(A) O que fulano disse é verdadeiro?
Apesar da aparente simplicidade da questão, ela esconde certa complexidade. A pergunta, na verdade, se desdobra em duas: (1) O que fulano disse? e (2) Aquilo que fulano disse é verdadeiro? Assim, há várias maneiras de erramos ao responder a questão. Suponhamos que fulano tenha dito "bla bla bla". Podemos errar ao responder a questão (A) se dissermos "não", quando, na verdade, "bla bla bla" é verdadeiro ou "sim", quando falsa. Mas também podemos errar ao responder a questão se identificarmos erroneamente o que fulano disse, a despeito de darmos a resposta correta para o que ele realmente disse. Assim, se identificarmos o que fulano disse como "blu blu blu" e respondermos "sim" à questão (A), mesmo que "bla bla bla" seja verdadeira, teremos falhado em responder a questão.
Quando lemos um texto, para cada afirmação lida, podemos fazer a pergunta (A). Porém, como (A) se desdobra em duas questões, conforme enfatizamos mais (1) ou (2), temos dois tipos de leitura possíveis. Ou seja, podemos ler tendo por finalidade muito mais saber o que fulano realmente disse do que se o que ele disse é verdadeiro ou falso ou, ao contrário, pode nos interessar muito mais em saber se o que fulano aparentemente disse é verdadeiro ou falso do que o que ele realmente disse. Óbvio que, para saber uma coisa, temos de saber em boa medida a outra. Estes saberes não são independentes entre si. Ainda assim, o resultado da leitura sofre influência da questão enfatizada. Se enfatizamos a primeira questão, obtemos um tipo de leitura que se chama de dicto; caso enfatizamos a segunda questão, obtemos a leitura de re. Esses tipos de leitura estão muito bem formuladas por Brandom na passagem abaixo.
Eu sustento que a leitura de um texto através do seu conteúdo conceitual se dá pela exploração dos papeis inferenciais das suas afirmações: determinar com o que alguém estaria comprometido ao aceitar tais afirmações e o que poderia legitimá-lo a tais comprometimentos, qual seria a evidência a favor e contra tais comprometimentos e para o que eles seriam evidência a favor e contra. As inferências em questão são tipicamente inferências com várias premissas. Isto significa que para cada afirmação que se identificou como central ou fundamental, há uma escolha possível com respeito à fonte a partir da qual extrair hipóteses auxiliares com as quais a afirmação é unida para determinar o seu papel inferencial. Uma leitura de dicto restringe as premissas colaterais disponíveis a outras afirmações feitas no texto (ou corpus) em questão. Uma leitura crítica ou de re, entretanto, busca as suas hipóteses auxiliares não nas afirmações atribuídas ao autor sendo lido, mas nas afirmações defendidas por aquele que está fazendo a leitura - não a partir do que mais o autor toma como sendo verdadeiro, mas a partir do que é verdadeiro, segundo o leitor. O resultado é uma avaliação do que realmente se segue e seria evidência para as afirmações em questão, o que quer que seja que o autor tenha pensado. Eu não penso que uma ou outra maneira de abordar um texto, por exemplo, um texto filosófico, é "melhor" do que a outra. Cada uma oferece uma perspectiva legítima a respeito do conteúdo conceitual, isto é, o papel inferencial das afirmações feitas em um texto, cada uma provê um tipo distintivo de iluminação do texto que ela discute. Na medida em que esteja claro com que conjunto de regras se está comprometido, nenhum empreendimento deve ser pensado censurável em princípio. Tal é, de qualquer modo, a metodologia hermeneutica que a minha semântica inferencialista subscreve (Brandom, Sketch of a Program for a Critical Reading of Hegel).
Eu diria também que a leitura de dicto tenta determinar o que é verdadeiro no texto a partir da compreensão que se tem do texto, ao passo que a leitura de re tenta determinar a compreensão do texto a partir do que é verdadeiro. Estas leituras se complementam. A leitura de dicto está associada mais ao fazer história da filosofia e a leitura de re, ao fazer filosofia.
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Leituras:
Machado, A. História da Filosofia, Exegese e Filosofia.
Comentários
De qualquer maneira, parabéns pelo texto.
Eu penso que o par "filosofia/história da filosofia" é menos carregado politicamente e mais frutífero para pensar as mais diversas práticas que encontramos mundo afora nos departamentos de filosofia do que o par "analítico/continental". Este último par em vários contextos provoca tantas emoções que eu o acho em geral argumentativamente catastrófico. Sem contar que é muito mais difícil/nebuloso dar condições necessárias e/ou suficiente para os conceitos deste par.