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[194] Notas sobre a ética da crença

Resolvi organizar um pouco as minhas notas sobre um tema do qual a esfera pública, especialmente em tempos de pós-verdade , parece cada vez mais carente, a saber, a ética da crença. Resumo: Neste artigo, discuto a norma defendida por Clifford de que somente a crença baseada em indícios suficientes é legítima. Articulo os dois principais argumentos apresentados por Clifford em favor dessa norma, um que apela para o valor instrumental da crença baseada em indícios, e um segundo que apela para a credulidade acarretada e a corrupção da capacidade de evitar o erro se negligenciamos a referida norma. Sustento que o primeiro argumento é insuficiente para estabelecer a norma em geral. Crenças que não são meios para ações ficam de fora do escopo do primeiro argumento. O segundo argumento tem um alcance mais abrangente. Contudo, ele pode ser bloqueado se o agente segue uma norma intelectualista que visa insular as crenças injustificadas do restante da sua vida cognitiva e ativa. É uma...

[193] Ter evidência e crer com base na evidência

Pedro tem evidência de que Marcos é culpado de um crime, pois uma testemunha ocular narrou para Pedro como Marcos cometeu um crime. No entanto, Pedro veio a crer que Marcos é culpado de um crime porque tem um ódio irracional e muito intenso de Marcos. Por causa desse ódio, Pedro acaba buscando se convencer, por algum processo de racionalização, de que Marcos é uma pessoa má e criminosa. Bastou ver Marcos apressado, com cara de culpado, para que Pedro se convencesse de que Marcos é culpado de algum crime. Pedro tem evidência de que Marcos é culpado de um crime, mas Pedro não crê que Marcos é culpado de um crime com base nessa evidência. Ele desconfia tanto das pessoas que negligencia o relato da testemunha ocular. Ele crê que Marcos é culpado de um crime com base em motivos que nada têm a ver com a verdade da sua crença e, por isso, não a justificam. Na linguagem dos epistemólogos, Pedro tem justificação proposicional para a crença de que Marcos é culpado de um crime, pois ouviu o ...

[192] Democracia, voto e falibilismo

É verdade que o indivíduo pode se enganar quanto a quais são os seus reais interesses. E se ele pode se enganar a esse respeito, ele pode tomar decisões que não sejam as melhores para ele. Mas também é preciso tomar muito cuidado quando se pretende dizer que uma pessoa ou toda uma classe de pessoas está enganada quanto aos seus reais interesses. Derrotados em eleições às vezes assumem essa posição quando criticam o voto de alguém ou de toda uma classe de pessoas. Se o crítico não tem uma concepção forte de natureza humana que já envolva o comprometimento com uma série de valores fundamentais, então ele terá de enfrentar uma dificuldade interpretativa que nem sempre é fácil de vencer: para saber se um indivíduo se engana em relação aos seus reais interesses é preciso saber quais valores esse indivíduo tem e que hierarquia esse indivíduo sustenta entre esses valores. Como muitos desses valores e mesmo as relações entre eles são latentes e se apresentam mais em atitudes do que em verba...

[191] Crença, um bem comum

Quando respeitamos o intelecto dos outros e o nosso próprio, discutimos as crenças dos outros e colocamos as nossas em discussão, é simples. Pensar que respeitar a crença do outro (ou a sua própria) implica em jamais discuti-la parece presumir que o "intelecto" não tem qualquer interesse pela verdade ou talvez que a verdade seja completamente uma função das suas crenças. Ambas as alternativas não são muito plausíveis. Evidente que não somos apenas intelecto, nem que a verdade seja o nosso único interesse. Não temos de ser chatos conosco ou com os outros na discussão das crenças. A discussão cabe em alguns lugares e em alguns momentos. Nem tem de ser gratuita; acerca de alguns tópicos, pode ser que ela demande motivação. As crenças apenas não estão absolutamente imunes à discussão, como se tivéssemos com elas uma mera relação de propriedade, “são minhas e ninguém tem nada a ver com isso”. Não é bem assim se você tem alguma vida em comum e não é bem assim se você...

[190] Boas notícias contra o relativismo

O relativismo já conta com raízes longas e profundas em nossa cultura. Há aqueles que o acalentam como uma boa razão para o respeito à diversidade cultural e religiosa. Outros o arrolam como uma razão para que o seu intelecto seja respeitado qualquer que seja a opinião acalentada por ele. Em ambos os casos, a mesma confusão: o relativismo não pode sustentar esses respeitos sem minar o seu próprio chão. Mas a situação pode piorar e ela normalmente se agrava quando “respeito” quer dizer, na mente dessas pessoas, “absoluta imunidade à crítica”. Nesse caso, o problema já não é apenas se valer do relativismo para defender uma ideia que ele é incapaz de defender, mas defender o implausível. Por que deveríamos aceitar práticas abomináveis de uma cultural qualquer? Por que deveríamos nos calar diante de crenças absurdas acalentadas por um sujeito qualquer? Pode o respeito a uma cultura estar acima do respeito às pessoas que compõem essa cultura?...

[189] A ética da crença

"Debunking is fine, but it needs to be accompanied with a cultural sensitivity (as Kahan puts it) for the doubting parents, treating them not as idiots but as people whose concerns and fears are taken seriously" (Helen de Cruz, " How to promote the safety and effectiveness of vaccines ") A Helen está coberta de razão. Pensando na eficácia, confrontar o negacionista com a acusação de que ele é idiota ou irresponsável na busca por evidência, na prática, só fará com que ele se apegue ainda mais a sua posição. Especulo que por trás disso haja algum daqueles mecanismos sutis da vaidade. Eu confesso que frequentemente fraquejo e não consigo ter a paciência recomendada pela Helen, talvez por ser vítima também de algum outro desses mecanismos da vaidade. Mas não só, há indignação também na minha intolerância. De qualquer modo, lendo as ponderações da Helen, fiquei com a pergunta: qual a melhor estratégia não para superar essa ou aquela negação absurda (vacinas em geral nã...

[188] Valores e o ideal de ciência

" I first met questions of philosophy when I came up against the Soviet ideology under Stalin which denied justification to the pursuit of science...under socialism the conception of science pursued for its own sake would disappear, for the interests of scientists would spontaneously turn to problems of the current Five-Year Plan " (Michael Polanyi, The Tacit Dimension , p. 3). É bem conhecido o caso de banimento de toda uma disciplina, a genética mendeliana, na ex-União Soviética durante o governo de Stalin.  A disciplina foi acusada de ser "reacionária" e os seus pesquisadores foram convidados a proclamar publicamente seus erros por desenvolvê-la. Contudo, a interferência indesejada na ciência não parte apenas do governo, ela pode partir também de empresas que financiam pesquisas, manipulando direta ou indiretamente os seus resultados para que fiquem mais alinhados com os seus interesses de mercado. É igualmente bem conhecido o caso de manipulação de pesquisa...