Pular para o conteúdo principal

[192] Democracia, voto e falibilismo

É verdade que o indivíduo pode se enganar quanto a quais são os seus reais interesses. E se ele pode se enganar a esse respeito, ele pode tomar decisões que não sejam as melhores para ele. Mas também é preciso tomar muito cuidado quando se pretende dizer que uma pessoa ou toda uma classe de pessoas está enganada quanto aos seus reais interesses. Derrotados em eleições às vezes assumem essa posição quando criticam o voto de alguém ou de toda uma classe de pessoas. Se o crítico não tem uma concepção forte de natureza humana que já envolva o comprometimento com uma série de valores fundamentais, então ele terá de enfrentar uma dificuldade interpretativa que nem sempre é fácil de vencer: para saber se um indivíduo se engana em relação aos seus reais interesses é preciso saber quais valores esse indivíduo tem e que hierarquia esse indivíduo sustenta entre esses valores. Como muitos desses valores e mesmo as relações entre eles são latentes e se apresentam mais em atitudes do que em verbalizações e declarações do indivíduo, a tarefa de trazê-los para a superfície é complexa e exige um conhecimento não-estereotipado e não-superficial do indivíduo. Qualquer resultado na conclusão dessa tarefa, como em qualquer interpretação, deve ser tomado com muita cautela e prudência. Mas suponha que o crítico tenha uma concepção forte da natureza humana, a qual envolve um conjunto preciso de interesses que todo humano deve ter. Nesse caso, para criticar uma escolha do indivíduo, ele não precisa interpretar esse indivíduo e conhecer os valores com os quais esses indivíduo está efetivamente comprometido. Basta que ele mostre que essa escolha vai de encontro aos valores que estão embutidos na sua concepção de natureza humana. A crítica aqui consiste em dizer que o indivíduo, no final das contas, falha em perseguir a sua humanidade. Agora, se entre os valores embutidos na concepção de natureza humana defendida pelo crítico estão valores democráticos, como o da autonomia -e parece que o crítico precisa assumir esse valor se ele está criticando o voto de alguém, de outro modo ele deveria criticar não o voto, mas a instituição do voto-, então novamente o crítico precisa cuidar para apresentar a sua crítica com cautela e prudência, pois ele não pode esperar que os criticados tenham de acatar a sua concepção de natureza humana e todos os valores que ela eventualmente envolva. Cabe a ele, o crítico, se respeita a autonomia dos criticados, convencê-los da sua concepção da natureza humana. Numa democracia, a atitude falibilista parece ser um imperativo. 


Há um outro tipo de crítica que diz respeito não aos reais interesses do indivíduo, mas quanto aos meios para a satisfação desses interesses. Também é verdade que o indivíduo pode ter crenças bastante equivocadas sobre quais meios satisfazem melhor os seus interesses, e o seu voto pode falhar em atender os seus interesses. Essa é uma discussão menos inflamada, valores não estão em discussão, mas sim a eficácia dos meios. Ainda assim é necessária uma atenção muito aguda para a experimentação e a observação, e para a ciência em geral. Prudência e cautela, mais uma vez, são necessárias e imperativas.
 

É muito ruim para a democracia que tenhamos nos tornados anti-intelectualistas tenazes, que tenhamos resolvido rejeitar a ciência, o conhecimento, a filosofia etc. Mas o remédio para isso não passa for “forçar” conhecimento, o que, de qualquer modo, não se pode mesmo fazer.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

[200] A distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação, segundo Reichenbach

A distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação é normalmente apresentada como marcando a diferença entre, por um lado, os processos de pensamento, teste e experimentação que de fato ocorreram em um laboratório ou em um ambiente de pesquisa e que levaram ou contribuíram para alguma descoberta científica e, de outro, os processos de justificação e validação dessa descoberta. Haveria, portanto, uma clara diferença entre descrever como cientistas chegaram a fazer certas alegações científicas, o que seria uma tarefa para as ciências empíricas, como a sociologia, a psicologia e a antropologia da ciência, e justificar essas alegações, o que seria uma tarefa para a epistemologia, uma disciplina normativa e não-empírica. Essa distinção é corriqueira em debates acerca do escopo da filosofia da ciência e teria sido explicitada inicialmente por Reichenbach. Contudo, quando examinamos a maneira como ele circunscreveu as tarefas da epistemologia, notamos que alguns elemento...

[201] A ética da crença

Voltei ao assunto da ética da crença (veja aqui a minha contribuição anterior 194 ) para escrever um texto que possivelmente será publicado como um verbete em um compêndio de epistemologia. Nesta entrada, decidi enfatizar três maneiras pelas quais a discussão sobre normas para crer se relaciona com a ética, algo que nem sempre fica claro neste debate: (1) normas morais servem de analogia para pensar normas para a crença, ainda que os domínios normativos, o epistêmico e o moral, sejam distintos; (2) razões morais são os fundamentos últimos para adotar uma norma para crer e (3) razões morais podem incidir diretamente sobre a legitimidade de uma crença, a crença (o ato de crer) não seria assim um fenômeno puramente epistêmico. O item (3) representa sem dúvida a maneira mais forte pela qual, neste debate, epistemologia e ética se entrelaçam. Sobre ele, abordei sobretudo o trabalho da Rima Basu que, a meu ver, é uma das contribuições recentes mais interessantes e inovadoras ao debate da ét...

[102] Relativismo e Irracionalismo

Irracionalismo é a tese de que os nossos julgamentos são arbitrários. O irracionalismo pode aplicar-se apenas a um setor do conhecimento humano. Por exemplo, podemos ser irracionalistas morais. Assim, julgamentos morais sobre como agir, o que fazer, o que é certo e errado são arbitrários, não temos uma razão para eles, eles não se fundam em nada que possa legitimá-los diante dos outros. Podem ser fomentados por nossas emoções ou desejos, mas nada disso tira a sua arbitrariedade diante da razão. Chegaríamos ao irracionalismo moral se tivéssemos razões para pensar que não há nada na razão que pudesse amparar julgamentos morais. Isto é, dado um dilema moral do tipo "devo fazer X ou ~X", não há ao que apelar racionalmente para decidir a questão. Donde se seque que, qualquer decisão que você tomar, seja a favor de X, seja de ~X, será arbitrária. Como poderia a razão ser tão indiferente à moralidade? Primeiro vejamos o que conferiria autoridade racional a um julgamento moral, pois ...