma posição ou ter a pretensão de dizer algo correto ou verdadeiro ao sustentar uma tese seria algo muito diferente do que normalmente entendemos ou supomos entender por essas coisas. Caso contrário, a acusação de auto-refutação é legítima.


1 BLOOR, David. Conhecimento e imaginário social. São Paulo: Editora Unesp, 2008.   

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