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[129] Liberdae e compulsão III

Continuando a discussão de [127] e [125]:

Por que o comportamento compulsivo é ruim? Porque ele impede que tenhamos relações interpessoais. Esta é uma descrição de um valor da nossa sociedade. Agimos e julgamos assim. Conforme a compulsão é mais ou menos intensa, ela dificultará mais ou menos o comprometimento com as relações interpessoais e, portanto, ela será considerada mais ou menos maléfica. 

Se, no entanto, a vontade compulsiva é boa, isso não abrandaria o julgamento que fazemos da compulsão como ruim? Mesmo se a vontade compulsiva é boa, se o grau de compulsão é ruim, o comportamento geral do indivíduo será considerado mais maléfico que benéfico. Se uma pessoa é compulsiva por ajudar os outros, mas para saciar esta compulsão deixa de lado o cuidado de si, se esquece de se alimentar, e não ocupa o seu tempo com outras coisas que a ajuda ao próximo, dificilmente ela estará dando a atenção necessária à manutenção das suas relações interpessoais e estará até mesmo sendo irresponsável com elas, o que nos legitima a
dizer que mesmo neste caso, a compulsão é ruim. 

Certamente, neste caso, estaremos menos dispostos a intervir sobre a pessoa como estamos se a vontade viciada é maléfica para ela e para os que estão ao seu redor. A avaliação do comportamento geral da pessoa quando a vontade compulsiva é ruim é a de um comportamento pior do que quando a vontade compulsiva é boa. Evidente, mas a compulsão, de qualquer forma, não deixa de ser avaliada como ruim em qualquer circunstância. Quando ela é extrema e a vontade é ruim, intervimos e forçamos o sujeito a se tratar. Quando ela é extrema e a vontade é boa, não forçamos, mas certamente insistimos, pelo próprio bem da pessoa, para que ela se trate. 

A compulsão vem em graus e evidentemente também o julgamento do quão ruim ela é. Se uma pessoa tem uma vontade compulsiva boa e uma compulsão de baixo grau, não só toleramos como nem nos importamos. Se uma pessoa tem uma vontade compulsiva ruim e um compulsão de baixo grau, toleramos e talvez nos incomodemos um pouco. 

Assim, o papel da vontade compulsiva ser boa ou ruim é o de abrandar ou intensificar a nossa rejeição do comportamento compulsivo. A vontade compulsiva boa ou ruim não repercute no julgamento que fazemos do quão livre é o sujeito. O julgamento que fazemos do quão livre é o sujeito depende do quão compulsivo é o seu comportamento.  

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