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[204] Ninguém conquista nada absolutamente sozinho

A excelência exige dedicação e esforço. Ninguém se torna perito em algo sem prática contínua e preferencialmente assistida por anos a fio. Certamente merece mérito quem adquire uma habilidade louvável. Sim, o tipo de habilidade importa. Não sei se estaria disposto a conferir mérito a alguém que se tornou um hábil torturador depois de anos praticando a tortura e aperfeiçoando as suas técnicas. Certamente merece mérito quem supera uma condição desabilitadora, como o recém cego que se dedica a refinar a sua audição e passa a se locomover com base nela. O mesmo claro se aplica à pessoa que supera a sua condição de pobreza ao "vencer na vida". 

Ao mesmo tempo, o discurso sobre mérito tem uma coloração muito individualista, embora não precise e não deva ser lido assim. Normalmente vemos o mérito como uma conquista completamente pessoal. Contudo, isso é um grande equívoco. Todo o entorno colabora e é fundamental para qualquer aprendizagem e conquista. Que diferença faz para uma criança a presença de pais que a apoiam, encorajam e reforçam os seus primeiros passos! Compare esta criança com outra cujos pais não apoiam, não encorajam e até punem, seja fisicamente, seja pelo desdém ou reprovações verbais, os seus primeiros passos. Qual delas desenvolverá em maior grau a autoconfiança e a autoestima que são absolutamente cruciais e fundamentais para o desenvolvimento de qualquer outra habilidade e capacidade? Quão injusto é querer comparar a leitura e a escrita de uma criança de nove anos que desde pequena esteve cercada de livros, ouviu os pais ler histórias para ela, teve as suas próprias leituras acompanhadas afetivamente por eles, era cercada de colegas com as mesmas condições e interesses de leitura com uma outra que não teve nada disso e mal tinha acesso a livros na suas escola periférica. Alguém em sã consciência negaria a diferença abismal de um entorno e outro para a formação das habilidades e, portanto, para as conquistas dessas crianças? Isso não significa que a primeira criança não terá nenhum mérito pelas capacidades de escrita e leitura que ela vier a desenvolver, mas que esse mérito, como qualquer outro, é compartilhado com o entorno sem o qual seria impossível ou muito improvável ela chegar onde chegou. 

Note que o entorno não é apenas material, mas também e sobretudo afetivo. Esses dias circulou bastante a história do Guilherme, o rapaz que passou no vestibular de Medicina da USP e pagou parte do seu cursinho com o trabalho de faxineiro. Ninguém vai negar, obviamente, o louvável feito e mérito desse rapaz, que sim, precisa ser lembrado e cultivado. Mas não esqueçamos da história toda. A outra parte do cursinho foi paga por uma professora do Guilherme. Não há como negar o impacto monumental para a autoestima e a autoconfiança de Guilherme, bem como para a sua motivação, a sua professora estar ali sempre presente e acreditando nele. O próprio Guilherme, não tenho dúvida, será eternamente grato a essa professora e compartilha com ela a felicidade da sua conquista. Na verdade, conquistaram juntos, o que torna a alegria ainda maior. Compare Guilherme com outro rapaz pobre que não encontrou um(a) professor(a) que o apoie e ajude, a mãe faleceu quando nasceu, o pai, sempre impaciente, batia nele quando pequeno e agora ainda mais quando os primeiros sintomas da esquizofrenia, que nenhum dos dois compreende, começaram a aparecer. Se achamos que mérito é só uma questão pessoal, devemos pensar que esse outro rapaz só não alcança o que Guilherme alcançou porque não quer ou não tem força de vontade suficiente? Não seria absurdamente injusto fazer essa projeção e comparação? E o que é a "força de vontade" senão mais uma capacidade que adquirimos e aprimoramos e cuja magnitude alcançada depende também de todo o entorno favorável e desfavorável ao seu desenvolvimento? Já pensaram nisso? 

O modelo do mérito que foca apenas no indivíduo nos leva a ignorar as diferenças do entorno que são tão relevantes quanto o empenho e a dedicação do indivíduo. Pior, leva o próprio indivíduo a ver-se como o único responsável pelo seu fracasso. Também dificulta o indivíduo a focar a sua atenção no que pode ser mais efetivo para superar os obstáculos que impedem ou atrapalham o seu florescimento. Às vezes, o que ele precisa fazer é sair do ambiente familiar tóxico, mas ele também não poderá fazê-lo sem antes construir uma rede mínima de apoio, ou acabará trocando a toxicidade pela solidão, que também é debilitante. O modelo do mérito focado apenas no indivíduo é tóxico para o próprio indivíduo e não fomenta sentimentos sociais, como o de empatia, gratidão e solidariedade, que não só são mais efetivos para o florescimento das habilidades dos próprios indivíduos mas também potencializadores da felicidade. A alegria conjunta é muito maior que a alegria solitária. O modelo do mérito focado apenas no indivíduo também tira da sociedade a responsabilidade de tornar o meio mais favorável ao desenvolvimento das potencialidades de todos. 

Um último comentário sobre o mérito de quem "venceu na vida". Vencer na vida normalmente significa sair da condição de pobreza, o que só é possível em sociedades desiguais (ao menos se temos uma compreensão relativa da pobreza, que é a que prevalece quando o indivíduo se compara com os outros membros da sua comunidade). Claro que é bom para o indivíduo sair da pobreza e merece mérito, bem como todo o seu entorno, por fazê-lo. Mas sair da pobreza não é intrinsecamente valioso como talvez seja a produção de arte ou ciência. Se sair da pobreza fosse intrinsecamente valioso, então teríamos uma forte motivação para manter a desigualdade que torna possível o indivíduo conquistar essa façanha. Não preciso dizer que isso é absurdo e que um mundo menos desigual em que ninguém precisa "vencer na vida" nesse sentido é muito melhor do que um em que a maioria precisa fazê-lo. Mas um mundo sem arte e ciência não seria certamente um mundo melhor, muito pelo contrário. E mais uma vez, o modelo do mérito focado apenas no indivíduo enviesa a nossa atenção e não nos deixa ver com clareza que somos todos responsáveis, cada um conforme a sua capacidade, por essa situação funesta em que a maioria precisa "vencer na vida". Quão cruel é jogar para o indivíduo algo que só pode ser resolvido coletivamente.

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