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[139] Amoralidade e o sentido da razão.

Bernard Williams, diante do indivíduo que adota a postura amoral em virtude da falta de razões para agir assim ou assado, pois não vê sentido em nenhuma delas, diz que, neste caso, a falta não é da racionalidade, mas da humanidade. A humanidade fracassa diante deste indivíduo em lhe dar ajuda e esperança. Não lhe faltam razões, o que lhe falta é ver sentido nas razões. Porém, as razões não têm como fazer o indivíduo perceber tal sentido. O tecido envolvente que poderia despertar esperança no indivíduo não é o da racionalidade, mas o das relações humanas. O amoral por falta de sentido é o indivíduo que foi alijado da humanidade ou que se alijou da humanidade. Em todo caso, soa-me como uma fraqueza da razão dizer que ela não consegue embutir o seu próprio sentido, o que obviamente não implica que o sentido lhe seja acoplado irracionalmente. Significa apenas que isoladamente ela não o produz.

E, no entanto, Williams está correto. Nenhum argumento é capaz de fazer com que uma pessoa veja sentido nas razões que lhe são apresentadas. Reconhecer sentido nas razões não é assunto de
convencimento. É preciso deixar claro o tipo de sentido em jogo. Não se trata obviamente do sentido expresso pela razão. Não é uma questão de saber o conteúdo de uma razão. Isto poderia ser elucidado por uma explicação ou paráfrase e, portanto, por um argumento. "Reconhecer ou ver sentido em uma razão" deve ser aqui entendido assim: "esta razão é, para mim, significativa, eu me importo com ela. Ao pensar nesta razão, sinto-me envolvido com ela, comprometo-me com ela. Há um certo sabor fenomênico ao contemplar esta razão, sinto-me emocionalmente direcionado em favor dela".

Não há argumento que possa produzir envolvimento e comprometimento se o indivíduo já não tem nenhum comprometimento e envolvimento. Se ele tem algum, então pode-se produzir argumentos em favor do comprometimento com coisas que se seguem daquilo com o qual o sujeito já está comprometido. Mas se nada lhe é significativo, se ele não vê sentido em nada, se ele não se sente envolvido com nada, então não há argumento que o faça se envolver. A única maneira de ele vir a se envolver com alguma coisa é através do envolvimento. Explico. Ao relacionar-se com o outro, um outro que envolva-se com ele, que se mostre comprometido com ele, que se preocupe com ele, pode-se esperar que, por estas interações genuinamente humanas, desperte-se nele o comprometimento e a preocupação com o outro. Esta já é uma situação mínima em que não se pode mais dizer que nenhuma razão lhe parece ter sentido. Não elimino por completo a possibilidade de que o indivíduo venha a desenvolver de modo egoísta o comprometimento consigo mesmo. Se isto é possível ou não, de qualquer modo está licenciada a conclusão: não há, na primeira pessoa, qualquer razão sem um mínimo de sentimento e envolvimento. Quem perde por completo a capacidade de se envolver, perde a capacidade de pensar propriamente.

Comentários

Lucas Lazzaretti disse…
Caro Eros, mais uma vez seu texto motivou o meu pensamento. Os conceitos interligados de razão, humanidade e sentimento fizeram com que eu repensasse motivações racionais que antes não via. Pois bem, mais uma vez sem grandes pretenções comento algo que julgo pertinente. Concordo com sua última frase em que pontua, "Quem perde por completo a capacidade de se envolver, perde a capacidade de pensar propriamente.". Na primeira pessoa o envolvimento é um espelho de si mesmo quando ligado ao sentimento e envolvimento. Tomo aqui um termo que em sua origem muito significa. Falo sobre a palavra "simpatia". Se voltada em suas origens - coisa que me abstenho de fazer aqui - encontraremos um significado para "simpatia" próximo a "capacidade de se colocar no lugar do outro".Ou seja, tomo os seus olhos e vejo o que você vê. Qualquer razão colocada para uma pessoa com capacidade de executar essa "simpatia" terá um retorno maturado, já que não só será analisada do ponto de vista de quem recebeu a razão, mas também de outros pontos de vista. Aquele que recebe a razão para a humanidade e tem capacidade de "simpatia", pode não concordar com o que motiva essa humanidade, mas nem por isso afrontará diretamente essa humanidade, já que lhe é possível ver o que a motivou. Consideração feita, vamos a um ponto que muito me preocupa e foi lendo seu texto que recordei-me. Mas não seriam os grandes atos humanos motivados por uma razão? E quero chegar com isso, que em um embate de interesses humanos algumas trocidades são derivadas de razões mal intencionadas. Vejamos o lugar-comum que é o holocausto da segunda guerra mundial. Quando questionados no tribunal de Nüremberg os nazistas julgados alegavam que estavam cumprindo ordens, ou em resumo, que eram bons cidadãos. Eles tinham por fundo todo um discurso de avanço e superioridade da raça ariana, que por mais monstruosa que tenha sido essa legitimação era de fato algo voltado para seres humanos, isso não negamos. Segue-se então que quando o discurso da raça ariana é colocado em contraponto aos judeus, não haveria aí um embate entre seres humanos? Entre discursos voltados aos seres humanos? Entre discursos que se pretendem racionalmente explicáveis? Posso estar pronunciando uma grande besteira, mas sinto que a capacidade de se envolver falada por você é também a capacidade de exercitar a "simpatia", e só assim teríamos uma recepção e processamento das razões que nos chegam.
Mais uma vez espero por sua resposta, e peço desculpas se me estendi no comentário. Seus bons textos impulsionam meus pensamentos.
Eros disse…
Caro Lucas,

Se os nazistas se importavam uns com os outros, se eles se comprometiam com o bem-estar uns dos outros, então o que lhes faltava não era o envolvimento ou mesmo a simpatia, mas talvez um exercício pontual e mais atento da simpatia que lhes fizesse perceber a ilusão da diferença na qual se apoiavam: raça ariana vs. raça judaica. Esta é uma falsa distinção, que, no entanto, tinha raízes culturais e políticas. De qualquer modo, argumentos são suficientes para demovê-las, eu acho. Faltou ali mais razão que aquela condição básica da humanidade: o envolvimento ou a simpatia. Talvez sim um exercício mais largo e abrangente da simpatia/empatia. Eu posso ser extremamente hábil em me colocar no lugar dos meus parentes, mas não no lugar de pessoas que desconheço, o que não significa que eu seja incapaz de me envolver e de me comprometer com algo ou com alguém. O ponto fundamental aqui é quão abrangente vai ser o seu envolvimento/comprometimento. E este quão abrangente parece-me questão de convencimento racional.
Giovani Felice disse…
Oi Eros

Em primeiro lugar, excelente postagem!
Eu acho que se pode conectar o que está dizendo -- ou pelo menos, eu pensei em relação a isso -- com as críticas de Williams a ideia de uma moralidade inteiramente impessoal, imparcial e inteiramente alijada dos sentimentos. Como sabes, a ideia de uma moralidade impessoal e imparcial, para Williams, está ligada a uma outra: a de alienação moral. É como se as demandas da moralidade fossem tais que se elas exigessem que abandonássemos aqueles projetos que nos são mais caros (alguns dos quais em estreita relação com aquelas pessoas que nos são mais caras), então nenhum outro curso de ação seria moralmente permitido. Para usar tuas palavras, é como se nos fosse exigido que abandonássemos por completo nossa capacidade de se envolver. Em outras palavras, o sujeito amoral e o sujeito que pretende estar seguindo uma moralidade estritamente imparcial e impessoal talvez não estejam em pontos tão extremos um do outro-- talvez a diferença entre eles consistindo em que o que para um é carência, para o outro é saturação.

Um grande abraço.
Eros disse…
Grande Giovani,

Excelentes observações, não tinha pensado nisso. Tenho a impressão de que os apontamentos de Strawson sobre as relações interpessoais também vão nesta direção; não há como a moral ser impessoal a não ser destruindo o que entendemos por humanidade, relações e envolvimento. Mas, neste caso, de onde a moral impessoal extrairia a sua força? Estaríamos sim muito mais inclinados a generalizar a atitude objetiva, o que, no meu entender, é deixar de pensar propriamente.

Forte abraço,
Eros.

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