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[202] Filosofia Jabuticaba: algumas reflexões


O professor João de Fernandes Teixeira publicou recentemente o livro Filosofia Jabuticaba (2021), onde ele apresenta o seu diagnóstico para a ausência de pensamento filosófico genuíno no Brasil e propõe algumas saídas para essa situação aparentemente paradoxal, haja vista que a comunidade brasileira de filosofia é, em número, uma das maiores do mundo. Esse trabalho é a sua resposta ao convite para participar do Dossiê Filosofia Autoral, que será publicado na revista Trans/Form/Ação em 2022.

Eu recomendo o livro vivamente, trata-se de uma contribuição bem informada e genuína para a compreensão de nós mesmos enquanto uma comunidade filosófica, como chegamos até aqui e quais possibilidades temos presentemente no nosso horizonte. Eu espero que este livro seja lido sobretudo pelas filósofas e filósofos em formação e que ele tenha o devido impacto nas novas gerações que darão continuidade e poderão dar um novo curso a nossa comunidade, preservando o que de melhor fizemos de nós mesmos até agora.

Há várias discussões muito interessantes e ricas no Filosofia Jabuticaba, mas eu vou destacar três afirmações ou posições (elaborações a partir do texto do Teixeira, não são citações) que eu gostaria de comentar. São elas:


1. Não há mais espaço para grandes sistemas filosóficos. Logo, a esperança de que o Brasil venha a produzir um grande gênio filosófico como Hegel ou Aristóteles não tem lugar;
2. A nossa melhor oportunidade para produzir pensamento filosófico novo e genuíno é engajar-se em algumas das discussões contemporâneas e de natureza cosmopolita ou universal;
3. Precisamos superar urgentemente a falta de autoestima e confiança, o desprezo que temos por nós mesmos e pelo que produzimos.
 

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Não tenho muito a acrescentar em relação à primeira afirmação. Estou de pleno acordo com Teixeira quanto a este ponto. A filosofia acadêmica, como as demais disciplinas, se especializaram agudamente nos dois últimos séculos e as discussões estão tão ramificadas e técnicas que é praticamente impossível para alguém com as limitações cognitivas humanas, por maior que seja o seu gênio, sistematizar em uma teoria filosófica todo o pensamento filosófico acumulado neste período. Dito isso, é preciso, no entanto, ter uma certa cautela em relação à especiação disciplinar na própria filosofia. Ecoando o filósofo John Cottingham (2009), a filosofia não deveria abdicar da função de sistematizar, ainda que com pretensões comedidas e falíveis, o nosso conhecimento e de sintetizar em um todo mais abrangente as nossas diversas atividades práticas e intelectuais. Não vamos entender a nós mesmos, uma preocupação que está conosco desde os primórdios da filosofia, se não nos engajarmos neste tipo de projeto. Ademais, a filosofia não é ciência normal e não deveria buscar mimetizar todos os passos dados pela ciência. A ciência tem progredido e fornecido conhecimento cada vez mais preciso e acurado do mundo, como explica Thomas Kuhn (1997), pela especiação. Mas isso não significa que tenhamos de segui-la completamente nesta direção. Como disse, a filosofia tem outros objetivos além da obtenção de verdades cada vez mais acuradas e precisas. 

Por fim, a filosofia nasce de e procura dar vazão a inquietações que são compartilhadas por leigos e especialistas. Questões sobre o sentido da vida, a natureza da justiça, a relação entre mente e corpo, e os limites do conhecimento são indagações que levantamos no dia a dia, ainda que mediadas e atravessadas por particularidades do contexto de cada um. Se a filosofia se fecha ao leigo e o afasta por meio de um jargão muito especializado e discussões técnicas, ela deixa de cumprir uma função existencial e social que é uma das suas principais razões de ser. Neste aspecto, a situação da ciência é um pouco diferente. A ciência não precisa, embora ela possa, saciar qualquer curiosidade ou inquietação existencial do leigo desde que propicie intervenções e tecnologias que sirvam ao bem-estar da população. As entranhas da ciência podem permanecer herméticas ao leigo desde que a sua superfície e o seu exterior lhe sejam úteis. Não me interessa aqui a discussão de se a filosofia pode ou não ser útil no mesmo sentido em que as ciências são. Meu ponto é que as entranhas da filosofia, o próprio filosofar, precisa estar acessível também ao leigo para que as suas inquietações sejam contempladas. A filosofia não vai responder às inquietações filosóficas do leigo com crenças ou conhecimentos filosóficos que resultam de discussões altamente técnicas que ele não consegue acompanhar e que ele teria de assimilar cegamente. O leigo precisa participar desta discussão de alguma maneira, ele precisa vivenciar e experienciar a própria filosofia. Obviamente, não estou sugerindo que a especiação disciplinar e a discussão técnica devam ser evitadas ou combatidas na filosofia. Estou afirmando que a filosofia acadêmica, feita nas universidades, precisa abrigar também discussões menos abstrusas. Aliás, é para isso que a extensão existe.
 

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Em relação à segunda afirmação, é importante dar o contexto em que ela é feita. Teixeira toma como contraste uma outra opção para enfrentar o problema da ausência de filosofia genuína no Brasil que é a proposta de uma filosofia voltada para os temas brasileiros, a qual ele batiza de “filosofia jabuticaba”. Por trás desta proposta, há uma certa expectativa monumental pelo aparecimento de um grande gênio filosófico brasileiro que extrairia a sua inspiração dos nossos problemas nacionais e, por conseguinte, geraria “o pensamento grandioso legitimamente nacional”. Há dois problemas com essa expectativa. O primeiro, como já mencionei, é que a era dos grandes sistemas e, por conseguinte, dos grandes gênios já passou. Isso vale para a ciência também. Estamos na era da big science, da ciência dos grandes grupos de pesquisa. A filosofia ainda é muito individualista, mas paulatinamente vai se abrindo para formas mais colaborativas da produção do conhecimento. Em algumas áreas, como na filosofia experimental, isso é mais saliente. Minha aposta é que veremos cada vez mais pesquisa filosófica envolvendo outras disciplinas, isto é, interdisciplinar e realizada por grupos médios ou grandes de pesquisa. O segundo problema com a expectativa monumental de um gênio nacional não tem a ver com a monumentalidade, mas com a ideia de uma filosofia nacional. Em grande medida, concordo com o Teixeira que



A filosofia não tem objetos específicos e aborda todos os tipos de questões, desde a existência de Deus até as implicações éticas das mudanças climáticas. Por isso, defender a abordagem de temas especificamente brasileiros para constituir uma “filosofia brasileira” é um contrassenso. Nunca haverá filosofia brasileira. Haverá filósofos brasileiros, independentemente dos temas que eles abordem.


Apesar disso e o próprio Teixeira reconhece, os problemas filosóficos têm um lugar e uma história. Quer problema mais local e historicamente situado que o da legitimidade do Estado? Esse foi um problema concreto e vivido pelos europeus que participaram e presenciaram a formação dos estados nacionais na modernidade. Mas não deixa de ser um problema cujo interesse atinge qualquer povo que contemple essa forma de organização social ou outras similares, ou mesmo que venha a refletir sobre o poder político em geral. Neste sentido, a reflexão filosófica tem essa peculiaridade de tornar um problema concreto em um problema de interesse cosmopolita. Mas se é assim, não vejo nenhum problema em darmos atenção também e não exclusivamente a problemas concretos que nos afligem de modo mais incisivo e direto, como é o caso da desigualdade social. Não seria desejável ter mais filósofas e filósofos morais e políticos pensando sobre o assunto? Não sobre as suas causas ou efeitos, pois isto é assunto para a economia e as ciências sociais, mas sobre como podemos melhor articulá-la e pensá-la e sobre como podemos e devemos reagir a ela. Justamente por seremos uma nação marcada por desigualdades extremas, pode ser que estejamos em uma situação epistemicamente privilegiada para notar certas relações estruturantes da desigualdade social que são menos visíveis àqueles que se socializaram e vivem em sociedades menos desiguais. Assim, o caráter situado dos problemas filosóficos não precisa ser visto como um limitador, ao contrário, é um potencializador. Diferentes comunidades podem estar melhor posicionadas para explorar certos problemas justamente pela situação em que se encontram. Por que não iríamos tirar proveito disso?

Suponhamos que problemas concretos e que nos afligem agudamente despertassem o interesse de vários de nós, ensejando a formação de comunidades de filósofos e filósofas que se leem, se discutem e se citam e que oferecem reflexões que engajam a nossa população a pensar sobre esses problemas. Se assim fosse, então me parece que teríamos um ótimo caminho para a promoção de filosofia genuína, embora não o único. De modo algum estou sugerindo que temas sociais constranjam centralmente a nossa atividade. Assim como a ciência reduzida à tecnologia perde em potência e fenece em algumas poucas décadas, como já foi historicamente testemunhado, a filosofia reduzida às questões sociais e morais perderia em fecundidade e provavelmente também sucumbiria. Em todo caso, parece que é desejável que desenvolvamos a capacidade de pensar as questões do nosso tempo e lugar e que estejamos em condições de engajar a nossa população nestas reflexões. Se dermos o devido tom filosófico a elas, é de se esperar que essas reflexões despertarão o interesse de outros povos também.

Sobre a participação em discussões que já estão em curso no cenário filosófico internacional, não há dúvida de que elas são fundamentais para a nossa inserção e melhoria, e de que não há qualquer boa razão, seja na filosofia, seja na ciência, para nos isolarmos. Contudo, como exploro no próximo comentário, precisamos antes ou ao mesmo tempo superar a nossa falta de confiança filosófica. E por razões que são trazidas pelo próprio Teixeira em seu livro, não vamos adquirir essa confiança através do olhar dos estrangeiros. Temos de cultivá-la sobretudo entre nós, conversando entre nós. Se nós mesmos não nos acharmos interessantes, por que os outros iriam?
 

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Uma vez enunciada, não creio que alguém discordaria da terceira afirmação e da prescrição que ela encerra. Contudo, Teixeira faz muito bem em chamar a atenção para como o desprezo por nós mesmos está enraizado em nossa cultura e em nada foi atenuado nas nossas comunidades científicas e menos ainda na comunidade filosófica brasileira. Prova disso é que não nos estudamos, discutimos e citamos. É praticamente um tabu citar outros brasileiro(a)s em nossos trabalhos. Mesmo na área em que supostamente damos o nosso melhor, a história filosofante da filosofia, e em relação à qual já deveríamos reconhecer a nossa inegável perícia, nos engajamos majoritariamente com intérpretes estrangeiros e negligenciamos os brasileiros. É como se cada novo estudioso de Descartes, Hegel ou Platão no Brasil tivesse que começar o seu trabalho interpretativo sozinho, contando apenas com a ajuda dos distantes estrangeiros europeus e americanos. Por que não confiamos em nós mesmos como hábeis em fazer X (história da filosofia, ciência etc.) mesmo depois de nos termos submetido a um árduo treinamento para nos tornarmos hábeis fazedores de X?

O hábito de desprezar a nós mesmos está arraigado, é fruto dos processos colonialistas que formaram a nossa sociedade e cultura. Assim o colonizador nos manteve e nos mantém cativos, intelectuais subalternos. O colonizador manterá o controle sobre o nosso intelecto enquanto procurarmos apenas ou sobretudo no olhar dele o reconhecimento do que e quem somos. O que encontramos no seu olhar, majoritariamente, é o desprezo por nós, a indisposição de aprender o que quer que seja conosco. Com raras e inexpressivas exceções, não nos convidam como keynote speakers de seus eventos, como editores das suas revistas alegadamente internacionais, tampouco nos leem ou citam, mesmo os nossos textos escritos em inglês ou em alguma outra língua europeia e publicados nas revistas que eles mesmos consideram de alto nível. Dessa maneira, sob o olhar deles, aprendemos a nos desprezar desde o ato inaugural da formação da nossa sociedade. Como hábito, esse auto-desprezo é tão transparente que temos dificuldade de percebê-lo, é uma presença invisível que, no entanto, marca e modula cada um de nossos passos e pensamentos. Se não nos desvencilharmos desse mau hábito, especialmente por meio de novas atitudes e práticas pedagógicas, pensando sobretudo nas novas gerações de filósofas e filósofos brasileiros, não vamos, de fato, produzir sistematicamente filosofia, qualquer que seja ela, tampouco uma tradição filosófica viva e rica de discussão que nos sirva e que possa despertar também o interesse da nossa própria população e de outros povos.

Um relato pessoal que vai ao encontro da reflexão acima. Um dos primeiros textos que eu publiquei em periódicos nacionais tinha originalmente como centro do debate um artigo de um filósofo brasileiro. A questão tratada era uma tradicional da epistemologia, e eu estava interessado no diálogo com a abordagem à questão proposta por este colega brasileiro. Contudo, um dos pareceristas, embora reconhecendo a qualidade da discussão, condicionou a aprovação do meu texto a uma reformulação do debate, de modo que eu desse menos destaque ao texto do brasileiro e mais aos autores americanos e europeus que mantinham posições similares a do brasileiro. Hoje, não é sem alguma vergonha que confesso ter atendido essa demanda, embora, na época, sem uma posição segura no mercado de trabalho, me vi impelido a fazer essas alterações. Não acho que o parecerista fez essa demanda por má-fé, ele ou ela provavelmente estava mirando a qualidade do texto. Mas isso significa que o desprezo por nós mesmos não está apenas arraigado em hábitos individuais, ele está aparentemente institucionalizado também. Temos de ficar muito alertas ao desestímulo que implicitamente damos à discussão entre nós.
 

Uma sugestão de leitura

Aproveitando a oportunidade, gostaria de sugerir um outro livro nesta temática, que talvez já não esteja tão presente na memória da nossa comunidade, mas que me marcou muito quando o li, mais de 20 anos atrás, ainda aluno de graduação: falo do livro de Gonçalo Palácios, De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio (1998).
 

Referências

COTTINGHAM, J. What is Humane Philosophy and Why is it At Risk? Royal Institute of Philosophy Supplement, v. 65, p. 233–255, out. 2009.

KUHN, T. A Estrutura Das Revoluções Científicas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1997.

PALÁCIOS, G. A. De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio. Goiânia: Editora da UFG, 1998.

TEIXEIRA, J. DE F. Filosofia Jabuticaba. São Paulo: Editora FiloCzar, 2021.

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